Queda da Bastilha
3a. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972
Para encerrar esta série acerca da regressão de memória,
pareceu-me apropriado aceitar uma sugestão para narrar uma experiência pessoal,
recente, extensa e bem documentada, sobre a qual
será oportunamente publicado um livro, que relatará todo o caso com seus
pormenores, datas e nomes. A experiência foi feita com o confrade L. A.. Para entender o fenômeno
nos seus antecedentes e nas suas implicações, precisamos admitir como válidas e
pacíficas algumas premissas fundamentais, ainda que apenas como hipótese de trabalho, se
assim desejarem classificá-las os pesquisadores agnósticos. Tais premissas podem ser
resumidas da seguinte maneira:
1. O Espírito existe, preexiste e sobrevive e, portanto,
reencarna-se.
2. O homem encarnado é um "arranjo" temporário de três
"componentes" básicos: Espírito, perispírito, corpo físico.
3. O perispírito tem a faculdade de desprender-se do corpo
físico conservando-se, no entanto, ligado a ele por um cordão fluídico.
4. O desprendimento se dá espontaneamente durante o sono
fisiológico ou mesmo em estados de relaxamento, como também pode ser provocado
por drogas, hipnose, magnetização, exaustão física, choques traumáticos de
fundo emocional ou físico.
5. O perispírito traz os registros indeléveis da vida atual do
ser, tanto quanto das vidas anteriores, até onde alcança a consciência de si
mesmo.
Esse esquema não invalida a classificação da ciência
oficial que distribui o psiquismo humano em três planos
distintos: consciente, subconsciente e inconsciente. Também não se choca com
algumas das mais recentes especulações baseadas em experiências bem estudadas e
documentadas.
A reencarnação é hoje uma hipótese admitida com seriedade
em elevados círculos científicos. Um dos pioneiros nesse trabalho, o Dr. Ian
Stevenson, da Universidade de Virgínia, dedica-se com enorme interesse ao problema.
Seu livro "Twenty Cases Suggestive of Reincarnation" ("Vinte
Casos Presumidos de Reencarnação"), publicado nos Estados Unidos em 1966,
relata e comenta uma seleção de casos retirados de seu considerável acervo. O
Dr. Andrija Puharich desenvolve, no seu notável livro "The Sacred
Mushroom" ("O Cogumelo Sagrado"), a
teoria do MCC, "Mobile Center of Consciousness" ("Centro Móvel de Consciência"),
segundo a qual admite o deslocamento da consciência e sua autonomia com relação ao corpo
físico. Isso trocado em linguagem espírita quer dizer: desprendimento do
Espirito e sua sobrevivência, embora ele não o afirme com essas palavras. O professor
Hamendra Banerjee, da
Universidade de Rajastan, na índia, outro pesquisador da reencarnação, prefere
dar ao fenômeno o título de "Extra Cerebral Memory" (ECM) , ou seja,
memória extracerebral, desejando com isso dizer - tal como o Dr. Puharich - que
a memória independe do apoio
da estrutura do cérebro físico.
Essas premissas e conceitos fundamentais são aqui
repassados rapidamente, não apenas em benefício dos que não leram os dois
primeiros artigos desta série, mas também para evidenciar que a ciência
contemporânea não está desinteressada dos fenômenos da sobrevivência e da
reencarnação. Tais noções são consideradas básicas, necessárias, mínimas para
entendimento do fenômeno experimental da regressão de memória. E, sem mais
digressões, passemos ao resumo do caso pesquisado.
Marat
3b. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972
Há muito L. A. vinha insistindo para assistir a uma das
reuniões de regressão de memória habitualmente realizadas em nosso grupo.
Quando surgiu essa oportunidade, depois de acompanhar um outro caso,
perguntei-lhe se não desejava também ser testado. Informou-me, então, que
tentativas anteriores haviam frustrado, por ser ele refratário à hipnose clássica. Admitiu,
entretanto, experimentar o método da magnetização por meio de passes longitudinais.
Da minha parte havia um receio que se desdobrava em dois aspectos distintos,
dado que as experiências até então conduzidas tinham sido meramente
exploratórias e fragmentárias. O primeiro desses aspectos era a fantasia. Será
que conseguiríamos evitar que ela levasse a melhor e deixasse solta a
imaginação, fazendo perder o nosso trabalho? Outro aspecto era a vaidade. É
que, remexendo antigas memórias do nosso ser, não seria difícil dar com uma ou
outra encarnação em que ocupamos o centro do palco ou, pelo menos,
desempenhamos, em certos acontecimentos, papel de relevo. Será que isso não
poderia desencadear um processo qualquer de tensão interior imprevisível?
Valia a pena correr o risco. Procuraríamos manter estrita
vigilância e autocrítica imparcial e rigorosa. E assim foi feito o primeiro
teste, ao qual o paciente reagiu de maneira surpreendente, mergulhando
rapidamente num estado de profundo sono. Manifestava-se, porém, extremamente
agitado; mais do que isso, possuído de intenso pavor. Na sua conversa algo
desconexa e fragmentária, consegui identificar sua preocupação com Necker - que
ele pronunciava à maneira francesa: Ne-quêr. Isto nos levava ao período da
Revolução Francesa, mas a inquietação do sensitivo era muito grande e achei prudente
despertá-lo. Acordou ainda assustado, fixando-me com um olhar profundo e
aterrado, até que me identificou e se situou na consciência do presente. Estava
com fome e ainda não tinha recuperado o controle de todo o corpo, porque a
tentativa de caminhar resultou num tombo, felizmente sobre o tapete macio, de
onde o levantamos para depositá-lo no sofá. Em poucos minutos estava em estado
absolutamente normal, mas sem nenhuma consciência do que se passara durante o
transe do desprendimento.
Eu tinha mais perguntas do que respostas. Com quem falara
eu? Seria algum Espírito desencarnado que se
manifestara? Seria o próprio L. A., mergulhado nas lembranças de uma existência anterior?
Qual seria a identidade daquele ser? Que estivera fazendo e pensando naqueles
momentos de temor? Notei que ele desconfiara de tudo e de todos. Não quis dizer
quem era nem o que fazia. Pairava sobre seu espírito um terror indefinível, mas
todo poderoso e onipresente. Era certo, porém, que revivia episódios da
Revolução, dado que Necker foi Ministro importante naquele período agitado da
nação francesa.
De qualquer forma, a pesquisa se anunciava bastante
promissora e convinha aprofundá-la cautelosamente. Marcamos, pois, dia e hora
para um trabalho sistemático e cercado de toda a segurança.
Assim, a 19 de maio de 1967 iniciamos a tarefa.
Ao cabo de alguns minutos de passes longitudinais, L. A.
encontrava-se na sua infância, com todas as características da mente infantil.
Morava com a família. O pai e a irmã trabalhavam fora. Respondeu corretamente à
pergunta sobre os nomes de sua gente.
Sabia que residia perto da estação, mas não era capaz de
dizer o nome da cidade. Queixava-se de que a mãe não o deixava jogar bola na
rua. Como eu lhe dissesse que o achava muito criança para isso, respondeu meio
amuado:
- Mas os outros jogam...
Em seguida, aprofundando o sono, com passes continuados,
foi recuando mais e mais no tempo. A regressão foi
conferida novamente aos dois anos de idade até que, ao cabo de mais alguns minutos,
parece ter transposto a barreira do tempo. Sua voz era agora de um adulto perfeitamente
consciente de si e seguro nas respostas. Nada restava da mentalidade infantil
de há pouco. Fui aos poucos sacando a sua história. Estudava no Colégio Louis-Ie-Grand,
em Paris. "Estávamos", naturalmente, em 1785 e ele tinha 25 anos de
idade, encontrando-se no último ano do curso de Direito. Nesse ponto, começou a
notar algo familiar em mim. Declarou
que me conhecia, mas não podia lembrar-se de como, de onde e nem de quando. Minhas
perguntas lhe pareciam impertinentes e incompreensíveis. Ia ele pela rua afora e de
repente me encontra e eu começo a lhe disparar questões absurdas, algumas das
quais se recusa formalmente a responder-me. Acabou por me localizar na memória. Eu seria um certo
Robert, sobrinho de um amigo de seu amigo Mirabeau.
- Você conhece o Mirabeau? Que deveria eu responder? Não.
Em suma, esse amigo do Mirabeau, de cuja amizade muito se orgulhava o meu
interlocutor - fosse ele quem fosse - era um tal de
Browning e viera à França para cuidar de umas operações financeiras com
Mirabeau. Aí, porém, as coisas lhe estavam muito confusas porque, segundo se
lembrava muito bem, ele me conhecera em 1791 e eu teria por essa época não mais
que uns dez ou onze anos de idade e ele me via agora um homem feito e a
formular lhe perguntas idiotas. Muito confuso...
Ah! o nome do "meu tio" era Rueben. E ele, como
se chamava? Respondeu pausadamente, com visível orgulho e satisfação:
- Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins.
Nesse ponto, foi despertado. Esta, como todas as demais
experiências, foram cuidadosamente gravadas.
Luís XVI enfrenta a guilhotina
3c. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972
Começa, então, a desenrolar-se uma verdadeira novela em
sucessivos e emocionantes capítulos, baseados, porém, numa realidade histórica
irrecusável, longe da ficção.
Uma pesquisa preliminar, na Enciclopédia Britânica -
única fonte de referência ao meu alcance no momento,
confirmou o nome por extenso de Desmoulins e outros dados precisos, como data
do seu nascimento, em 2 de março de 1760, e local: na cidade de Guise, em
Aisne.
Quanto ao problema do "meu tio", era mais
complexo, pois que eu não dispunha de pronto de elementos para
conferir. Embora eu tivesse conhecimento daquela minha encarnação na
Inglaterra, na família Browning, não sabia da existência de um tio com o nome Rueben, nem se em 1791
fora a Paris. Quanto à idade, conferia, pois naquela existência eu teria renascido
em 1781 e, portanto, em 1791 estaria realmente com dez anos, como ele estimara. E
o tio?
Na sessão seguinte, uma semana depois, disse ao
sensitivo, já mergulhado no transe, que ele provavelmente se
enganara, porque ao que pude apurar, tive um meio-irmão (por parte de pai) chamado
Rueben, mas não um tio. Mas ele insistia em que era tio e se chamava Rueben. Descobri
mais tarde, num documento que mandara vir da Inglaterra, que ele tinha razão: houve um
tio Rueben Browning, por sinal alto funcionário de um banco e que trabalhava para os
Rotschild, em Paris.
A coisa assumia, assim, características de autenticidade,
mas havia um aspecto que me intrigava bastante. É que no estado de transe, o
sensitivo parecia ter acesso exclusivamente à sua memória de Desmoulins,
ignorando totalmente a existência de L. A., os conhecimentos e as crenças
deste. Por que o hiato? Meditando durante o intervalo entre uma experiência e
outra, concluí que ele evitava cuidadosamente a cena terrível da decapitação, e
era tal o seu pavor de passar novamente por ela que as lembranças perderam a
continuidade naquele ponto e funcionavam como se retidas em compartimentos
estanques, incomunicáveis. Para unir, portanto, as duas pontas era preciso
vencer aquele bloqueio. E a oportunidade não tardou.
Falava ele sobre a possibilidade de prosseguir com a
Revolução, mantendo no trono o Rei. Desejei saber, então,
em que ano "nos encontrávamos". A pergunta, como tantas outras, era ridícula para
ele, pois, naturalmente, estávamos em 1793. Pedi então que ele fosse em frente no tempo e
me dissesse o que aconteceu depois disso. Senti que ele parou para pensar ante o absurdo
que lhe propunha aquele estranho interlocutor. Se estávamos em 1793, como é que
ele poderia saber o que iria acontecer no futuro? E perguntou, para corrigir:
- Você quer dizer antes de 1793, não é?
- Não - respondi implacável. - Quero dizer depois mesmo.
O seu espírito sabe. Vamos em frente.
Vi montar a agitação e o pânico, até que reviveu a
indescritível e penosa cena da decapitação. Invoquei o socorro dos nossos
amigos espirituais para que tudo fosse feito com segurança e apliquei-lhe
prolongados passes de imposição. Ao cabo de alguns momentos, banhado em suor,
chorava por Lucille, sua esposa, e que ficara abandonada ao Terror e aos seus
inimigos políticos. (Foi também decapitada dias depois.)
Acabou por se convencer, diante da evidência e da minha
insistência, que, apesar da morte, permanecia vivo, o
que contrariava formalmente suas expectativas, pois era totalmente descrente da
sobrevivência e da existência de Deus. Mas, fatos eram fatos: estava vivo, não
havia dúvida, pois continuava a pensar e a falar depois da agonia terrível da
guilhotina.
Havia, pois, um bloqueio impedindo o livre trânsito de
suas recordações entre a vida anterior e a presente. Como Camille, não sabia da
existência de L. A., nem mesmo admitia as ideias que hoje aceita e defende.
Creio que podemos supor aí um mecanismo de fuga, dado que seu espírito, ainda
traumatizado, evitava enfrentar novamente a penosíssima lembrança da
guilhotina, abandonando deliberadamente todas as vivências posteriores. Vencida
a barreira, realiza-se notável fenômeno de aceitação e de integração da personalidade.
Daí em diante, pode recordar-se tranquilamente da vida como Desmoulins sem
novamente sofrer as angústias e tensões de então, ou por outra, na sua
linguagem, sem "estar lá". A nova realidade, não obstante, não invade
subitamente seu espírito como o clarão de um relâmpago, mas sim como a
gradativa iluminação de um amanhecer. Dá-se, então, um momento de profunda
beleza e poesia. Perguntado o que acontecera depois da "morte",
respondeu que viera para o Brasil.
- Fazer o quê?
- Viver - foi a resposta.
Quanto a Lucille, era fácil para mim supor que, de alguma
forma ou de outra, deveria continuar ligada ao seu espírito. Informou-me ele,
então, que Lucille Desmoulins renascera como Ana Lúcia, sua filha atual.
Depois, haveríamos de verificar, ainda, que o nome verdadeiro de Lucille era
Anne Lucie, ou seja, Ana Lúcia, e que ambas nasceram no mesmo dia e mês, 24 de
abril, com uma diferença de cerca de cento e oitenta anos. Ainda não foi possível conferir essas
datas, porque não encontramos referência ao dia do nascimento de Lucille, mas
uma discrepância aí seria a primeira em todo um acervo enorme de dados. Aliás, é preciso
acrescentar aqui que não procuramos estudar em maior profundidade a Revolução
Francesa, senão depois de algumas sessões, porque se poderia alegar que
estávamos apenas sacando do nosso subconsciente as informações que vinham
surgindo ao correr dos diálogos
gravados. Era preciso, no entanto, verificar alguns dados e fatos para que pudéssemos avaliar até
onde se podia confiar nas revelações e evitar que enveredássemos pelo caminho
da fantasia inconsequente. Há sobre isso um episódio interessante, entre muitos
outros que seria impraticável reproduzir num simples artigo. O sensitivo informou,
certa vez, em transe, que a Sra. Duplessis-Laridon, mãe de Lucille, era
conhecida na intimidade por Madame Darrone. Por muito tempo pesquisei esse
ponto, sem o menor resultado. Cerca de dois anos depois, ao passar por uma
livraria, em companhia de L. A. e de César Burnier - que desempenha nesta
pesquisa importante papel -, encontrei num velho volume de história da
Revolução a confirmação de que Mme. Duplessis tinha o apelido de Madame
Darrone.
Outro problema havia extremamente curioso. No estado de
transe, L. A. gaguejava de maneira bastante peculiar. Não era a gagueira
simples de quem repete, mas sim daquele que se demora nas sílabas
iniciais e depois solta o resto da palavra de um só impulso. Seria Camille Desmoulins
gago? Não quis formular a pergunta de modo direto. Perguntei-lhe se ele fora
bom orador. Respondeu que, muito pelo contrário, tinha grande dificuldade em falar. Esse era, aliás,
um dos pontos mais sensíveis da sua personalidade, evidentemente vaidosa, e
ainda mais que Robespierre o fazia sofrer muito com isso, pois zombava
impiedosamente dele. A Lucille, não. Ela compreendia e era paciente com o seu defeito. Só de falar
nisso, entretanto, a sua agitação e mal-estar foram num crescendo a que tivemos
de por fim, mudando de assunto, pois se queixava de que estava ficando muito
nervoso.
Danton
3d. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972
E,
nessas conversas semanais, às vezes por mais de uma hora, gravamos o fantástico diálogo por cima da
barreira do tempo, à medida que se desenrolava diante de mim o relato da
Revolução Francesa por uma testemunha ocular que vivera muitos dos seus mais destacados episódios. Lá
estavam no seu depoimento as figuras controvertidas de Robespierre e de Marat
(atualmente no Brasil, onde se destacou novamente como político, jornalista e
orador brilhante). Tanto quanto vultos menores, tais como Saint-Just, Madame
Rolland e inúmeros outros, conhecidos ou obscuros. E nesse desfile de passadas grandezas e misérias, no entanto,
avultava a notável personalidade de Danton, por quem Camille revelava
irrestrita admiração.
- Danton era homem! - dizia ele, cheio de respeito.
Tendo subido juntos à guilhotina - e ele sabia muito bem
o nome de todos os companheiros de execução naquele dia - eu lhe perguntei como
morrera Danton e ele, absolutamente coerente, respondeu que não sabia porque
fora guilhotinado antes do grande orador. Relatou, porém, episódios pessoais
apagados, que a História nem sequer registra ou apenas menciona de passagem em
poucas palavras. Um deles nos serviu para verificação muito interessante.
Recebi um dia, antes da sessão, um envelope fechado
contendo solicitação de um amigo que me pedia para formular a L. A. uma
pergunta, depois que ele estivesse em
transe. L. A. ignorava, naturalmente, o teor da pergunta.
Alcançado o transe, formulei a pergunta, que dizia
respeito a uma frase que Desmoulins teria dito aos seus amigos, numa reunião em
sua casa e que assumira o tom melancólico de uma despedida, já em pleno reinado
do Terror. Feita a pergunta, ele desejou saber se era importante, ou seja, se valia
a pena o esforço de buscar na memória a informação solicitada. Disse-lhe eu que
julgava importante, de vez que era um teste. Ele calou-se por alguns instantes,
depois de dizer que, sendo assim, iria lá.
Iria como? E lá onde? Não sei. Em
seguida, disse-me que já estava lá.
Repeti a pergunta e ele narrou o caso. Foi realmente uma festa na sua casa. O
Terror campeava, e muitos dos presentes sentiam-se já com os dIas contados.
Para não afligir sua mulher, Camille citou uma frase latina que dizia:
"Comamos e bebamos que amanhã estaremos todos
mortos".
Era essa de fato a frase que a pessoa queria saber e isso
lhe foi comunicado naquela mesma noite, já tarde,
pelo telefone. Conferiu, mais uma vez. Um problema, no entanto, restava. Havia,
obviamente, uma diferença entre reviver os episódios e apenas recordar-se deles. Qual a mecânica dos
processos e como se decidia ele por um ou por outro? Como se realizava esse
deslocamento no tempo e no espaço? E se era espaço mesmo, no sentido em que o entendemos, onde
estava hoje aquela cena com a presença de seus amigos, as alegrias e as tensões
do momento de angústia e a lembrança da frase latina pejada de presságios
sombrios? Notava eu, por outro lado, que a recordação era serena ou, pelo
menos, sob a influência de uma emoção normal e contida, ao passo que a
revivescência dos episódios trazia consigo, ao vivo, toda a carga emocional que
neles se continha - suas dores, suas aflições, suas
alegrias, tensões e esperanças.
Muitos outros pormenores temos de sacrificar para não
alongar demais esta breve notícia; julgo conveniente, porém, relatar mais um,
pelo seu notável valor probante. Num dos seus prolongados diálogos, em transe,
referiu-se o sensitivo sobre uma irmã morta em consequência de um
"ramo de ar". O inusitado da expressão despertou minha curiosidade. Como era mesmo em francês?
"Branche d'air", confirmou ele. Mas que doença era essa? Ele não
sabia explicar, mas informou que essas palavras eram empregadas por um cidadão português chamado Lopes,
dono de um café onde intelectuais, artistas e revolucionários sonhadores se reuniam para
comer, beber e discutir suas teorias. Chamava-se esse famoso bar: Café Procope, e
existe até hoje, em Paris. Consegui, através de um amigo, um cartão postal no
qual se confirma que ali se reuniam nos velhos tempos figuras que a História
consagrou, como Danton, Robespierre, Marat e outros. Dizia o Lopes que, tomando
cerveja e berrando daquele jeito, eles acabariam morrendo dum... ramo de ar.
Por muito tempo pesquisei inutilmente a razão de ser da
expressão, até mesmo em léxIcos franceses altamente especializados. Um dia,
porém, demos com ela numa enciclopédia portuguesa (de Portugal). A expressão
existia realmente e era uma espécie de "estupor", ou seja, uma crise
circulatória. O bom do Lopes estava, pois, introduzindo um neologismo, de
origem portuguesa, no seu boteco em Paris.
Camille Desmoulins
3e. "Regressão de Memória"
por Hermínio C. Miranda
in Reformador (FEB) Agosto 1972
No meio de tantas emoções, sob o impacto daquelas memórias
revividas da Revolução, uma sessão especial ficou muito bem demarcada. É que, à
medida que o trabalho prosseguia e dele tomavam conhecimento alguns amigos mais
íntimos, houve uma curiosidade muito grande e também o desejo de fazermos mais
alguns testes. Combinamos, assim, uma reunião com um grupo reduzido, do qual
fazia parte um médico (que constatou na hora a ausência dos reflexos no
sensitivo, durante o transe) e alguns companheiros de doutrina, de inteira
confiança, pois a seriedade do trabalho e os cuidados que tomávamos não
permitiriam que fosse transformado em espetáculo público.
No dia e hora aprazados, vieram os amigos previstos, mais
um senhor, desconhecido meu e também de L. A..
Fomos apresentados naquele momento. Chamava-se César burnier, era advogado,
funcionário aposentado do Ministério da Fazenda. Viera na sua dupla condição de
espírita e de profundo conhecedor da história da França, em geral, e da
Revolução Francesa, em particular.
Iniciamos os trabalhos, como sempre, com uma prece e logo
que L. A. atingiu o transe anunciou que se encontrava presente o Marius. Quem seria Marius, porém? Descobrimos depois que Marius era um apelido que
Lucille havia colocado em Danton e a figura do grande orador revolucionário foi
então identificada com César Burnier que, aliás, tinha conhecimento dessa
identificação, mas nunca a apregoara por natural sentimento de reserva.
Presenciamos, então, uma das cenas mais emocionantes de toda a série de
experiências, pois naquele exato momento, na sala carregada de tensão, no meu
apartamento, em Botafogo, reencontravam-se, após 173 anos, Camille Desmoulins e
Jacques Danton. A última vez que se viram "em vida" foi no palco
sangrento da guilhotina, momentos antes do surdo golpe da lâmina implacável. E
por sobre mais de século e meio reata-se uma amizade que o fio de aço cortou,
no mesmo ponto em que a deixaram os dois espíritos. Conta a
História que, já no patíbulo, Danton e Desmoulins, velhos amigos e companheiros, quiseram
trocar um beijo fraterno de despedida, antigo costume francês. O carrasco
"recusou" a permissão e Danton, o grande fazedor de frases
espetaculares, declarou:
- Que importa, se nossas cabeças se beijarão dentro de
alguns instantes no cesto?
É que havia um cesto que recolhia as cabeças decepadas.
Cento e setenta e três anos depois, mal se
reencontraram, Camille Desmoulins, renascido em L. A., me diz:
- Hermínio, pede ao Danton que me dê um beijo...
César curvou-se respeitosamente e depositou o beijo há
tanto tempo devido sobre a testa do amigo
reencontrado. Era insuportável a emoção de todos os presentes, mas
especialmente dos dois protagonistas que no século XX reatam uma amizade que
floresceu tragicamente no século
XVIII.
O diálogo prosseguiu difícil, pois a tensão era grande e
L. A. dependia exclusivamente de mim, para dialogar com
Danton-César, porque, em "rapport" comigo, não ouvia César. Este, porém, ficou
convencido de que a Revolução não tinha segredo, nem mesmo nas suas minúcias, intimidades e
bastidores, para o sensitivo em transe.
Mais outra identificação se faria naquela noite
memorável, pois L. A. declarou que também se encontrava presente, entre nós, o
abade Bossut - e disse o nome atual da pessoa indicada (A. I. M.). Segundo ele,
o abade havia sido professor de matemática e física ao tempo da Revolução,
especialista em hidráulica e autor de várias obras didáticas sobre tais
assuntos. Camille, que estudara nos seus livros, lhe teria arranjado um
salvo-conduto que o livrou da fúria assassina do Terror. (Veremos depois a
razão de ser deste episódio.) O problema, no entanto,
consistia em descobrir aquele obscuro Bossut. Terminada a sessão e repassadas
por todos as emoções ali vividas, pusemo-nos à procura de Bossut na enciclopédia.
Seria Bossy? Ou Bossit? Ou Bossu? Nada se encontrou naquela noite, nem nos dias
que se seguiram, mas acabamos por localizar as referências. Descobri um dia um
verbete sobre ele em velhos livros franceses na Biblioteca Pública de Barra
Mansa. Chamava-se Charles Bossut, fora realmente sacerdote e matemático,
escrevera livros sobre sua especialidade, destacando-se obras sobre hidráulica
e viveu na época da Revolução. Dizia até o livro que, já nas últimas,
desinteressado da vida e sem reagir a nada, somente uma coisa o fez falar.
Perguntaram-lhe qual o quadrado de 12. O velho professor então não saberia
disso? Respondeu firme:
- Cento e quarenta e quatro.
Foram suas últimas palavras. O abade Bossut renasceria
outra vez na França, onde se tornou um grande
cientista e pensador; apoiando seu enorme saber nas suas velhas e familiares disciplinas - a
física e a matemática. Chamou-se, nessa vida, Henri Poincaré, figura eminente da ciência
mundial. Acha-se novamente encarnado, desta vez no Brasil, longe do brilho e das
pompas acadêmicas, devotado à sua família e ao movimento espírita, no qual se
destaca merecidamente pelos seus dotes morais e intelectuais.
Outra identificação: a do abade Bérardier, diretor do
Colégio Louis-le-Grand e muito estimado por Desmoulins, tanto que foi seu
padrinho de casamento. Atualmente está reencarnado na pessoa de um
médico-professor, sendo outra vez padrinho do casamento de L.A.
Maria Antonieta
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