Cristianismo Negativo
José Brígido / (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Setembro 1963
Aquele homem alto, enérgico, de
porte viril, encantava os auditórios nas conferências que realizava.
Apontavam-no como um campeão de ideias novas e ele parecia satisfeito com esse
título, porque, efetivamente, se afirmava alheio a preconceitos e sempre
disposto a derrubar com o seu verbo franco as muralhas do pensamento
tradicionalista, do pensamento dogmático, enfim, de tudo quanto se assemelhasse
às "ideias feitas" e à rotina. Combatia vigorosamente as doutrinas
que não se nutriam do objetivismo materialista.
Um dia, justamente em momento
glorioso da sua vida de conferencista, ele, que até então evitara golpear
diretamente o vero Cristianismo, deixou escapar estas palavras:
- O Cristianismo promete muito ao
homem numa outra vida, mas nada na vida presente. Não podemos renunciar a esta
vida, quando temos mulher e filhos para sustentar, quando nos assiste o dever
de lhes dar pão e abrigo, instrução e experiência, segurança e confiança . Não
podemos aceitar uma doutrina que transforma o homem num molambo,
sem vontade, sem energia, sem coragem, uma doutrina que o faz insensível e
apático, covarde e conformado!
Nessa ocasião, um indivíduo de
pequena estatura, muito magro, modestamente vestido, ergueu-se, aparteando-o:
- Peço-lhe permitir-me uma
ponderação, cavalheiro. Perdoe-me a audácia de querer contrapor à palavra
ilustre de festejado conferencista, que todos admiramos por sua cultura e
riqueza de imaginação, o verbo inexpressivo e desconhecido que ora ecoa
debilmente neste recinto.
Senhor de si, o orador, sem esconder
sua surpresa, olhou para o aparteante com um ar de esmagadora superioridade e
disse-lhe:
- Pode falar. Não desejo polêmicas,
mas lhe concedo a oportunidade de explicar sucintamente porque me interrompeu.
- Dr. Maynaud: atrevo-me a contestar
a sua afirmativa, de que o vero Cristianismo mumifica as criaturas, tirando-lhes
a personalidade. Contesto ainda que o Cristianismo nada prometa para a vida
atual e que transforme o homem num covarde.
Sou pessoa de muito pouca cultura,
mas posso asseverar que o senhor incide no mesmo erro de muitos adversários do
Cristianismo. O verdadeiro Cristianismo não se corrompeu com a concordata
celebrada entre os seus pseudo seguidores e o Imperador Constantino. Ficou de
fora. O que tem vindo pelo mundo, desde séculos após o referido episódio
político, não é o Cristianismo do Cristo, mas o cristianismo dos seus vigários,
um cristianismo que só tem o Cristo como chamariz, mas não lhe segue os
exemplos nem se orienta fielmente por seus princípios!
Houve um murmúrio surdo por toda a
sala.
O Dr. Maynaud empalidecera, mas
permaneceu calado. O aparteante
prosseguiu: -
O que temos no mundo presente, com o título de Cristianismo, é uma deturpação
da doutrina do Cristo, porque não é Cristianismo o que se mantém alheio ao
Sermão da Montanha! Depois de tantos séculos de divórcio completo das seitas cristãs,
apegadas à teoria da doutrina do Cristo, mas distantes de sua prática, surgiu
um novo Cristianismo. Melhor dizendo, ressurgiu o verdadeiro Cristianismo!
- Conforme é de meu feitio -
interrompeu o Dr. Maynaud - não desejo enveredar pelo terreno religioso. Não
busco polêmicas, não quero debates. Casso, portanto, a autorização que dei para
que o meu aparteante dissesse a causa da interrupção a que me obrigou.
- Perdoe-me. Não tenho a intenção de
polemizar. Como ser humano desejoso de ser cristão do Cristo, quis apenas
apontar o equívoco em que muita gente cai. Se o que aí está espalhado pelo
mundo fôsse Cristianismo, os homens não estariam divididos, não se matariam,
não se odiariam, não procuravam enriquecer à custa da miséria de seus
semelhantes, não se mostrariam frios diante da desgraça de milhões e milhões de
criaturas que não possuem um lar razoavelmente instalado, que sofrem fome e
frio, que são obrigadas a pegar em armas para defender situações políticas
criadas por outrem, que em nada têm melhorado a vida e as relações dos homens
entre si.
A sala estava imersa no silêncio
mais profundo.
O próprio conferencista se sentia
inibido diante da eloquência daquele homem humilde, mas resoluto. Em vez de
tentar pôr cobro a seus argumentos, disse-lhe, quase sem o sentir:
- Continue... continue...
O aparteante, que já havia tomado
conta do auditório, apesar de ter contra si a intolerância de muitos,
prosseguiu no mesmo tom sereno, mas incisivo:
- Jesus não pregou o desalento, o
desânimo, a covardia. Foi mestre de otimismo, distribuiu esperança e fé quando
disse, por exemplo: "Bem-aventurados os que choram, pois que serão
consolados." Assim como quem afirma: "Não desanimeis, porque vossas
lágrimas serão estancadas pelo carinho." Se disse: "Bem-aventurados
os famintos e os sequiosos de justiça, pois que serão saciados", derramou
no coração dos infelizes a esperança de que, mais cedo ou mais tarde,
encontrarão a justiça que desejam. Jamais lançou o desanimo. Sempre procurou
levantar o moral dos sofredores.
Ora, se disseminou esperança,
deve-se concluir que disseminou paciência, confiança e otimismo. Nada se
consegue com o desespero. Não se alcança progresso com a desesperança. O homem
precisa ter força moral para enfrentar os altibaixos da vida. Não é forte senão
aquele que consegue manter-se nas horas da adversidade, senhor de si mesmo. É bem
certo que a vida não termina com a morte. Ela se desenvolve no plano físico e
no plano espiritual. Se Jesus anunciou compensações para depois da morte, isto
não quer dizer haja restringido essas compensações ao plano terreno
exclusivamente. Quando afirmou: "Bem-aventurados os que sofrem perseguição
pela justiça, pois que é deles o reino dos céus", não insinuou sequer que
se desinteressem pela defesa de seus nobres direitos. Só pode
ganhar "o reino dos céus" quem está em paz com a própria consciência.
Por isso, são bem-aventurados os que sofrem perseguições injustas, porque não
têm que resolver problemas de consciência.
Os ouvintes olhavam, já agora, o
pequeno aparteante com maior interesse. Ele, afinal, estava interpretando muito
bem o Evangelho do Cristo e, com isto, sem se tornar agressivo, lançava,
naquela seara materialista, a semente da lição evangélica.
Tornara-se ele, de repente, o ponto
de convergência do auditório. De pé, a fisionomia esplendente: como se não fora
mais que mero intérprete de entidades espirituais, o pequeno homem, que se
chamava Anselmo, explanava com naturalidade seus pontos de vista.
- Senhores: eu poderia multiplicar os
exemplos comprobatórios de que Jesus não pregou uma doutrina negativa, mas uma
doutrina de ação, não foi um mensageiro de morte, mas um mensageiro de vida, de
vida sã, benéfica, altamente construtiva.
Onde a covardia de Jesus? Quando os fariseus
o censuraram por haver pretensamente violado o mandamento de Deus, ele
respondeu prontamente, com a maior energia: "Hipócritas, bem profetizou de
vós Isaias, quando disse: Este povo me honra de lábios,
mas conserva longe de mim o coração." Ao lhe revelarem os discípulos que
os fariseus se haviam escandalizado, ele retrucou com a mesma firmeza:
"Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou." E
também quando um fariseu o convidou para jantar, Jesus não recusou o convite e
disse, ante a estranheza demonstrada pelos presentes, por ele não haver lavado
antes as mãos: "Vós outros, fariseus, pondes grande cuidado em limpar o
exterior do copo e do prato; entretanto, o interior dos vossos corações está
cheio de rapinas e de iniquidades. Insensatos que sois!"
- Mas, porque mandou Jesus que se
oferecesse a outra face, depois de esbofeteado? - perguntou alguém, convencido
de que descobrira um meio de calar Anselmo.
- Porquê? Por ter coragem. Para dar
mais um exemplo de fortaleza de caráter. Considerava o perdão uma prova de
coragem. Ao oferecer a outra face ao agressor, quis demonstrar que não se deve
combater o mal com o mal. Para fazer isto é preciso coragem. Combatendo a
violência com a violência, nada se alcançará de bom, porque "o abismo
atrai o abismo". Não ensinou Jesus: "Não vos digo que perdoeis até
sete vezes, mas até setenta vezes
sete"? Para perdoar é indispensável fortaleza moral, meus senhores. Não me
refiro ao perdão aparente, que oculta ressentimentos. Refiro-me ao perdão que
esquece a afronta e ajuda o ofensor a reabilitar-se perante o ofendido, sem se
sentir amesquinhado. Não me refiro ao perdão sem substância, que não constrói,
mas que estimula o mal. É preciso
entender o pensamento do Cristo, sem o que não se fará justiça ao Cristianismo,
que não é nem pode ser responsável pelos abusos e pelas omissões que durante
séculos têm sido cometidos em seu nome.
Depois destas últimas palavras,
Anselmo, que parecia haver atuado sob o manto da mediunidade, agradeceu ao Dr.
Maynaud a oportunidade que lhe dera, pedindo desculpas pelo tempo em que se
demorara com a palavra.
O conferencista, sem se perturbar,
mas evidenciando grande emoção, desceu do tablado e se encaminhou para o centro
do auditório, onde Anselmo estava sentado. Este, ao vê-lo, ergueu-se e ambos se
abraçaram. O Dr. Maynaud voltou ao seu lugar e se dirigiu ao auditório com a
fisionomia feliz:
- Caros ouvintes: nada mais tenho a
dizer, depois da bela lição que todos recebemos através da palavra inspirada e
segura do cavalheiro que me aparteou. Encerro neste instante a minha oração, a
fim de que todos nós guardemos na memória os ensinamentos recebidos e
procuremos aproveitar o mais possível o que neles há de prodigioso para o fortalecimento
da nossa personalidade.
Todos se ergueram para sair,
desejosos de abraçar Anselmo, que também se havia levantado. Entretanto,
ninguém mais o viu...
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