quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Poeta Guerra Junqueiro



O Poeta Guerra Junqueiro
por Inaldo Lacerda Lima
Reformador (FEB) Setembro 1994


            Abílio Manuel GUERRA JUNQUElRO é o nome desse poeta incomparável e de escola literária própria, nascido em Portugal a 17 de setembro de 1850. Em Trás-os-Montes, num poético recanto denominado Freixo-de-Espada-à-Cinta, conforme notifica Almerindo Martins de Castro, nos traços biográficos do poeta, integrantes do livro mediúnico "Funerais da Santa Sé", pela psicografia da médium América Delgado, 5ª edição FEB. Regressou à pátria espiritual em 7 de julho de 1923, possivelmente na capital portuguesa.

            Nosso propósito não é traçar um perfil biográfico desse poeta notável. Isto já foi feito, e muito bem, pelo saudoso companheiro Almerindo de Castro. Também não vimos entreter um panegírico, porquanto o melhor elogio de Guerra Junqueiro está impresso na sua própria obra. E é desta que queremos falar, envolvendo o pensamento do homem na vida física e o pensamento do Espírito após sua desencarnação, impresso nas páginas de seu "Funerais da Santa Sé".

            Nossa primeira preocupação não é com o estilo eloquente e encantador do aedo (poeta grego da época primitiva, que cantava ou recitava com acompanhamento da lira: Homero era um aedo), tangendo as cordas de uma lira de sons maviosos enternecedores ou satíricos. Nossa primeira preocupação é com o porquê de sua manifestação tida como irreverente, o que lhe valeu, em vida, o título de iconoclasta pelos críticos e admiradores de sua época, inclusive Camilo Castelo Branco no estudo que antecede o conteúdo de "A Velhice do Padre Eterno".

            Desde menino que esse livro nos acompanha. Outros tivemos da autoria do Junqueiro, mas foi "A Velhice do Padre Eterno" que mais nos tocou e ao qual nos apegamos com um respeito e um carinho todo especial.

            Quando nos tornamos espírita, passamos a imaginar houvesse sido Guerra Junqueiro colocado no alto de uma das milhares de fogueiras inquisitoriais acendidas para queimar corpos vivos, ou, assado, devorado quem sabe pelos canibais do Santo Ofício, como costumávamos chamá-los antes de conhecer a sublimidade do Espiritismo. E que voltava das paragens invisíveis para acusar os seus verdugos. Depois que conhecemos o Espiritismo, afigurou-se nos o nosso poeta exemplo de Espírito de um "herege" que não houvesse ainda assumido a grandeza do perdão.

            Hoje, é outro o nosso juízo. E aproveitamos estas colunas de REFORMADOR para uma análise sincera e justa das obras poéticas desse incompreendido vate, quase discípulo de Victor Hugo, cujos versos traem filigranas do condoreirismo (uma parte de uma escola literária da poesia brasileira, a terceira fase romântica, marcada pela temática social e a defesa de ideias igualitárias. Wikipedia.) do genial autor de "As Vozes Interiores" e do magistral romance "Os Miseráveis", mas sem a tônica do romantismo assimilado pelo nosso inesquecível Castro Alves.

            Razão teve Camilo em defender o poeta de "A Velhice do Padre Eterno" da pecha injusta de ateu, que de ateísmo nada revela a sua poesia sólida e extraordinariamente eloquente senão quando lembrado pela má-fé daqueles que trazem ainda na alma a azedia do ódio e da paixão contra tão sublimado filho das Musas!

            Só muito tempo depois de nos haver caído às mãos o luminoso "Funerais da Santa Sé" é que tivemos contato com o pensamento de Almerindo Martins de Castro, quando nos revela a crueza com que 111 anos antes do nascimento de Guerra Junqueiro sofria a pena de ser queimado vivo, numa praça de Lisboa, pela chamada Santa Inquisição, o grande dramaturgo e poeta brasileiro Antônio José da Silva, acusado falsa e torpemente de judaísmo, a 18 de outubro de 1739, ao lado de sua esposa de 27 anos de idade, juntamente com a sua sexagenária genitora.

            Foi depois disso que passamos a compreender melhor as mensagens poéticas do inolvidável aedo português. Ele não fora um vingativo pelo que sofrera no passado, mas alguém que se fazia predestinar para combater velhos erros, crimes e torpezas que eram praticados em nome da Religião e em nome de Deus. Vejamos, isto posto, que ilações tirar desta joia poética por ele intitulada Parasitas:

"No meio de uma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar em cima de um jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente dava esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu ao ver este quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos (acrobatas) da cruz,
Que andais pelo universo, há mil e tantos anos,
Exibindo e explorando o corpo de Jesus."

            Fôssemos nós analisar a beleza e a profundidade filosófica deste soneto, já aqui teríamos assunto para preencher muitas colunas de um jornal. Deixamos, todavia, a cargo do leitor percuciente a avaliação poética e filosófica da composição, porque é inolvidavelmente um cântico à beleza irônica de um fato repreensível pelos ensinamentos que do poema podemos extrair.

            Não. Não há irreverência no soneto. Irreverente é o fato. E no final dos versos a lição endereçada aos funâmbulos da cruz, no circo da vida tomado irreverente pela ação nefanda de homens que assumiram compromissos com a fé.

            Assim era a alma desse homem sem alegria que se chamou Guerra Junqueiro. E ele próprio quem o confessa neste quarteto recolhido do livro "Batismo de Amor":

"Eu sinto um vácuo imenso que me oprime,
Um sonho, um aspirar não sei a quê...
O riso nos meus lábios ninguém vê...
Não sei que dor me verga como um vime."

            Aí está um aspecto da alma desse poeta capaz de escrever coisas notáveis como em seu poema O Melro, de "A Velhice do Padre Eterno", que nos velhos tempos de juventude tivemos diversas oportunidades de recitá-lo em grêmios literários e que ao conhecer o Espiritismo melhor podemos senti-lo e interpretá-lo.      Trata-se da história de um velho abade que tinha uma horta bem ao lado da Abadia. E resolveu comprar briga com um casal de melros que, segundo o abade, devorava lhe a messe. Depois de armar inutilmente uns espantalhos de que os melros zombavam em finas gargalhadas ou suavíssimos trinos, eis que o velho abade encontra lhes o ninho com quatro melrinhos assustados. E o abade fez uma festa. Colocou os passaritos numa gaiola, prometendo devorá-los com chouriço e com o melhor vinho que possuía na adega. Mas, à tardinha, a mamãe-melro não encontra os filhotes no ninho e enlouquece de desespero até que vai encontrá-los na copa do abade. E, incontinenti, lança-se furiosa e inutilmente contra a gaiola, perdendo as penas numa luta vã. A ave reflete, finalmente, um pouco, e como um raio parte na direção da seara, trazendo um ramo de veneno que dá aos filhos para comerem e come ela mesma em seguida, dizendo:

"- Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa, mas a alma voa...
Ó filhos, voemos pelo azul!.. Comei!"

            E o velho abade diante da cena, não se contém e converte-se à Verdade das coisas eternas, arremessando fora a velha bíblia, e murmurando:

"Há mais fé e há mais verdade,
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos de um rochedo nu
Que nessa bíblia antiga ... Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!.."

            Um outro poema que nos transporta às verdades espirituais é aquele que o poeta intitula Caridade e Justiça, fazendo uma apologia do horror do próprio Judas Iscariotes acicatado pelo remorso de haver traído um justo. Percebe-se aí toda a grandeza eloquente do poeta-filósofo de "A Velhice do Padre Eterno", sem que se tenha o mínimo direito de chamá-lo ateu. Não havia desrespeito a Deus na poesia de Guerra Junqueiro. Muito ao contrário, sua poesia era um brado de reprovação contra o abuso das coisas sagradas e a infâmia dos homens debitada a Deus.


            
           Após a sua desencarnação, volta em 1932, nove anos depois e através da médium América Delgado, na sede do Grupo Espírita Roustaing, em Belém do Pará, para ditar os "Os Funerais da Santa Sé", oferecendo-nos treze maravilhosas composições poéticas, dentre elas a que se intitula O Corpo de Jesus, cujo estilo em nada se diferencia daquele utilizado pelo poeta, quando prisioneiro da carne, conforme o atestam os seguintes versos:

"Se o Cristo foi humano, que é da virgindade
daquela que recebe, ainda imaculada;
o Verbo que ilumina toda a Humanidade,
fazendo-a palmilhar a verdadeira estrada?!
Jesus não foi jamais involucrado em lama!
- Essência divinal, que lá do Alto vem
os seres envolver na luz da mesma chama
a fim de orienta-los para o ovil do Bem,
nós compreendemos Cristo - Essência Imaculada!
Nós vemos em Jesus o - Sobrenatural,
Enviado por Deus à Terra enodoada,
para dela expulsar os histriões do Mal!"

            E através, também, do médium mineiro Francisco Cândido Xavier, então com vinte e um anos, retoma para contribuir com maior intensidade luminosa nas páginas do "Parnaso de Além-Túmulo" por meio de poemas como Caridade, onde se patenteia o mesmo estilo inconfundível de Caridade e Justiça, e como O Padre João, em que se manifesta com a idêntica vivacidade poética do velho abade de O Melro, em "A Velhice do Padre Eterno".

            É, em todas essas composições, indubitável o estilo, flagrante o sentimento, senão apenas mais amadurecido e sério, mais consentâneo com o seu estado, agora, de ser liberto das cadeias e influenciações da prisão carnal.

            Em seu monumental "Os Sertões" , declarou o grande escritor brasileiro Euclides da Cunha que "o estilo é o homem", para assegurar que o estilo é o retrato vivo da alma que grafa literariamente o seu pensar e, com ele, a sua própria alma no papel ou do artista plástico que debucha na tela as suas impressões da vida! O mesmo se verifica em todas as artes em que a alma se faz manifestar no tônus de sua sentimentalidade inequívoca. O estilo é a marca do ser, é o seu sinete inconfundível.

            Não é preciso ser alguém versado em crítica literária para ver aí, em todos os versos aqui transcritos, a alma rediviva de Guerra Junqueiro. E possível parodiar, mas imitar o estilo é impossível. E neste trabalho fizemos questão de mostrar o poeta Abílio Guerra Junqueiro em três fac-símiles diversos: o do poeta na existência física, em sua obra natural, e na existência espiritual através de dois médiuns diferentes, América Delgado, no Pará, e Francisco Cândido Xavier, em Pedro Leopoldo das Minas Gerais, e possivelmente, na época, desconhecidos um do outro.

            Resta-nos, para concluir, lembrar, ainda uma vez, que Guerra Junqueiro não fora um ímpio nem é um vingativo. Sobre chamar a atenção para o fato da imortalidade do Espírito, em se fazendo manifestar em dois médiuns diferentes, veio também demonstrar que não vinha para cobrar a maneira como fora expulso da vida, na existência anterior, assado numa fogueira inquisitorial. Vinha, sim, desfazer um equívoco: Não era ele um ateu e um ímpio. Fora e continua sendo um filósofo no mais estrito sentido do termo. Cantou em vida o seu respeito pela verdade, dignificando a fé. E continua, nas planuras espirituais, a cantar as verdades eternas, ensinando a verdadeira posição do cristão crente em Deus, conforme o atestam estes versos do poema O Padre João, em "Parnaso de Além-Túmulo", com os quais encerramos este artigo:

"É um blasfemo quem crê que em teus nichos e altares
Guarda-se a essência pura e imácula de Deus;
Eu vejo-O, desde a flor às luzes estelares,
Na piedade, no amor, na imensidão dos céus!
Ó Igreja! o dogma frio é um calabouço escuro,
E eu quero abandonar a noite da prisão;
Prefiro a liberdade e a vida no futuro,
Guiando-me o farol da fúlgida Razão.
Desprezo-te, ó torreão de séculos trevosos,
Ruínas de maldade estúltica a cair,
Eu quero palmilhar caminhos luminosos
Que minhalma entrevê na aurora do porvir!"




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