sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Regressão de memória

Desmoulins, esposa e filho



3f. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972


            Um dia, resolvemos fazer um mergulho mais profundo no passado e, de século em século, fomos dar no século XV. Naquele tempo, L. A.-Desmoulins, teria sido um membro da família real de França - os Valois - na pessoa de Charles, Duque de Orléans, sobrinho de Carlos VII e pai do futuro Luís XII. Charles foi poeta, e orgulhoso. Casou-se várias vezes. Quando lhe perguntei o nome de sua esposa, ele me respondeu com outra pergunta:

            - Qual delas?

            Praticou gestos de crueldade que agora, ao se descobrirem diante dele as nesgas do passado, causam impactos de desgosto e arrependimento. Contou, como, em penitência, que mandava descarnar   a perna de seus prisioneiros e os obrigava a andar diante dele. Não admira que viesse a ser decapitado séculos depois... Mesmo agora, a quinhentos anos de distância - meio milênio -, ainda parece que suas antigas crueldades, que hoje o repugnam, repercutem teimosas e persistentes em dores cármicas, pois num acidente de infância teve, nesta vida, uma perna quase inteiramente descarnada ao vivo e quase a teve amputada pelos médicos, desesperançados de vê-lo bom. Salvou-a, no entanto, mas conserva doentia sensibilidade para qualquer intervenção ou acidente que leve um instrumental ao contato com os seus ossos. Daí o seu pavor irracional ao dentista, diante de quem muitos de nós podemos não nos sentir muito bem, mas não chegamos às fronteiras do pânico.

            Charles d'Orléans foi capturado pelos ingleses na Batalha de Azincourt e passou 25 anos na Inglaterra, em prisão mais ou menos relaxada, mas vigiada com rigor, até que se arranjasse em França dinheiro suficiente para resgatar sua vida, na qual os ingleses, excelentes businessmen, colocaram uma vistosa etiqueta de preço. O dinheiro foi obtido por meio de um casamento particularmente feliz, com uma senhora muito rica. Também o seu casamento com Lucille Duplessis, ao tempo em que foi Camille Desmoulins, não estaria completamente a salvo de interesses financeiros, não obstante a grande paixão que os uniu depois. Ele próprio o confessa em carta dirigida ao pai. Este, aliás, é um ponto que merece referência especial, entre tantos outros que temos de sacrificar para não alongar demais o relato.

            Retornemos, por alguns momentos, ao episódio Desmoulins.

            Como já disse, procuramos não ler nada de substancial sobre a Revolução Francesa para não infIuenciarmos, com o nosso conhecimento, as lembranças que iam surgindo. Fomos, no entanto, um dia, à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para "checar" alguns pontos. E numa obra de J. Claretie sobre Desmoulins encontramos a reprodução de uma carta-autógrafo de Camille ao pai. Tentamos ler o documento, mas a letra, muito reduzida, é ilegível, impraticável. Dava para ler apenas a introdução: "Mon très chère Père". Nada mais, a não ser uma ou outra palavra solta, insuficientes para formular um juízo sobre o conteúdo da carta.

            Na sessão seguinte, resolvi testar mais uma vez a memória integral de L. A. e lhe pedi que me reproduzisse o texto da carta, o que ele começou a fazer, em francês - habitualmente falava português. Acabou resumindo o texto em português mesmo. A carta, de um Camille em permanente estado de penúria financeira, dirigida a um pai bastante agarrado ao seu dinheiro, pede ao velho Desmoulins, residente na cidadezinha de Guise, permissão para se casar. Para "facilitar" o consentimento, apressa-se em informar que a moça é rica e que, com o casamento, todos ficariam muito bem. Que mande logo, pois, os documentos necessários. O velho deve ter providenciado tudo como solicitado, pois que o casamento não tardou. Consegue, assim, reproduzir o conteúdo da carta em estado de transe, quando em estado de vigília não foi possível nem mesmo lê-la. Depois que conhecemos o texto, porém, e o ampliamos por meio de projeção de um "slide", conseguimos, ainda que com alguma dificuldade, ler e conferir o texto escrito com a narrativa feita em transe.


Desmoulins


3g. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972

            Ainda uma nota sobre a língua. Poderia surgir a pergunta - e realmente surgiu -
por que L. A., em transe, relembrando uma existência vivida na França, não fala francês. Fiz-lhe essa pergunta certa vez e ele me respondeu que falava francês, mas que não saía em francês, lá embaixo. O "lá embaixo" aqui é o corpo físico, dado que, segundo me dizia, seu perispírito desprendido ficava mais ou menos à altura do teto da sala onde nos encontrávamos. Essa questão foi levantada pelo ilustre professor Ian Stevenson, com quem me correspondi sobre o caso. Acha ele que o sensitivo deveria falar a língua que lhe era familiar na época revivida nas suas memórias. Com todo o respeito pelo imenso saber e prestígio do eminente cientista, não vejo por que tenha de ser assim, necessariamente, embora às vezes isto se dê. Acho e tive a audácia de lhe dizer isto por escrito, pois a ignorância é atrevida - que o pensamento é formulado num plano acima e além da palavra falada. Quando se manifesta em palavras já está reduzido a uma forma inferior de manifestação, a um código da comunicação que o torne suscetível de ser entendido por outra pessoa. O pensamento em si é abstrato, puro fenômeno vibratório que, em nossa condição humana imperfeita, reduzimos penosamente e imperfeitamente a palavras. Ora, como espírito, L. A. emite um pensamento, despreocupado da forma de expressão em que ele se manifestará. Este pensamento, porém, deve ser convertido em palavras pelo seu instrumental de ser humano encarnado, e todo o seu mecanismo de comunicação atual está condicionado às estruturas da língua portuguesa e é nesta língua que tem de ser expresso. Da mesma forma, os Espíritos manifestantes transmitem apenas um pensamento que o médium converte em palavras, na sua língua habitual e não na língua do Espírito desencarnado. Pelo menos, essa é a regra geral. A exceção também existe, é claro, e serve, como sempre, para confirmar e evidenciar a validade do princípio geral. Quando isso se dá, ocorre o fenômeno da xenoglossia, isto é, o Espírito consegue transmitir o seu pensamento na sua própria língua e não na do médium. Aí, porém, o fenômeno talvez adquira características semi-físicas, pois o Espírito manifestante parece materializar temporariamente, com os recursos do médium, um verdadeiro órgão fonador provisório, pelo qual ele atua diretamente, produzindo o som da palavra falada.

            Aí está um tema importante para pesquisa e meditação.
           


Robespierre 


3h. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972

            Outra pergunta pode surgir, entre muitas, em conexão com o caso Desmoulins. Será que ele foi sempre um sujeito importante? Não. Nem sempre. Não deixa de ser curioso, porém, verificar que numa encarnação teria ele vindo como sobrinho e pai de reis franceses, para numa outra voltar como um dos que contribuíram para demolir a monarquia francesa e se destruir, também, no processo.

            Mas, nem sempre foi importante, a ponto de deixar referências históricas. Entre as vidas de Charles d'Orléans, no século XV, e a de Camille Desmoulins, no século XVIII, viveu duas existências curtas, obscuras, cheias de privações, temores e perseguições, numa das quais, pelo menos, acabou assassinado a punhal, sendo o seu corpo atirado ao Sena.

            Nessas duas vidas anônimas, foi humílimo vendedor de vinagre - atividade que depois tivemos confirmada -, tendo sido, na primeira salvo de morte certa, num rebuliço de rua, por um prestigioso cardeal católico, Charles de Guise, irmão do famoso Duque, tios de Maria Stuart e figuras poderosas ao tempo de Catarina de Médicis. Este Charles, segundo apuramos, veio a ser novamente Charles, o Bossut, talvez para purgar no anonimato e na humildade de uma vida obscura de abade as pompas do antigo cardeal. Como Desmoulins, o antigo vinagreiro lhe retribuiria o favor, salvando-o da guilhotina em plena Revolução mais de dois séculos depois.


Saint-Just



3i. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972


            Expondo esta pesquisa, certa vez, a alguns estudantes de psicologia de um agnosticismo quase agressivo e vigilante, notei que ficaram impressionados, mas não convencidos, o que é natural, diante da formação intelectual a que se entregam. Concluí dizendo que não podia, evidentemente, atestar a absoluta autenticidade do episódio e garantir em cartório que L. A. é Camille Desmoulins reencarnado. Mas, de quantos fatos científicos se pode exigir tal garantia? Há indícios, há convergência de provas, há um acervo muito grande de fatos e inferências que suportam as hipóteses científicas e justificam uma tomada de posição. De minha parte, estou convencido, mas não exijo de ninguém declaração de aceitação. Gostaria que me dissessem, porém, como podem ser explicadas tantas "coincidências" e, em primeiro lugar: por que L. A. teria "escolhido" Camille Desmoulins entre milhões de figuras humanas que cruzaram os imensos palcos da História? Por "coincidência", Camille chamava-se Lucie e L. A. tem prenome muito semelhante. A antiga esposa chamava-se Anne Lucie, e a filha atual, nascidas ambas no mesmo dia e mês, chama-se Ana Lúcia. Camille foi jornalista como L. A. o é e L. A. teve a perna descarnada, tal como mandava fazer aos seus antigos prisioneiros o cruel Duque d'Orléans. E como é que para L. A., em transe, a Revolução não tem segredos? Nem mesmo o número e nome das pessoas que estiveram presentes ao seu casamento, ou ao batizado de seu filho Horace, ou os que acompanharam na mesma carreta à guilhotina. O professor Murilo Alvim Pessoa, catedrático de Arte Anatômica da Escola Nacional de Belas-Artes, da Universidade do Brasil, ao examinar fotografias do sensitivo e retratos de Camille Desmoulins, sem cogitar da hipótese da reencarnação, mostrou-se surpreso, afirmando que "todos os elementos caracterológicos de uma figura são encontrados na outra".

            Por que o primeiro encontro com um cidadão, que na vida atual lhe era desconhecido, acarreta-lhe arrasadora emoção e faz reatar, ao que tudo indica, uma velha amizade que a morte interrompeu? Por que o "destino" - um dos pseudônimos de Deus para aqueles que não creem - designa justamente um antigo Browning, de quem guarda a lembrança de um contato fugaz, para trazer à luz do presente todas as soterradas memórias de um passado que parecia perdido nas brumas do tempo? Por que o Cardeal de Guise reaparece na sua vida de Desmoulins e agora novamente, no Brasil, como inseparável amigo? Somente a maravilhosa e monolítica doutrina da reencarnação explica, de maneira tão sóbria e irrecusável, o mecanismo da evolução do ser. As vidas se encadeiam umas nas outras, forjadas em grilhões de dor que nos acorrentam ou em elos de luz que nos unem àqueles a quem amamos. Da longa trilha ininterrupta haveremos de emergir um dia revestidos de luz e prontos para as tarefas superiores que de nós esperam poderes muito altos. Essa é a abençoada realidade de amor e redenção em que se assentam os princípios universais das leis de Deus. São elas que nos proporcionam o remédio com que curamos lentamente as chagas dos nossos desacertos. Bem dizia o Mestre de todos nós que não seria admitido aos reinos da paz e da harmonia aquele que não tivesse renascido.

            Quem tem ouvidos de ouvir que ouça... os outros haverão de esperar longa e doridamente, porque, como escreveu Emmanuel, a gazela acorda aos primeiros sinais da madrugada, mas a pedra somente desperta com a explosão impiedosa da dinamite.



3j. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972


            Ainda uma palavra final, para concluir, mesmo ao risco de me tornar repetitivo.
A pesquisa feita confirma os postulados da Doutrina Espírita, tal como foi codificada por AIlan Kardec. Não há um desvio, uma falha, um desmentido; tudo confere. Poderia dizer-se que assim é porque o trabalho foi conduzido por um espírita militante e convicto, na pessoa de outro confrade, igualmente convicto. Será, porém, que somos suspeitos simplesmente porque somos espíritas? Ou será que, ao contrário, estamos em melhores condições de pesquisar exatamente porque somos espíritas? Creio firmemente nesta última alternativa. Vou mais longe, ao afirmar enfaticamente que a pesquisa neste campo somente será bem conduzida e renderá seus melhores resultados quando realizada por quem, pelo menos, conheça em certa profundidade os postulados da doutrina, ainda que não seja espírita praticante. É que nesse trabalho estamos manipulando os mecanismos do Espírito encarnado, e quem poderia conhecê-los melhor do que o estudioso do Espiritismo? Isso não quer dizer que a pesquisa tenha de ser feita necessariamente por espíritas, como "donos" do assunto. Não importam as crenças ou descrenças de quem a faz: encontrará sempre os mesmos resultados, as mesmas realidades, ou seja, a sobrevivência, a reencarnação e os dispositivos da lei de causa e efeito, atuando implacavelmente sobre o ser, na sua caminhada evolutiva. Se o pesquisador aceita essas realidades, tanto melhor; se não as aceita, que importa? Deixará de ser um fato a reencarnação ou a sobrevivência somente porque este ou aquele pesquisador não acredita nelas? Algum materialista ou ateu deixou de sobreviver à morte física por causa de suas descrenças? Jamais. Na verdade, o que acontece é o terrível impacto de uma incômoda realidade "post-mortem", que derruba dos seus pedestais todos esses ídolos ocos e vaidosos. É o que testemunhamos inúmeras vezes nas nossas sessões mediúnicas e é o que verão todos aqueles que desejarem ver. Os fatos estão aí mesmo, à disposição de todos. A única diferença é que nem todos têm "olhos de ver". Pelo menos, não veem senão aquilo que querem ver, o que é a mesma coisa. Estamos, pois, à espera de mais cientistas e pesquisadores espíritas. Deixa falarem que seriam suspeitos. Que fizeram até hoje os insuspeitos? Aí está o exemplo da parapsicologia de Rhine, repetindo a metapsíquica de Richet. Amanhã, daqui a 50 anos, virá outro Richet para repetir Rhine, todos absolutamente insuspeitos porque não eram espíritas... Enquanto isso, os descrentes seguem sua vida vazia, os desesperançados se desesperam e milhões vivem sem rumo à espera do recado da ciência que continua a ser monotonamente o mesmo: "Nada encontramos que justifique a crença na sobrevivência. É uma hipótese simpática e agradável, mas improvada".

            Deixemo-los com suas descrenças e vamos em frente, que o tempo urge.            
 FIM







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