XXIX
‘Apreciando a Paulo’
comentários em torno
das Epístolas de S. Paulo
por Ernani Cabral
Tipografia Kardec – 1958
“Traze-lhes estas coisas à memória,
ordenando-lhes
diante do Senhor que não tenham contendas de
palavras,
que para nada aproveitam e são para
perversão dos ouvintes.
Procura apresentar-te a Deus
aprovado como obreiro que não tem
de que se envergonhar, que maneja
bem a palavra da verdade.
Mas evita os falatórios profanos
porque produzirão maior impiedade.”
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“Todavia o fundamento de Deus fica
firme, tendo este selo:
O Senhor conhece os que são seus
e qualquer que profere o nome do
Cristo aparte-se da iniquidades.”
(Paulo - Segunda Epístola
a Timóteo, 2:14 a 16 e 19)
Paulo de Tarso condena as contendas
de palavras, as discussões, porque não edificam; geralmente, elas são
repassadas de vaidade, pretendendo o homem demonstrar superioridade
intelectual, quando não queira mesmo impor seus pontos de vista, descendo às
vezes à franqueza rude ou à ofensa.
A polêmica é, quase sempre, como diz
Emmanuel, contundente e perturbadora.
O esclarecimento deve ser dado a
quem pede ou a quem demonstre dúvida, mas sempre em momento oportuno e com
palavras brandas, isto é, sem exaltação. Porém, se o interlocutor insiste em um
ponto, teimosamente, é melhor deixar que ele procure a verdade por si mesmo,
sendo preferível isto a qualquer discussão ou contenda, que o apóstolo condena
ainda em I Tim., 2:8 e 6:4; Tito, 3:9 e Fil., 2:14.
Quando há vaidade intelectual em
quem duvida, pouca vantagem haverá no esforço de esclarecer.
Já disse um filósofo que uma das
coisas mais difíceis é por uma ideia nova na cabeça de um homem. A percepção
precisa também aliar-se ao sentimento. Se a pessoa não quer acreditar, nega até
o que constata. Por isto, diz-se com muito acerto: “o pior cego é o que não
quer ver”.
Lemos alhures que certo médico foi
assistir a uma sessão de materialização. Viu o Espírito, falou com ele,
tocou-o. Outros saíram encantados. Mas alguém, depois dos trabalhos, lembrou-se
de perguntar-lhe se havia gostado e se tinha acreditado no fenômeno. Ele
prontamente respondeu: “Gostar, gostei;
mas aquilo não era Espírito, porque Espírito não fala e não aperta a mão dos
outros.”
As ideias preconcebidas ou
deliberadas dificilmente erradicam-se dos homens. Só o tempo poderá burilar os
Espíritos endurecidos, que se aproveitam mais do sofrimento do que de certas
provas.
Se a mente não amadureceu, não dará
valor ao que tem, preferindo antes duvidar ou negar, mesmo perante um fenômeno
inconteste ou em face de um argumento irrespondível, porque tais pessoas estão
escravizadas ao seu círculo de conhecimentos e não querem sair dele,
irritando-se até com os que as contrariam por divergência de ideias.
Também há indivíduos que veem
Espíritos, falam com eles, mas não querem saber de Espiritismo; preferem
continuar com suas convicções, algumas infantis ou sem a menor consistência
lógica.
Outros há que têm medo de estudar
certos assuntos “para não caírem em pecado mortal”, como se Deus pudesse
proibir a investigação sincera de quem procura a verdade. Estes não conhecem a
lição de São Paulo: “Examinai tudo.
Retende o bem.” (I Tess., 5:21)
O apóstolo das gentes ainda
recomenda na mesma epístola: “Não
extingais o Espírito” (I Tessalonicenses, 5:19).
Entretanto, há igrejas que se dizem
cristãs, mas condenam as manifestações espíritas e querem assim sufocar ou
extinguir o Espírito. Fingem desconhecer o capítulo doze da Primeira Epístola
aos Coríntios, onde Paulo fala nos dons espirituais, que eram conhecidos e
exercitados pelos primitivos cristãos.
Entendemos que os dogmas têm feito
grande mal à Humanidade, escravizando consciências, que se atemorizam de
enfrenta-los, submetendo-se à sua influência errônea e coativa, sem livre
exame, o que contraria os ensinos de Jesus e as palavras acima, do mais culto
de seus apóstolos.
Destarte, criaturas há que têm
receio de negar a existência do inferno com as suas penas eternas, quando a
própria Bíblia não fala em inferno, mas em sheol, que como tal foi traduzido.
Admiti-lo, seria negar a própria misericórdia de Deus, que é amor e bondade, e
não um julgador inclemente. É certo que o Espírito mau tem de sofrer, mas sua
condenação não pode ser eterna. O dogma do inferno eterno, portanto, é uma
verdadeira heresia, pois atribui a nosso Pai Celestial uma qualidade inferior -
a dureza de coração no julgamento -, que Ele jamais poderia possuir, pois é
perfeito. Assim são os demais dogmas, todos envoltos no mais impenetrável
mistério! Todavia, Jesus mesmo afirmou: “Nada há de encoberto que não haja de
revelar-se, nem oculto que não haja de saber-se.” (Mateus, 10:26, e Lucas,
12:2)
Por consequência, em face das
próprias palavras do Divino Mestre, vê-se que ele não criou mistérios, mas sua
doutrina é muito clara, resumindo-se no amor (Mateus, 22:37 a 40) e não em
tabus ou em limitações forçadas da inteligência, que o dogma estabelece, contra
a liberdade do Evangelho, pela qual São Paulo tanto se bateu.
Cada qual tem o direito de adorar a
Deus a seu modo e convicção religiosa é grau de entendimento. Assim, todas as
religiões são boas, em certos aspectos, desde que haja sinceridade na prática
do bem, que é o fundamento de todas. Mas à medida que o Espírito evolui,
amadurecendo a reflexão, sente a necessidade de guiar-se pelo seu próprio
raciocínio, sem imposições de ideias ou de normas preestabelecidas. Aí então,
pela evolução natural de seus conhecimentos, ele admitirá o Espiritismo
cristão, que encerra a maior porção de verdade que é dado ao homem conhecer na
Terra.
Servindo-nos da imagem bíblica da
escada de Jacó, podemos afirmar que, em matéria de conhecimento, cada religião
representa um degrau; todas, portanto, são divinas e até necessárias à evolução
do Espírito. Mas no cume está o Espiritismo, pela sua clareza, pela sua lógica
e pela pureza de seus ensinamentos.
Fácil é convir que não podemos ter
intolerância para com os que ainda gravitam em círculo inferior de
entendimento, porque todos somos irmãos e Espíritos de idades diferentes. Nossa
ascensão processa-se mesmo assim, através de escaladas, quase sempre dolorosas,
pois o sofrimento acicata o Espírito, orientando-o para a luz ou para a
verdade, que o estudo, a reflexão e a experiência virão proporcionar.
Mas voltemos à lição de Paulo, nos
versículos ora em apreciação:
“Procura
apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar,
que maneja bem a palavra da verdade.”
O principal é mesmo a pessoa não ter
de que se envergonhar, pois que se conhece o espírita pela sua transformação
moral, como Allan Kardec frisa, acertadamente. Manejemos bem a palavra da
verdade, mas limpemos também o interior, isto é, o coração, a fim de que nossas
intenções sejam puras e nossos propósitos elevados.
“Evitemos
os falatórios profanos, porque produzirão maior impiedade”, diz Paulo.
Há a tendência humana, mas
prejudicial, de criarem-se “igrejinhas”, dentro dos grupos religiosos, isto é,
quatro ou cinco, vinculados pela afinidade, considerarem-se os donos do Centro
ou detentores da verdade. Esquecem-se de que a casa não é deles, mas de Jesus,
que a todos acolhe com o mesmo amor. Todavia, os da “igrejinha”, em vez de
tratarem os irmãos com sentimento cordial, faltam constantemente à caridade:
fazem censuras ou críticas rigorosas, chamam a atenção rispidamente e servem de
pomo de discórdia, desunindo em vez de fraternizar. Tal atitude não é cristã,
porém muito condenável. Se distribuem roupinhas ou fazem outra caridade
material, mas tratam alguns dos irmãos sem caridade moral, sendo arbitrários e
intolerantes, fazem por um lado, mas desfazem por outro.
Sabemos que o homem é falível e
todos estamos sujeitos ao erro. Mas devemos pugnar pela perfeita compreensão do
Espiritismo, que não é “sociedade de
elogios mútuos”, mas escola de amor ilimitado, não reduzido à meia dúzia de
pessoas que, erroneamente, se supõem donas da obra, que é de todos nós.
Nossas palavras não visam
particularizar, mas apenas pedir a atenção de algumas agremiações espíritas
para que tenham cuidado com as “igrejinhas”, porque elas danificam a obra e têm
mesmo destruído ou limitado bastante o poder de realização de alguns Centros. A
finalidade do grupo deve ser a harmonia, o estudo e o amor, buscando sempre ascender
em direção a nosso Divino Mestre e a seus apóstolos, cujos ensinamentos devem
ser lidos, mas também
praticados. Foi São Paulo mesmo quem ensinou:
“Então,
enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos da
fé.” (Gal., 6:10)
Tratemos sempre os domésticos da fé
com a devida caridade e sejamos tolerantes e unidos em nossos Centros,
procurando fazer o bem, porém exercitando-nos na prática do amor, que nos deve
unir.
Também há espíritas que pensam em se
isolar de seus irmãos e acham acertado agir assim. Estão errados,
evidentemente. Sozinho, o homem pouco fará, ao passo que, trabalhando em
conjunto, terá oportunidade de servir melhor à causa e de adquirir mais noção
de fraternidade. Se alguém reconhece que, mesmo tolerando e insistindo, não tem
afinidade com determinado grupo, deve procurar outro e não abandonar a obra,
nem agir isoladamente, pois a frequência a certos grupos é também exercício de
humildade. Se a
lavoura fosse só repleta de flores, o mérito da colheita seria insignificante. É
preciso mesmo que haja pedras no caminho, para que exista o valor de transpô-las.
Nada, fato algum deve arrefecer ou limitar nosso trabalho, nem nosso entusiasmo
em prol da causa. Vêm a propósito as palavras de Jesus:
“Ninguém,
que lança mão do arado e olha para trás, é apto para o reino de Deus.”
(Lucas, 9:62)
Nada de desânimos, nem de excesso de
suscetibilidades. Como ensinam os Mensageiros do Senhor, felizes dos que
recalcam suas rivalidades, a fim de que a obra não sofra dano. O trabalho pela
difusão da verdade e em torno do Espiritismo, é oportunidade de resgate de
nossos débitos para com o Senhor, e ensejo de demonstrar nossa lealdade para
com Ele.
Recordemos ainda a lição do Rabi da
Galileia:
“Se
amardes os que vos amam, que galardão havereis? não fazem os publicanos também
assim?
“E, se saudardes unicamente os
vossos irmãos, que fazeis de mais? não fazem os publicanos também assim? (Mateus. 5:46 e
47)
Coloquemos a obra acima de tudo, e
tenhamos boa vontade em servir à causa do Espiritismo, que é de Deus.
Por fim, repitamos as palavras de
São Paulo, sempre sábio e sempre edificante:
“Todavia,
o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são
seus, e qualquer que profere o nome do Cristo APARTE-SE DA INIQUIDADE.”
O versículo é tão claro que dispensa
quaisquer apreciações. Pode-se considerar cristão aquele que permanece na
prática do erro ou na senda da iniquidade? Transformemo-nos, para nosso próprio
bem. Tal a lição que há quase dois mil anos nos é dada. E já é tempo de ouvi-la
e de entrarmos em sintonia com a Espiritualidade Superior.
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