Judas
Iscariotis
por Hermínio Miranda
Reformador
(FEB) Março 1959
A
figura histórica e humana de Judas Iscariotes sempre exerceu grande fascinação
sobre meu espírito. Se bem que, aqui e acolá, se encontre na literatura
espírita referências o infeliz apóstolo, muito pouco se conhece de seu posterior
desenvolvimento espiritual.
Sabemos,
certamente, através de revelações esparsas, que Judas, condicionado como qualquer
um de nós à sábia e inflexível lei cármica, aqui voltou muitas vezes, para
purgar suas falhas no sofrimento redentor. Estamos certos, também, de que o
Cristo não o abandonou à sua própria sorte, nem pretendeu deixar que a pobre
criatura, vítima de sua fraqueza, ficasse mergulhada na amargura sem remissão
do sofrimento eterno.
Neste,
como em tantos outros pontos, a doutrina que os Espíritos nos ensinaram é muito
mais humana e racional que as que aí estão, miudamente trabalhadas pelos
encarnados. É muito mais reconfortante, e infinitamente mais de acordo com a
moral cristã, sabermos que o Espírito do Iscariotes, depurado de suas imperfeições,
evoluído moral e espiritualmente, está hoje entre os mais chegados
colaboradores do Senhor, do que imaginá-lo como trágica ruína humana, batida
pela miséria eterna.
Não
seria Jesus, o gênio supremo da bondade e do amor, que deixaria seu antigo
discípulo perder-se nas estradas agrestes da eterna agonia. Se nenhuma das
ovelhas que o Pai lhe confiou se perderá, como poderia perder-se justamente uma
daquelas que o acompanhou pelas rotas poeirentas da Terra Santa, que o ajudou, por
algum tempo, a espalhar aos quatro ventos sua mensagem de amor e humildade,
que, bem ou mal, sonhou com o Mestre os mesmos sonhos de universal
fraternidade? Como poderia Jesus condenar o antigo companheiro que, num momento
de fraqueza e invigilância, se deixou levar por enganadoras ilusões?
E,
afinal de contas, se Jesus lhe perdoou e o ajudou a recuperar-se para a glória
espiritual, quem somos nós, imperfeitíssimas criaturas, para arrastar na lama a
figura do pobre irmão que fraquejou? Tal como diria o Mestre: aquele que não tiver
culpa, atire a primeira pedra.
Por
outro lado, é preciso atentar bem nas circunstâncias daquele impensado gesto.
Judas não foi o único, nem mesmo o maior responsável pela dolorosa tragédia da
cruz. Foi mero instrumento de forças enceguecidas pelo ódio irracional. Vencido
pela miragem do poder, com que lhe acenaram os inimigos do Cristo, ele se prestou
ao lamentável e infeliz papel de indicar, à sanha destruidora dos algozes,
Aquele que o havia acolhido no círculo mais íntimo de seus seguidores.
Seu
espírito era fraco e imaturo. Sonhava com uma fatia de poder, e se deixou
fascinar. Era tão fraco que, consumado o gesto supremo da traição, não
encontrou em si mesmo forças morais para enfrentar as consequências dramáticas
do arrependimento. O tremendo remorso que experimentou foi grande demais para
as forças do seu espírito, e, ainda uma vez, sucumbiu, escapando pela porta
falsa do suicídio, numa tentativa última de fugir de si mesmo.
Mais
uma vez se enganou o pobre e desorientado irmão. Libertara-se do envoltório
físico, mas não se libertara de suas angústias. Muito pelo contrário: era
justamente agora, com a percepção mais aguçada, que de fato sofria as insuportáveis
aflições do remorso. E isso era o princípio da redenção. Milhares, milhões de
vezes, teria que reviver a cena amarga do beijo portador da morte. Jamais
haveria de esquecer o doce olhar do Profeta Divino, ao recebê-lo como discípulo
amigo e não como mensageiro da dor. Como tudo aquilo continuava vivo nos seus
olhos! Sim, porque ainda via, sentia dores e sufocava e gemia e gritava
desesperado. Estranho! Então não morrera? Como é que a corda ainda lhe apertava
a garganta ressequida e os trinta dinheiros ainda lhe pesavam sobre o coração?
Sentia-se oprimido, miserável, perdido, sozinho, num mundo escuro, desconhecido
e sem limites. Acima daquela solidão opressiva, pairavam os olhos meigos,
puros, sublimes, de Jesus. Só então pudera compreender toda a extensão
insondável da sua falta.
Porque
tocara a ele o infame papel de entregar o Mestre às mãos dos carrascos? Se
Jesus tinha mesmo que ser destruído, como diziam as profecias, que fosse outro
o delator, não ele, Judas... Mas, desgraçadamente, estava tudo feito e nem uma
vírgula se alteraria.
*
Não
nos foi dado ainda acompanhar, nos séculos que se seguiram, a trajetória
espiritual do pobre irmão Judas Iscariotes. Não obstante, imaginamos quanto
sofreu e lutou para novamente poder fitar, com tranquila humildade e reconhecimento,
os olhos d'Aquele que, certa vez, ajudara a crucificar.
Hoje,
o antigo apóstolo retomou seu lugar entre os seguidores mais próximos do
Cristo.
Nas
profundezas de seu coração deve sentir-se amplamente recompensado de todas as
dores que sofreu.
Algum
dia, talvez permitam as entidades superiores que se revele ao mundo essa
história magnífica, para que, através de todo o seu poder de sugestão, saibam as
criaturas que mesmo a falta mais negra não precipita o Espírito na desgraça
eterna, mas apenas retarda sua evolução para a Pátria da Luz. Deus não seria
Deus se, pela falta cometida neste átimo a que chamamos vida, fosse preciso
viver uma eternidade de angústias e sofrimentos. Já pensou o leitor no que pode
ser a eternidade? O escritor Hendrik Van Loon, para dar a ideia das idades que se
contam pelos milhões de anos, imaginou uma grande, imensa rocha plantada no
mundo. Cada dez mil anos, um pássaro vem e roça o bico contra a rocha. Quando o
bico do pássaro tiver consumido a pedra, ter-se-á passado um instante da eternidade.
Comparado com isso, que é a vida humana? Ainda ontem éramos crianças; nossos pais
eram jovens. Hoje temos filhos, amanhã teremos netos. Como foi mesmo que passou
o tempo? Assim, Deus não criaria almas, frágeis na sua ignorância, para depois
esmagá-las impiedosamente, com o castigo eterno, pela falta ocasional. Se nos
deu o livre arbítrio, acrescentou, também, a possibilidade de reparação, sem o que
não poderíamos jamais alcançar a glória de poder colaborar em Sua obra
portentosa.
Já
é tempo de trabalhar pela reabilitação da figura do antigo Iscariotes. É
necessário remover, de sua imagem histórica, a superada mancha da traição que
pesa sobre sua memória. Ele não foi o primeiro ser humano a errar nem será o último.
Também não foi o primeiro a resgatar seu erro, pagando até o último ceitil,
como diz a Lei, para retomar a caminhada para o Alto.
Em
teu próximo instante de tranquilidade espiritual, leitor amigo, levanta teu coração
e oferece a Jesus as vibrações de tua alegria por ter estendido Suas mãos
generosas ao antigo apóstolo transviado. E pede ao irmão mais velho, Judas
Iscariotes, que nos ajude, por seu turno, a encontrar o caminho da redenção
espiritual, que nos libertará da servidão ao erro. Ele muito sofreu para
conquistar a sua paz e certamente saberá como ajudar-nos a encontrar a nossa.
Também temos pesados débitos a resgatar. Não entregamos Jesus aos seus algozes;
vezes sem conta, porém, temos crucificado sua memória, vendido seus princípios,
falhado no cumprimento da moral que Ele pregou. Não estamos, pois, em condições
de atirar coisa alguma à nobre face de Judas, o redimido.
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