sexta-feira, 12 de julho de 2013

'Idolatria'

‘Idolatria’
por   A. Leterre
in ‘Hiláritas!’
Ed. FEB 1934

            A estátua de Jesus, publicamente inaugurada no dia 12 de Outubro de 1931, no cume do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro, e adorada como sendo o próprio Deus Inefável, encerra em si três formidáveis protestos saídos da boca do próprio Cristo e ouvidos pelos homens de bom senso: Anátema! Afronta! Incoerência!

            Anátema! à igreja católica, pela deturpação e infração dos ensinos dele saturados de humildade. 
           
            Afronta! aos acatólicos, que tendo concorrido com seus impostos para acudir às necessidades da nação, viram, ilegalmente, desviada a soma destinada à confecção de um ídolo, que aberra dos próprios princípios cristãos.

            Incoerência! por ser a Bíblia e o Decálogo a própria Lei de Deus, virtualmente adotados pela igreja católica, onde se encontra a formal proibição do homem fabricar imagens ou figuras destinadas a representarem o Único Deus verdadeiro, que deve ser adorado em Espírito e Verdade, e ser a própria a rasgar essa Lei!

            Tão vergonhoso foi esse ato irreligioso, que o próprio Sol, eclipsando-se, astronomicamente, nesse dia, quis assim, também, simbolizar seu protesto, deixando  de assistir à maior das heresias, como se eclipsou no dia em que, do Gólgota, o meigo Jesus expirava, e como se eclipsou na morte de Buda.

            Aproveitamos a oportunidade para encaixar aqui um Panfleto, fartamente distribuído entre o povo, por ocasião dessa inauguração, pois, é bem possível que não tivesse chegado um exemplar às mãos do leitor.

            Esta peça é um verdadeiro látego com o qual Jesus chicoteia o bando de mercenários que negociam com seu nome.

            Palavras de Jesus

            (Meia noite, ao luar, no alto do Corcovado. Jesus em pé ante o monumento do Cristo Redentor, medita aborrecido. Satanás, ao seu lado, sorri de cócoras). 
            Este Satanás é uma figura sem expressão, esculpida na própria rocha por desfastio de um operário.

            Jesus - Sim senhor! Que sucia! Um monumento a mim! E de cimento! E nessa ridícula posição de Inspetor de Veículos! É positivamente um desaforo! Estes tipos desrespeitam, em meu nome, ordens minhas e de meu Pai, claras e terminantes.

            Meu PaI disse no segundo testamento: (1)

               (1) Êxodo XX, 4 e 5.

            "Não farás para ti imagem de escultura nem nenhuma semelhança do que há em cima dos céus, nem em baixo da terra, nem nas águas debaixo da terra, nem te acurvarás a elas, nem as servirás".

            E repetiu esta ordem várias vezes. E essa sucia, sob pretexto de me adorar, fabrica esta estátua e a serve, desobedecendo a meu Pai. E o que é mais, leva o seu desplante a suprimir, nos seus catecismos, esse segundo mandamento e substitui-lo pelo terceiro!

            Eu ordenei peremptoriamente: "A ninguém na Terra chameis vosso pai, porque um só é vosso pai, o qual está nos céus". (2)

            (2) Mateus XXIII, 9

            E que fazem eles?

            O Chefe é papa, isto é pai; muitos são abades, que quer dizer pai, e todo sacerdote se chama padre, que é pai também. Não se cansam todos de chamar ao tal papa: pai da Cristandade!

            Afirmei também que só eu sou pastor das minhas ovelhas. (3) Pois eles se dizem pastores e falam em meu nome.

               (3) João X,16.

            Inventaram ter eu delegado ao meu discípulo Pedro e seus sucessores a chefia da tal Igreja. Eu nunca fundei igreja, nem deleguei a Pedro coisa alguma. Citam, de um tal Mateus, (4) que escreveu minha vida como as ventas dele, um versículo onde eu tivera dito: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja".

               (4) Mateus XVI, 18

            Ora, a pedra angular do meu edifício sou eu só, e assim está em toda a Bíblia.

            Não podia ser esse Pedro, que me negou três vezes, covardemente, a quem por varias vezes ralhei e que, segundo refere o mesmo Mateus em outro versículo, que esses biltres jamais citam, eu repeli como ao diabo. Lá está escrito, no versículo 23, quando ele, Pedro, me queria desviar da minha missão: "Arreda-te de ante mim, Satanás, que me és escândalo, porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens"...

            Esses papas são legítimos sucessores desse ruim apóstolo que repeli tão lisamente.

            Pensam todos muito mais nas coisas da Terra que nas do cé. Este agora, por exemplo, um tal Pio XI.  Contra minha recomendação categórica de dar a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus, “isto é, afastarem-se absolutamente das coisas temporais e do governo civil, contrai aliança com um déspota ambicioso e isso a troco de mais um bilhão de liras"... E ainda aqui procede contra minha ordem irretorquível: "Não ajunteis tesouros na terra!" Porque: "onde estiver vosso tesouro aí estará vosso coração." (5)

               (5) Mateus VI 19 e 21

            Nessa monstruosa aliança, esse tal papa, que se diz abusivamente meu sucessor e representante, adquire extraordinária autoridade sobre os povos de Itália e de fora. Não terá lido esse papa, que presunçosamente se diz infalível e exige dos cristãos disciplina férrea, aquela minha admoestação insofismável!

            "Bem sabeis que os príncipes dos gentios os dominam, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; mas, todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande, seja vosso fâmulo (serviçal) e qualquer dentre vós que quiser ser primeiro será vosso servo". (6)

            (6) Mateus XX 25-27

            Pois vejo nessa tal Igreja, que dizem sacrilegamente ser minha esposa, muitos a mandarem.

            Aqui, no Rio, é um tal cardeal Leme que mora num palácio! Eu não tinha onde repousar a cabeça e esse gaiato vive como um rei; Cardeal!. Eu nunca fiz Cardeal nenhum, nem arcebispo, nem bispo, nem padre, nem jesuíta, nem frades, nem freiras! Isto tudo é uma deturpação indecente da minha obra. Missa! Ora, se eu algum dia disse missa! Pelo contrário, determinei, muito claramente, como haviam de orar, não a mim, mas a meu Pai. "Mas tu, quando orares, entra em teu quarto, e, fechada a porta, ora em segredo a teu Pai e teu Pai que vê em segredo, te restituirá". "Orando, não fales muito como os gentios; pensam que por falarem muito serão ouvidos!" (7) E ensinei a única prece legítima e permitida a discípulos meus, o padre nosso. Como então tolerar essas adorações perpétuas a meu coração (que desaforo!), e esses rosários, terços, novenas, etc., etc. Ordenei taxativamente: "Dai de graça o que de graça recebestes. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos, nem alforjes para o caminho, nem duas túnicas, nem bordão, porque digno é o operário do seu alimento.” (8) Pois eles, os tais meus sacerdotes, enriquecem, recebiam e recebem ordenado dos governos, vivem regaladamente, fazendo da minha obra torpe profissão.

               (8) Mateus XVI,9 e 10

            Isto é demais! A prédica do meu ensino, feita profissão! E que predica! E que ensino!

            Ora, se eu algum dia ensinei teologia! E que teologia! Meu servo Francisco de Assis pretendeu cumprir esta minha última ordem. Mal fechou os olhos, logo entraram os franciscanos a adquirirem bens e vejo ali, na Avenida Rio Branco, um suntuoso prédio propriedade deles. Que infâmia! E essa igreja queimou vivos os poucos franciscanos que tentaram ficar fieis ao meu preceito de pobreza!

            Condenei os doutores da lei porque exploravam as viúvas sob pretexto de prolongadas orações (9) e esses meus pseudo representantes aceitam dinheiro e legados para missas e rezas!

               (9) Mateus, XXIII, 14

            Condenei os mesmos doutores por carregarem os homens com cargas difíceis de transportar, tais quais os teólogos católicos que transformaram minha doutrina num tenebroso imbroglio! Mandei que fossem limpos, dessem esmolas, tiradas evidentemente do próprio trabalho, e eles estão sempre em toda parte, a pedir esmolas e, se dão, é sempre a sobra das esmolas pedidas aos outros.

            Quando o bobo do Pedro me perguntou se devia perdoar ao irmão sete vezes, firmei, sem a menor dúvida a doutrina do perdão perpetuo: "Concilia-te com teu adversário!" (10) "Paz perpetua com teu irmão". Pois meus tais representantes vão excomungando a torto e a direito, punindo e queimando hereges, condenando os que batem à porta, os que buscam conhecer, exigindo de todos que recebam o que eles dão como certo, sem tugir, nem mugir, sem discutir, sem buscar, em suma.

            (10) Mateus V, 25

            Positivamente é uma corja despudorada! Essa é tua obra, Satanás. Tua igreja é digna de teus dedos!

            (Jesus cala-se. Satanás sorri, pede licença e fala).

            Como essa resposta nunca chegou às nossas mãos, se é que foi publicada, entrevistamos aquela figura diabólica, que no-la repetiu e permitiu que a estenografássemos. Isto após um satânico sorriso do tinhoso, ouvindo-se uma mefistofélica e retumbante gargalhada, que ressoou por entre as alterosas nuvens que coroavam esse inigualável mirante, como se fora a explosão de um trovão infernal, ribombando pelas frondosas matas da Tijuca, Bico do Papagaio e serras adjacentes, indo ecoar pouco a pouco por todo o Brasil.

            Eis a resposta de Satanás...

            “Obra minha dizes tu!

            Obra dos padres é que é! pois foram eles que ensinaram que o Criador deste realejo desafinado, a quem chamas: Pai, embora me houvesse criado perfeito, pois, ele me chamou de Lúcifer, isto é, Anjo da Luz, devia saber pela sua Onisciência, que eu aninhava a maldade e o orgulho, predestinando-me até para perseguir esta raça humana que, por sinal, já uma vez Ele afogou num dilúvio.

            Foi uma deslealdade de sua parte, de que eu não gostei, pois, não lhe pedi para ser criado. A mesma peça pregou Ele ao Adão de Barros e à Eva da Costa que também não pediram para ser fabricados de barro nem de costela alguma, para, por fim, por causa de uma banana, pois tal era a fruta que se chama mesmo musa paradisíaca, proibir-lhes de fazer uma porção de coisas que Ele mesmo inventou.

            Ora, se a igreja romana não tivesse ido buscar essa história da árvore do Bem e do Mal na religião dos Persas, há muito tempo que essa igreja teria desaparecido, porque a legião de antropófagos que, diariamente, come tua carne e bebe teu sangue, não disporia desses elementos que lhe permite a exploração da credulidade de 85% de analfabetos e, portanto, de ignorantes, que constitui a tão apregoada maioria de católicos no Brasil.

            Se os bispos romanos não tivessem tido a genial ideia de criarem uma plataforma de parada, com o nome de Purgatório, nessa interminável Estrada por onde o homem faz sua última viagem, ou seja, um porto de quarentena, do qual só se pode zarpar pagando ao padre, pergunto eu agora:

            Onde estaria a Obra pela qual te deixaste espetar num madeiro?

            Nem mais se lembrariam de ti e não estarias aqui feito um fantasma!

            Havendo céu, como dizem esses matreiros, e, sendo o Criador Onimisericordioso, como apregoam, é claro que toda sua criatura, como confirma o próprio Paulo, teu discípulo, tem de para lá ir um dia, sem precisar de procuradores de beca preta.

            Mas, tu, responde Jesus, é quem desvia minhas ovelhas, enganando-as com os gozos terrenos, levando-as, por fim, para teus domínios.

            E porque criou Ele esses gozos, uma vez que Ele os proíbe? Porque não os suprimiu? Ou isto é abusar da fraqueza humana ou é incoerência!

            Além disto, deste modo, minha existência espiritual colidiria com a Misericórdia e com a potência desse Criador, pois, se ele me criou, dando-me eternos domínios e ilimitados poderes, como dizem os padres, claro é que sua misericórdia e Poder veem-se frustrados pelo meu poder que, então, é superior ao Seu.

            Ora, assim sendo, é logico que se eu não existisse, como quer o clero que eu exista, com minhas fornalhas e meu exército de diabões e diabinhos, também criados por Ele, não poderia existir a Igreja Católica romana, uma vez que, como dizem essas beatificas azêmolas (bestas de carga), de lá ninguém se salva, embora a padralhada te coma ao mesmo tempo no mundo inteiro.

            Ao espertalhão, portanto, que inventou esse Subúrbio do céu, é que o catolicismo, que a massa iletrada ou fanatizada confunde com Cristianismo, deve sua existência, pois, para de lá sair-se, segundo os decretos do Papa, é preciso que o trouxa pague previamente ao sacristão o bife tirado do teu filet, que o padre vai comer, bife este representado num pedaço de obreia (massa de que se faz a óstia), regado com quatro dedos de finíssimo Porto, como se fosse teu sangue, apesar de tu mesmo teres dito que aquelas palavras se referiam a espírito e verdade e não à carne que nada vale.

            Ora, se não fossem as duas eternidades opostas e insolúveis pela teologia deles, não teria surgido essa estupenda ideia do Purgatório, cujo fim foi fazer-me uma desleal concorrência, arrancando-me das garras uma grande percentagem desses mesmos procuradores de saias curtas, velhas, moças e alguns milhões de boas biscas, que andam beijando os pés de Santos de gesso e segurando tochas de irmandades.

            Como não pode haver penalidade, sem infração de uma lei qualquer, claro é que eles forjaram, igualmente, uma lista de pecados, cada qual mais extravagante, por ir de encontro aos mais insignificante atos  da vida humana, e cuja autoria esses canalhas me arrumaram nos cornos.

            Ora, si não fosse o Purgatório, e se tais infrações não fossem inventadas pelo catolicismo, é certo que não existiria essa legião de malandros tonsurados. Não havendo mercadoria para vender, como missas, confissões, batismos, indulgências, talismãs etc., etc., desnecessário se tornam empregados e a casa terá de fechar suas portas.

            A mim, pois, como gratidão, é que esses papa-hóstias deveriam render culto, como fazem algumas tribos da África; pois, segundo elas, sendo o Criador supinamente bom e misericordioso, jamais pode fazer mal à sua criatura, e, portanto, dispensável se tornam a padralhada e as preces; ao passo, que sendo eu supinamente mal, é logico que me peçam com orações e oferendas, a brandura e a benevolência dos meus ataques hemorroidários.

            Looogo. .. a obra é dos padres e não minha, como dizes, pois, eu nada inventei; eles é que até me inventaram.

            Já te representando num bloco de cimento armado, estilo arranha céu, eles provam, por aí, que não respeitam tua doutrina contra a idolatria, que pregaste na Judeia, e que, aliás, não era tua conforme repetiste, pois, segundo esses incoerentes, vieste exatamente para cumprir a Lei de Moisés e dos profetas, que é a Lei de Deus e que tal coisa proibe. A perversidade desses jesuítas, sobejamente provada com a Inquisição, que querem reinaugurar no Brasil, suplanta minha maldade, quando fazem crer aos patetas que fujo de ti, sem se lembrarem esses idiotas que eles mesmos contam no Evangelho que te fiz passear sobre cidades, comodamente sentado nas minhas asas, como se eu fosse aeroplano.

            Outra vez, mesmo, dizem eles, o próprio Criador teve uma conferência comigo, num dia em que estava de bom humor, e duvidou que eu fosse capaz de corromper o pobre Jó, autorizando-me até a persegui-lo, po-lo nú e reduzi-lo a pão e laranja, o que fiz, não há duvida, empregando minhas artimanhas todas, mas, confesso, acabei dando com os burros n'água, pois, nunca vi sujeito tão duro de roer, como Jó. Nunca encontrei um padre assim; essa gente comigo é sopa, desde o seminário.

            E estes farsantes inventaram a água benta, à guisa de Flit, para me espantar! É boa!

            Jesus sorriu docemente e disse-lhe: Lúcifer, é a primeira vez que te ouço falar a verdade; parece que te estás regenerando; recomendar-te-ei a meu Pai.

            "Mas, o povo carioca, retorquiu Satanás, é que continua ludibriado, porque ainda não descobriu o plano dessas águias negras estrangeiras, que pretendem apossar-se, definitivamente, desse invejável logradouro público, já com a compra de terrenos e propriedades ali, já os adquirindo por outros meios indiretos, até conseguirem instalar seus ninhos nesse penedo, e até já começaram com um seminário, cujo acesso, mais tarde, só será permitido mediante licença especial da Cúria, com gorda contribuição, a título de qualquer caridade. Velhacos!

            Quando o carioca abrir os olhos talvez tarde seja.

            E dizes que a Obra é minha?"

            Outra formidável gargalhada se fez ouvir num trovão e o boneco ali esculpido petrificou-se novamente.

          

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