quinta-feira, 5 de setembro de 2013

3a 3b 3c 3d 3e "Regressão de Memória"

Queda da Bastilha


3a. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972


            Para encerrar esta série acerca da regressão de memória, pareceu-me apropriado aceitar uma sugestão para narrar uma experiência pessoal, recente, extensa e bem documentada, sobre a qual será oportunamente publicado um livro, que relatará todo o caso com seus pormenores, datas e nomes. A experiência foi feita com o confrade L. A.. Para entender o fenômeno nos seus antecedentes e nas suas implicações, precisamos admitir como válidas e pacíficas algumas premissas fundamentais, ainda que apenas como hipótese de trabalho, se assim desejarem classificá-las os pesquisadores agnósticos. Tais premissas podem ser resumidas da seguinte maneira:

1.        O Espírito existe, preexiste e sobrevive e, portanto, reencarna-se.
2.        O homem encarnado é um "arranjo" temporário de três "componentes" básicos: Espírito, perispírito, corpo físico.
3.        O perispírito tem a faculdade de desprender-se do corpo físico conservando-se, no entanto, ligado a ele por um cordão fluídico.
4.        O desprendimento se dá espontaneamente durante o sono fisiológico ou mesmo em estados de relaxamento, como também pode ser provocado por drogas, hipnose, magnetização, exaustão física, choques traumáticos de fundo emocional ou físico.
5.        O perispírito traz os registros indeléveis da vida atual do ser, tanto quanto das vidas anteriores, até onde alcança a consciência de si mesmo.

            Esse esquema não invalida a classificação da ciência oficial que distribui o psiquismo humano em três planos distintos: consciente, subconsciente e inconsciente. Também não se choca com algumas das mais recentes especulações baseadas em experiências bem estudadas e documentadas.

            A reencarnação é hoje uma hipótese admitida com seriedade em elevados círculos científicos. Um dos pioneiros nesse trabalho, o Dr. Ian Stevenson, da Universidade de Virgínia, dedica-se com enorme interesse ao problema. Seu livro "Twenty Cases Suggestive of Reincarnation" ("Vinte Casos Presumidos de Reencarnação"), publicado nos Estados Unidos em 1966, relata e comenta uma seleção de casos retirados de seu considerável acervo. O Dr. Andrija Puharich desenvolve, no seu notável livro "The Sacred Mushroom" ("O Cogumelo Sagrado"), a teoria do MCC, "Mobile Center of Consciousness" ("Centro Móvel de Consciência"), segundo a qual admite o deslocamento da consciência e sua autonomia com relação ao corpo físico. Isso trocado em linguagem espírita quer dizer: desprendimento do Espirito e sua sobrevivência, embora ele não o afirme com essas palavras. O professor
Hamendra Banerjee, da Universidade de Rajastan, na índia, outro pesquisador da reencarnação, prefere dar ao fenômeno o título de "Extra Cerebral Memory" (ECM) , ou seja, memória extracerebral, desejando com isso dizer - tal como o Dr. Puharich - que a memória independe do apoio da estrutura do cérebro físico.

            Essas premissas e conceitos fundamentais são aqui repassados rapidamente, não apenas em benefício dos que não leram os dois primeiros artigos desta série, mas também para evidenciar que a ciência contemporânea não está desinteressada dos fenômenos da sobrevivência e da reencarnação. Tais noções são consideradas básicas, necessárias, mínimas para entendimento do fenômeno experimental da regressão de memória. E, sem mais digressões, passemos ao resumo do caso pesquisado.

Marat

3b. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972


            Há muito L. A. vinha insistindo para assistir a uma das reuniões de regressão de memória habitualmente realizadas em nosso grupo. Quando surgiu essa oportunidade, depois de acompanhar um outro caso, perguntei-lhe se não desejava também ser testado. Informou-me, então, que tentativas anteriores haviam frustrado, por ser ele refratário à hipnose clássica. Admitiu, entretanto, experimentar o método da magnetização por meio de passes longitudinais. Da minha parte havia um receio que se desdobrava em dois aspectos distintos, dado que as experiências até então conduzidas tinham sido meramente exploratórias e fragmentárias. O primeiro desses aspectos era a fantasia. Será que conseguiríamos evitar que ela levasse a melhor e deixasse solta a imaginação, fazendo perder o nosso trabalho? Outro aspecto era a vaidade. É que, remexendo antigas memórias do nosso ser, não seria difícil dar com uma ou outra encarnação em que ocupamos o centro do palco ou, pelo menos, desempenhamos, em certos acontecimentos, papel de relevo. Será que isso não poderia desencadear um processo qualquer de tensão interior imprevisível?

            Valia a pena correr o risco. Procuraríamos manter estrita vigilância e autocrítica imparcial e rigorosa. E assim foi feito o primeiro teste, ao qual o paciente reagiu de maneira surpreendente, mergulhando rapidamente num estado de profundo sono. Manifestava-se, porém, extremamente agitado; mais do que isso, possuído de intenso pavor. Na sua conversa algo desconexa e fragmentária, consegui identificar sua preocupação com Necker - que ele pronunciava à maneira francesa: Ne-quêr. Isto nos levava ao período da Revolução Francesa, mas a inquietação do sensitivo era muito grande e achei prudente despertá-lo. Acordou ainda assustado, fixando-me com um olhar profundo e aterrado, até que me identificou e se situou na consciência do presente. Estava com fome e ainda não tinha recuperado o controle de todo o corpo, porque a tentativa de caminhar resultou num tombo, felizmente sobre o tapete macio, de onde o levantamos para depositá-lo no sofá. Em poucos minutos estava em estado absolutamente normal, mas sem nenhuma consciência do que se passara durante o transe do desprendimento.

            Eu tinha mais perguntas do que respostas. Com quem falara eu? Seria algum Espírito desencarnado que se manifestara? Seria o próprio L. A., mergulhado nas lembranças de uma existência anterior? Qual seria a identidade daquele ser? Que estivera fazendo e pensando naqueles momentos de temor? Notei que ele desconfiara de tudo e de todos. Não quis dizer quem era nem o que fazia. Pairava sobre seu espírito um terror indefinível, mas todo poderoso e onipresente. Era certo, porém, que revivia episódios da Revolução, dado que Necker foi Ministro importante naquele período agitado da nação francesa.

            De qualquer forma, a pesquisa se anunciava bastante promissora e convinha aprofundá-la cautelosamente. Marcamos, pois, dia e hora para um trabalho sistemático e cercado de toda a segurança. Assim, a 19 de maio de 1967 iniciamos a tarefa.

            Ao cabo de alguns minutos de passes longitudinais, L. A. encontrava-se na sua infância, com todas as características da mente infantil. Morava com a família. O pai e a irmã trabalhavam fora. Respondeu corretamente à pergunta sobre os nomes de sua gente.

            Sabia que residia perto da estação, mas não era capaz de dizer o nome da cidade. Queixava-se de que a mãe não o deixava jogar bola na rua. Como eu lhe dissesse que o achava muito criança para isso, respondeu meio amuado:

            - Mas os outros jogam...

            Em seguida, aprofundando o sono, com passes continuados, foi recuando mais e mais no tempo. A regressão foi conferida novamente aos dois anos de idade até que, ao cabo de mais alguns minutos, parece ter transposto a barreira do tempo. Sua voz era agora de um adulto perfeitamente consciente de si e seguro nas respostas. Nada restava da mentalidade infantil de há pouco. Fui aos poucos sacando a sua história. Estudava no Colégio Louis-Ie-Grand, em Paris. "Estávamos", naturalmente, em 1785 e ele tinha 25 anos de idade, encontrando-se no último ano do curso de Direito. Nesse ponto, começou a notar algo familiar em mim. Declarou que me conhecia, mas não podia lembrar-se de como, de onde e nem de quando. Minhas perguntas lhe pareciam impertinentes e incompreensíveis. Ia ele pela rua afora e de repente me encontra e eu começo a lhe disparar questões absurdas, algumas das quais se recusa formalmente a responder-me. Acabou por me localizar na memória. Eu seria um certo Robert, sobrinho de um amigo de seu amigo Mirabeau.

            - Você conhece o Mirabeau? Que deveria eu responder? Não. Em suma, esse amigo do Mirabeau, de cuja amizade muito se orgulhava o meu interlocutor -  fosse ele quem fosse - era um tal de Browning e viera à França para cuidar de umas operações financeiras com Mirabeau. Aí, porém, as coisas lhe estavam muito confusas porque, segundo se lembrava muito bem, ele me conhecera em 1791 e eu teria por essa época não mais que uns dez ou onze anos de idade e ele me via agora um homem feito e a formular lhe perguntas idiotas. Muito confuso...

            Ah! o nome do "meu tio" era Rueben. E ele, como se chamava? Respondeu pausadamente, com visível orgulho e satisfação:

            - Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins.

            Nesse ponto, foi despertado. Esta, como todas as demais experiências, foram cuidadosamente gravadas.

Luís XVI enfrenta a guilhotina


3c. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972

            Começa, então, a desenrolar-se uma verdadeira novela em sucessivos e emocionantes capítulos, baseados, porém, numa realidade histórica irrecusável, longe da ficção.

            Uma pesquisa preliminar, na Enciclopédia Britânica - única fonte de referência ao  meu alcance no momento, confirmou o nome por extenso de Desmoulins e outros dados precisos, como data do seu nascimento, em 2 de março de 1760, e local: na cidade de Guise, em Aisne.

            Quanto ao problema do "meu tio", era mais complexo, pois que eu não dispunha de pronto de elementos para conferir. Embora eu tivesse conhecimento daquela minha encarnação na Inglaterra, na família Browning, não sabia da existência de um tio com o nome Rueben, nem se em 1791 fora a Paris. Quanto à idade, conferia, pois naquela existência eu teria renascido em 1781 e, portanto, em 1791 estaria realmente com dez anos, como ele estimara. E o tio?

            Na sessão seguinte, uma semana depois, disse ao sensitivo, já mergulhado no transe, que ele provavelmente se enganara, porque ao que pude apurar, tive um meio-irmão (por parte de pai) chamado Rueben, mas não um tio. Mas ele insistia em que era tio e se chamava Rueben. Descobri mais tarde, num documento que mandara vir da Inglaterra, que ele tinha razão: houve um tio Rueben Browning, por sinal alto funcionário de um banco e que trabalhava para os Rotschild, em Paris.

            A coisa assumia, assim, características de autenticidade, mas havia um aspecto que me intrigava bastante. É que no estado de transe, o sensitivo parecia ter acesso exclusivamente à sua memória de Desmoulins, ignorando totalmente a existência de L. A., os conhecimentos e as crenças deste. Por que o hiato? Meditando durante o intervalo entre uma experiência e outra, concluí que ele evitava cuidadosamente a cena terrível da decapitação, e era tal o seu pavor de passar novamente por ela que as lembranças perderam a continuidade naquele ponto e funcionavam como se retidas em compartimentos estanques, incomunicáveis. Para unir, portanto, as duas pontas era preciso vencer aquele bloqueio. E a oportunidade não tardou.

            Falava ele sobre a possibilidade de prosseguir com a Revolução, mantendo no trono o Rei. Desejei saber, então, em que ano "nos encontrávamos". A pergunta, como tantas outras, era ridícula para ele, pois, naturalmente, estávamos em 1793. Pedi então que ele fosse em frente no tempo e me dissesse o que aconteceu depois disso. Senti que ele parou para pensar ante o absurdo que lhe propunha aquele estranho interlocutor. Se estávamos em 1793, como é que ele poderia saber o que iria acontecer no futuro? E perguntou, para corrigir:

            - Você quer dizer antes de 1793, não é?

            - Não - respondi implacável. - Quero dizer depois mesmo. O seu espírito sabe. Vamos em frente.

            Vi montar a agitação e o pânico, até que reviveu a indescritível e penosa cena da decapitação. Invoquei o socorro dos nossos amigos espirituais para que tudo fosse feito com segurança e apliquei-lhe prolongados passes de imposição. Ao cabo de alguns momentos, banhado em suor, chorava por Lucille, sua esposa, e que ficara abandonada ao Terror e aos seus inimigos políticos. (Foi também decapitada dias depois.)

            Acabou por se convencer, diante da evidência e da minha insistência, que, apesar da morte, permanecia vivo, o que contrariava formalmente suas expectativas, pois era totalmente descrente da sobrevivência e da existência de Deus. Mas, fatos eram fatos: estava vivo, não havia dúvida, pois continuava a pensar e a falar depois da agonia terrível da guilhotina.

            Havia, pois, um bloqueio impedindo o livre trânsito de suas recordações entre a vida anterior e a presente. Como Camille, não sabia da existência de L. A., nem mesmo admitia as ideias que hoje aceita e defende. Creio que podemos supor aí um mecanismo de fuga, dado que seu espírito, ainda traumatizado, evitava enfrentar novamente a penosíssima lembrança da guilhotina, abandonando deliberadamente todas as vivências posteriores. Vencida a barreira, realiza-se notável fenômeno de aceitação e de integração da personalidade. Daí em diante, pode recordar-se tranquilamente da vida como Desmoulins sem novamente sofrer as angústias e tensões de então, ou por outra, na sua linguagem, sem "estar lá". A nova realidade, não obstante, não invade subitamente seu espírito como o clarão de um relâmpago, mas sim como a gradativa iluminação de um amanhecer. Dá-se, então, um momento de profunda beleza e poesia. Perguntado o que acontecera depois da "morte", respondeu que viera para o Brasil.

            - Fazer o quê?

            - Viver - foi a resposta.

            Quanto a Lucille, era fácil para mim supor que, de alguma forma ou de outra, deveria continuar ligada ao seu espírito. Informou-me ele, então, que Lucille Desmoulins renascera como Ana Lúcia, sua filha atual. Depois, haveríamos de verificar, ainda, que o nome verdadeiro de Lucille era Anne Lucie, ou seja, Ana Lúcia, e que ambas nasceram no mesmo dia e mês, 24 de abril, com uma diferença de cerca de cento e oitenta anos. Ainda não foi possível conferir essas datas, porque não encontramos referência ao dia do nascimento de Lucille, mas uma discrepância aí seria a primeira em todo um acervo enorme de dados. Aliás, é preciso acrescentar aqui que não procuramos estudar em maior profundidade a Revolução Francesa, senão depois de algumas sessões, porque se poderia alegar que estávamos apenas sacando do nosso subconsciente as informações que vinham surgindo ao correr dos diálogos gravados. Era preciso, no entanto, verificar alguns dados e fatos para que pudéssemos avaliar até onde se podia confiar nas revelações e evitar que enveredássemos pelo caminho da fantasia inconsequente. Há sobre isso um episódio interessante, entre muitos outros que seria impraticável reproduzir num simples artigo. O sensitivo informou, certa vez, em transe, que a Sra. Duplessis-Laridon, mãe de Lucille, era conhecida na intimidade por Madame Darrone. Por muito tempo pesquisei esse ponto, sem o menor resultado. Cerca de dois anos depois, ao passar por uma livraria, em companhia de L. A. e de César Burnier - que desempenha nesta pesquisa importante papel -, encontrei num velho volume de história da Revolução a confirmação de que Mme. Duplessis tinha o apelido de Madame Darrone.

            Outro problema havia extremamente curioso. No estado de transe, L. A. gaguejava de maneira bastante peculiar. Não era a gagueira simples de quem repete, mas sim daquele que se demora nas sílabas iniciais e depois solta o resto da palavra de um só impulso. Seria Camille Desmoulins gago? Não quis formular a pergunta de modo direto. Perguntei-lhe se ele fora bom orador. Respondeu que, muito pelo contrário, tinha grande dificuldade em falar. Esse era, aliás, um dos pontos mais sensíveis da sua personalidade, evidentemente vaidosa, e ainda mais que Robespierre o fazia sofrer muito com isso, pois zombava impiedosamente dele. A Lucille, não. Ela compreendia e era paciente com o seu defeito. Só de falar nisso, entretanto, a sua agitação e mal-estar foram num crescendo a que tivemos de por fim, mudando de assunto, pois se queixava de que estava ficando muito nervoso.

Danton

3d. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972

            E, nessas conversas semanais, às vezes por mais de uma hora, gravamos o fantástico diálogo por cima da barreira do tempo, à medida que se desenrolava diante de mim o relato da Revolução Francesa por uma testemunha ocular que vivera muitos dos seus mais destacados episódios. Lá estavam no seu depoimento as figuras controvertidas de Robespierre e de Marat (atualmente no Brasil, onde se destacou novamente como político, jornalista e orador brilhante). Tanto quanto vultos menores, tais como Saint-Just, Madame Rolland e inúmeros outros, conhecidos ou obscuros. E nesse desfile de passadas grandezas e misérias, no entanto, avultava a notável personalidade de Danton, por quem Camille revelava irrestrita admiração.

            - Danton era homem! - dizia ele, cheio de respeito.

            Tendo subido juntos à guilhotina - e ele sabia muito bem o nome de todos os companheiros de execução naquele dia - eu lhe perguntei como morrera Danton e ele, absolutamente coerente, respondeu que não sabia porque fora guilhotinado antes do grande orador. Relatou, porém, episódios pessoais apagados, que a História nem sequer registra ou apenas menciona de passagem em poucas palavras. Um deles nos serviu para verificação muito interessante.

            Recebi um dia, antes da sessão, um envelope fechado contendo solicitação de um amigo que me pedia para formular a L. A. uma pergunta, depois que ele estivesse em transe. L. A. ignorava, naturalmente, o teor da pergunta.

            Alcançado o transe, formulei a pergunta, que dizia respeito a uma frase que Desmoulins teria dito aos seus amigos, numa reunião em sua casa e que assumira o tom melancólico de uma despedida, já em pleno reinado do Terror. Feita a pergunta, ele desejou saber se era importante, ou seja, se valia a pena o esforço de buscar na memória a informação solicitada. Disse-lhe eu que julgava importante, de vez que era um teste. Ele calou-se por alguns instantes, depois de dizer que, sendo assim, iria lá. Iria como? E onde? Não sei. Em seguida, disse-me que já estava lá. Repeti a pergunta e ele narrou o caso. Foi realmente uma festa na sua casa. O Terror campeava, e muitos dos presentes sentiam-se já com os dIas contados. Para não afligir sua mulher, Camille citou uma frase latina que dizia:

            "Comamos e bebamos que amanhã estaremos todos mortos".

            Era essa de fato a frase que a pessoa queria saber e isso lhe foi comunicado naquela mesma noite, já tarde, pelo telefone. Conferiu, mais uma vez. Um problema, no entanto, restava. Havia, obviamente, uma diferença entre reviver os episódios e apenas recordar-se deles. Qual a mecânica dos processos e como se decidia ele por um ou por outro? Como se realizava esse deslocamento no tempo e no espaço? E se era espaço mesmo, no sentido em que o entendemos, onde estava hoje aquela cena com a presença de seus amigos, as alegrias e as tensões do momento de angústia e a lembrança da frase latina pejada de presságios sombrios? Notava eu, por outro lado, que a recordação era serena ou, pelo menos, sob a influência de uma emoção normal e contida, ao passo que a revivescência dos episódios trazia consigo, ao vivo, toda a carga emocional que neles se continha - suas dores, suas aflições, suas alegrias, tensões e esperanças.

            Muitos outros pormenores temos de sacrificar para não alongar demais esta breve notícia; julgo conveniente, porém, relatar mais um, pelo seu notável valor probante. Num dos seus prolongados diálogos, em transe, referiu-se o sensitivo sobre uma irmã morta em consequência de um "ramo de ar". O inusitado da expressão despertou minha curiosidade. Como era mesmo em francês? "Branche d'air", confirmou ele. Mas que doença era essa? Ele não sabia explicar, mas informou que essas palavras eram empregadas por um cidadão português chamado Lopes, dono de um café onde intelectuais, artistas e revolucionários sonhadores se reuniam para comer, beber e discutir suas teorias. Chamava-se esse famoso bar: Café Procope, e existe até hoje, em Paris. Consegui, através de um amigo, um cartão postal no qual se confirma que ali se reuniam nos velhos tempos figuras que a História consagrou, como Danton, Robespierre, Marat e outros. Dizia o Lopes que, tomando cerveja e berrando daquele jeito, eles acabariam morrendo dum... ramo de ar

            Por muito tempo pesquisei inutilmente a razão de ser da expressão, até mesmo em léxIcos franceses altamente especializados. Um dia, porém, demos com ela numa enciclopédia portuguesa (de Portugal). A expressão existia realmente e era uma espécie de "estupor", ou seja, uma crise circulatória. O bom do Lopes estava, pois, introduzindo um neologismo, de origem portuguesa, no seu boteco em Paris.



 Camille Desmoulins


3e. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972



            No meio de tantas emoções, sob o impacto daquelas memórias revividas da Revolução, uma sessão especial ficou muito bem demarcada. É que, à medida que o trabalho prosseguia e dele tomavam conhecimento alguns amigos mais íntimos, houve uma curiosidade muito grande e também o desejo de fazermos mais alguns testes. Combinamos, assim, uma reunião com um grupo reduzido, do qual fazia parte um médico (que constatou na hora a ausência dos reflexos no sensitivo, durante o transe) e alguns companheiros de doutrina, de inteira confiança, pois a seriedade do trabalho e os cuidados que tomávamos não permitiriam que fosse transformado em espetáculo público.

            No dia e hora aprazados, vieram os amigos previstos, mais um senhor, desconhecido meu e também de L. A.. Fomos apresentados naquele momento. Chamava-se César burnier, era advogado, funcionário aposentado do Ministério da Fazenda. Viera na sua dupla condição de espírita e de profundo conhecedor da história da França, em geral, e da Revolução Francesa, em particular.

            Iniciamos os trabalhos, como sempre, com uma prece e logo que L. A. atingiu o transe anunciou que se encontrava presente o Marius. Quem seria Marius, porém? Descobrimos depois que Marius era um apelido que Lucille havia colocado em Danton e a figura do grande orador revolucionário foi então identificada com César Burnier que, aliás, tinha conhecimento dessa identificação, mas nunca a apregoara por natural sentimento de reserva. Presenciamos, então, uma das cenas mais emocionantes de toda a série de experiências, pois naquele exato momento, na sala carregada de tensão, no meu apartamento, em Botafogo, reencontravam-se, após 173 anos, Camille Desmoulins e Jacques Danton. A última vez que se viram "em vida" foi no palco sangrento da guilhotina, momentos antes do surdo golpe da lâmina implacável. E por sobre mais de século e meio reata-se uma amizade que o fio de aço cortou, no mesmo ponto em que a deixaram os dois espíritos. Conta a História que, já no patíbulo, Danton e Desmoulins, velhos amigos e companheiros, quiseram trocar um beijo fraterno de despedida, antigo costume francês. O carrasco "recusou" a permissão e Danton, o grande fazedor de frases espetaculares, declarou:

            - Que importa, se nossas cabeças se beijarão dentro de alguns instantes no cesto?

            É que havia um cesto que recolhia as cabeças decepadas. Cento e setenta e três anos depois, mal se reencontraram, Camille Desmoulins, renascido em L. A., me diz:

            - Hermínio, pede ao Danton que me dê um beijo...

            César curvou-se respeitosamente e depositou o beijo há tanto tempo devido sobre a testa do amigo reencontrado. Era insuportável a emoção de todos os presentes, mas especialmente dos dois protagonistas que no século XX reatam uma amizade que floresceu tragicamente no século XVIII.

            O diálogo prosseguiu difícil, pois a tensão era grande e L. A. dependia exclusivamente de mim, para dialogar com Danton-César, porque, em "rapport" comigo, não ouvia César. Este, porém, ficou convencido de que a Revolução não tinha segredo, nem mesmo nas suas minúcias, intimidades e bastidores, para o sensitivo em transe.

            Mais outra identificação se faria naquela noite memorável, pois L. A. declarou que também se encontrava presente, entre nós, o abade Bossut - e disse o nome atual da pessoa indicada (A. I. M.). Segundo ele, o abade havia sido professor de matemática e física ao tempo da Revolução, especialista em hidráulica e autor de várias obras didáticas sobre tais assuntos. Camille, que estudara nos seus livros, lhe teria arranjado um salvo-conduto que o livrou da fúria assassina do Terror. (Veremos depois a razão de ser deste episódio.)  O problema, no entanto, consistia em descobrir aquele obscuro Bossut. Terminada a sessão e repassadas por todos as emoções ali vividas, pusemo-nos à procura de Bossut na enciclopédia. Seria Bossy? Ou Bossit? Ou Bossu? Nada se encontrou naquela noite, nem nos dias que se seguiram, mas acabamos por localizar as referências. Descobri um dia um verbete sobre ele em velhos livros franceses na Biblioteca Pública de Barra Mansa. Chamava-se Charles Bossut, fora realmente sacerdote e matemático, escrevera livros sobre sua especialidade, destacando-se obras sobre hidráulica e viveu na época da Revolução. Dizia até o livro que, já nas últimas, desinteressado da vida e sem reagir a nada, somente uma coisa o fez falar. Perguntaram-lhe qual o quadrado de 12. O velho professor então não saberia disso? Respondeu firme:

            - Cento e quarenta e quatro.

            Foram suas últimas palavras. O abade Bossut renasceria outra vez na França, onde se tornou um grande cientista e pensador; apoiando seu enorme saber nas suas velhas e familiares disciplinas - a física e a matemática. Chamou-se, nessa vida, Henri Poincaré, figura eminente da ciência mundial. Acha-se novamente encarnado, desta vez no Brasil, longe do brilho e das pompas acadêmicas, devotado à sua família e ao movimento espírita, no qual se destaca merecidamente pelos seus dotes morais e intelectuais.

            Outra identificação: a do abade Bérardier, diretor do Colégio Louis-le-Grand e muito estimado por Desmoulins, tanto que foi seu padrinho de casamento. Atualmente está reencarnado na pessoa de um médico-professor, sendo outra vez padrinho do casamento de L.A. 


Maria Antonieta

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