Cérebro e coração
Porto
Carreiro Neto
Reformador
Outubro 1947
Em
que pese às seitas que se dizem cristãs, a Doutrina Espírita vai passo a passo
penetrando em todos os recantos da Terra. Posto que interpretados diversamente,
aqui e ali, os ensinos dos nossos Maiores tocam os corações, abrindo-os à luz
que lhes bate à porta; alcançam, destarte, o órgão sensível do homem, o que
muito mais é do que lhe falar diretamente à razão. O Mestre de Nazaré não tinha
outro objetivo, seja praticando a caridade no que tinha esta de mais perfeito,
seja usando com a turba de parábolas que fugiam ao entendimento de pessoas de
apoucada cultura. É que o coração compreende primeiro que o cérebro e "tem
razões que a razão desconhece". Penso que, por isto mesmo, o
"Evangelho segundo o Espiritismo", do insigne Codificador, é a obra
espírita mais procurada nesta "Pátria do Evangelho"; é que esta é,
outrossim, o "Coração do Mundo".
É
essa chapa fotográfica - o órgão motor da circulação do fluido sanguíneo - que,
indutada de matéria especial, é sensível aos fluidos invisíveis, qual sucede à
gelatina impressionada pelas emanações dos espectros imperceptíveis aos olhos
humanos. O que importa, sobretudo, é impressionar a película. Se na fotografia
comum, o espectro aí se acha tão evidente quanto qualquer indivíduo de nosso
mundo tangível, receba o coração esses eflúvios, que se transformem, não em
inexpressivas imagens, mas em figuras vivas, que nos acompanhem nesse precioso
escrínio que nos pulsa no peito.
Em
certas rodas de curiosos, a perquirição, por assim dizer, material de fenômenos
causados por forças que parecem estranhas ao nosso planeta se inclina a
enquadrar esses fenômenos insólitos entre os nossos fatos terreais. Poderíamos,
na mesma ordem de ideias, imaginar que os habitantes de outros astros
procederiam de modo semelhante, vendo cada qual mínima parte do todo e, além
disto, interpretando essa infinitésima parte através de prisma deficiente,
compatível com a organização do indivíduo e com a estrutura do meio ambiente.
Quando,
por conseguinte, começam as "assimilações" e entra na lide o
"raciocínio", a criatura pode estar próxima, tanto do erro, quanto da
verdade; sustentar obstinadamente um juízo, baseado em tão precário método, é
tão desaconselhável quanto digno de objurgatória é o negar-se evidente verdade
ou o afirmar-se erro patente. Entre a verdade e o erro - limites infinitamente
afastados - perde-se o homem num dédalo de conjeturas, para sair do qual lhe
cumpriria, guiar-se por novo fio de Ariadne; mas fabrica-o por suas próprias
mãos, dispensando-se de ajuda, correndo, assim, o risco de ser vendido pelo
Minotauro, que ele não cuida, primeiro, de eliminar de si mesmo.
A
pesquisa é, sem dúvida, um dos métodos de chegarmos ao conhecimento de coisas e
de fatos, de atingirmos o "saber"; dissemo-lo poder ser, entretanto,
método falho, “desvio” que não "caminho", que seria o termo, conforme
o étimo grego (1) e tanto mais claudicante e inconclusivo quanto de maior
transcendência é o assunto em apreço. Por isto mesmo, creio, as religiões se
enclausuram na Teologia, da qual só os iniciados podem lobrigar certa dose,
penetrando em "mistérios" que se fazem "pontos de fé" e
"dogmas". Vaidosas - e em extremo vaidosas - por ter vislumbrado (ou
pretendido vislumbrar) estreitíssima nesga da grande Verdade Universal,
presumem ter esta em plena e exclusiva posse; tudo o que afirmem - ainda fora
do âmbito da Teologia, do que existem inúmeros exemplos na História – há de
forçosamente ser verdadeiro; e tanto maior é seu orgulho, e tanto mais negra é
sua impiedade, quanto blasfemam, afirmando achar-se em contato íntimo, direto e
contínuo com o próprio Supremo Senhor da Criação.
(1) Método.
Do grego meta + hodos = caminho puro. - A Redação.
Não
lhes aprazendo tais processos absolutistas, nem possuindo veia de turibulários,
muitos se lançam a desvendar os chamados "mistérios" e a interpretar
os pseudo milagres; e o que se vê é o reduzirem todos os fatos a um denominador
comum, que é a sua minguada ciência terrena, tão falaz como as faculdades
humanas de apreensão do mundo exterior. Esses descambam, portanto, para o
extremo oposto, chegando, quase por absurdo, a idênticos dogmas e pontos de fé!
Se
a ciência ilustra, isto é, se ilumina o Espírito, varando as trevas que
abrigavam o terror do ignoto, por outro lado proporciona ao pesquisador uma
audácia que lhe pode ser fatal, por desconhecer a essência mesma da nova região
em que se aventura, e por demasiado confiar em suas próprias forças, que lhe
não foram doadas para ultrapassar definidos limites. Essa ousadia leva o
cientista a assimilar o "além" ao "aquém", deformando
aquele à força de pretender enformá-lo ao jeito deste; o resultado é uma luz falsa que traz não mais do que uma
ilusão de ótica, é uma luz externa
que, se percute, não é, contudo, percuciente. E o que é mais grave: o que
produz essa pesquisa puramente humana em terreno essencialmente extra-humano é
o acanhamento do Espírito dentro de suas próprias fronteiras, é a esterilização da alma, que a si mesma se
condena, como a figueira sem frutos, por nada tirar de si, que seja útil, nem
ao homem, nem a outros homens.
Eternos,
obtusos ensaiadores, cuja pertinácia merecera melhor sorte, ficam em vãs
experiências, cujos bastidores teimam em não querer afastar sequer um pouco;
extasiam-se com a cena, cujas personagens lhes são meros objetos de
curiosidade; contentam-se com o pouco - modestos e pedantes! - e aí se lhes
detém a ânsia de saber... Que consequências lhes trarão essas experiências -
não lhes importa; que força move aquelas personagens - supõem-na conhecida:
quem sejam mesmo esses entes estranhos - serão "duplos",
"alucinações"...
Que
nos adiantam, pois, esclarecimentos que tais? Vemos-lhes os resultados
negativos nos meios em que abundam pesquisas e falta a meditação; em que fulge
o orgulho, sem sombra de humildade: em que trabalha o cérebro, tendo o coração
por simples espectador; em que o Espírito procura na Terra o segredo do Céu. O
grande Espírito, que em sua última passagem pelo nosso mundo tomou o nome de
Lázaro Luiz Zamenhof e que nos veio com a missão de criar um instrumento de
compreensão linguística entre os homens, para aproximar-lhes os corações,
declarou ao 2º Congresso Universal de Esperanto, reunido em Genebra, em 1906:
"Com tal Esperanto, que deva
servir exclusivamente a fins comerciais e ao utilitarismo, não queremos ter
coisa alguma!" É que alguns adeptos desse admirável traço de união diziam
ser o Esperanto apenas uma língua, evitando-se ligar o Esperantismo com
qualquer ideia (a famosa "ideia
interna", que é o fanal dos cultivadores dessa sublime causa). Assim
também, diremos: "Com tal Espiritismo, que se limite a experiências
científicas sem consequências de ordem
moral, não queiramos ter o menor contato!"
A
Doutrina Espírita possui e cultiva também sua "ideia interna", e essa
é a maior de todas, que é Deus! Ora, de passagem assinalemos
que a "ideia interna" do Esperanto é o cultivo da intercompreensão
dos corações, mais do que a dos cérebros; isto equivale ao próprio amor, uma vez que este é fruto opimo da
compreensão. Quem diria, pois, que as duas causas fossem tão afins?
Louvemos
o Senhor por ter-nos concedido, aos infusórios da Ciência humana em nossa
Pátria, a compreensão que a Ele nos conduz, antes que as profundezas dessa
mesma ciência, onde modorram seres de maior porte, a ruminar indigestos
alimentos da Terra, sem forças sequer para dirigir o olhar às regiões da Luz.
Cultivemos
o Evangelho na "Pátria do Evangelho" e abramos o "Coração do
Mundo" aos ensinamentos dos nossos Maiores, que, a par da ciência, nos
inspiram o amor. Com esses fios de luz sairemos do tenebroso labirinto de nossa
alma atribulada, após abater o Minotauro de nossa enorme imperfeição.
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