‘Idolatria’
por A. Leterre
in ‘Hiláritas!’
Ed.
FEB 1934
A
estátua de Jesus, publicamente inaugurada no dia 12 de Outubro de 1931, no cume
do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro, e adorada como sendo o próprio Deus
Inefável, encerra em si três formidáveis protestos saídos da boca do próprio
Cristo e ouvidos pelos homens de bom senso: Anátema! Afronta! Incoerência!
Anátema! à igreja católica, pela deturpação e
infração dos ensinos dele saturados de humildade.
Afronta! aos acatólicos, que tendo concorrido
com seus impostos para acudir às necessidades da nação, viram, ilegalmente,
desviada a soma destinada à confecção de um ídolo, que aberra dos próprios
princípios cristãos.
Incoerência! por ser a Bíblia e o Decálogo a própria
Lei de Deus, virtualmente adotados pela igreja católica, onde se encontra a
formal proibição do homem fabricar imagens ou figuras destinadas a
representarem o Único Deus verdadeiro, que deve ser adorado em Espírito e Verdade, e ser a própria
a rasgar essa Lei!
Tão
vergonhoso foi esse ato irreligioso, que o próprio Sol, eclipsando-se,
astronomicamente, nesse dia, quis assim, também, simbolizar seu protesto,
deixando de
assistir à maior das heresias, como se eclipsou no dia em que, do Gólgota, o
meigo Jesus expirava, e como se eclipsou na morte de Buda.
Aproveitamos
a oportunidade para encaixar aqui um Panfleto, fartamente distribuído entre o
povo, por ocasião dessa inauguração, pois, é bem possível que não tivesse
chegado um exemplar às mãos do leitor.
Esta
peça é um verdadeiro látego com o qual Jesus chicoteia o bando de mercenários
que negociam com seu nome.
Palavras de Jesus
(Meia
noite, ao luar, no alto do Corcovado. Jesus em pé ante o monumento do Cristo
Redentor, medita aborrecido. Satanás, ao seu lado, sorri de cócoras).
Este
Satanás é uma figura sem expressão, esculpida na própria rocha por desfastio de
um operário.
Jesus - Sim senhor! Que sucia! Um
monumento a mim! E de cimento! E nessa ridícula posição de Inspetor de Veículos!
É positivamente um desaforo! Estes tipos desrespeitam, em meu nome, ordens
minhas e de meu Pai, claras e terminantes.
Meu
PaI disse no segundo testamento: (1)
(1)
Êxodo XX, 4 e 5.
"Não
farás para ti imagem de escultura nem nenhuma semelhança do que há em cima dos
céus, nem em baixo da terra, nem nas águas debaixo da terra, nem te acurvarás a
elas, nem as servirás".
E
repetiu esta ordem várias vezes. E essa sucia, sob pretexto de me adorar,
fabrica esta estátua e a serve, desobedecendo a meu Pai. E o que é mais, leva o
seu desplante a suprimir, nos seus catecismos, esse segundo mandamento e
substitui-lo pelo terceiro!
Eu
ordenei peremptoriamente: "A ninguém na Terra chameis vosso pai, porque um
só é vosso pai, o qual está nos céus". (2)
(2) Mateus XXIII, 9
E que fazem eles?
O
Chefe é papa, isto é pai; muitos são abades, que quer dizer pai, e todo sacerdote se chama padre, que é pai também. Não se cansam
todos de chamar ao tal papa: pai da
Cristandade!
Afirmei
também que só eu sou pastor das minhas ovelhas. (3) Pois eles se dizem pastores e falam em meu nome.
(3)
João X,16.
Inventaram
ter eu delegado ao meu discípulo Pedro e seus sucessores a chefia da tal
Igreja. Eu nunca fundei igreja, nem deleguei a Pedro coisa alguma. Citam, de um
tal Mateus, (4) que
escreveu minha vida como as ventas dele, um versículo onde eu tivera dito:
"Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja".
(4)
Mateus XVI, 18
Ora,
a pedra angular do meu edifício sou eu só, e assim está em toda a Bíblia.
Não
podia ser esse Pedro, que me negou três vezes, covardemente, a quem por varias
vezes ralhei e que, segundo refere o mesmo Mateus em outro versículo, que esses
biltres jamais citam, eu repeli como ao diabo. Lá está escrito, no versículo
23, quando ele, Pedro, me queria desviar da minha missão:
"Arreda-te de ante mim, Satanás, que
me és escândalo, porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as
que são dos homens"...
Esses
papas são legítimos sucessores desse ruim apóstolo que repeli tão lisamente.
Pensam
todos muito mais nas coisas da Terra que nas do cé. Este agora, por exemplo, um
tal Pio XI. Contra minha recomendação
categórica de dar a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus, “isto é, afastarem-se absolutamente das coisas
temporais e do governo civil, contrai aliança com um déspota ambicioso e isso a
troco de mais um bilhão de liras"... E ainda aqui procede contra minha
ordem irretorquível: "Não ajunteis tesouros na terra!" Porque:
"onde estiver vosso tesouro aí estará vosso coração." (5)
(5)
Mateus VI 19 e 21
Nessa
monstruosa aliança, esse tal papa, que se diz abusivamente meu sucessor e
representante, adquire extraordinária autoridade sobre os povos de Itália e de
fora. Não terá lido esse papa, que presunçosamente se diz infalível e exige dos
cristãos disciplina férrea, aquela minha admoestação insofismável!
"Bem
sabeis que os príncipes dos gentios os dominam, e que os grandes exercem
autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; mas, todo aquele que
quiser entre vós fazer-se grande, seja vosso fâmulo (serviçal) e qualquer dentre vós que quiser ser primeiro
será vosso servo". (6)
(6) Mateus XX 25-27
Pois
vejo nessa tal Igreja, que dizem sacrilegamente ser minha esposa, muitos a
mandarem.
Aqui,
no Rio, é um tal cardeal Leme que mora num palácio! Eu não tinha onde repousar
a cabeça e esse gaiato vive como um rei; Cardeal!. Eu nunca fiz Cardeal nenhum,
nem arcebispo, nem bispo, nem padre, nem jesuíta, nem frades, nem freiras! Isto
tudo é uma deturpação indecente da minha obra. Missa! Ora, se eu algum dia
disse missa! Pelo contrário, determinei, muito claramente, como haviam de orar,
não a mim, mas a meu Pai. "Mas tu, quando orares, entra em teu quarto,
e, fechada a porta, ora em segredo a teu Pai e teu Pai que vê em segredo, te
restituirá". "Orando, não fales muito como os gentios;
pensam que por falarem muito serão ouvidos!" (7) E ensinei a única prece legítima e permitida
a discípulos meus, o padre nosso. Como então tolerar
essas adorações perpétuas a meu coração (que desaforo!), e esses rosários,
terços, novenas, etc., etc. Ordenei taxativamente: "Dai de graça o que de graça
recebestes. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos, nem
alforjes para o caminho, nem duas túnicas, nem bordão, porque digno é o operário
do seu alimento.” (8) Pois eles, os tais meus sacerdotes, enriquecem, recebiam e recebem
ordenado dos governos, vivem regaladamente, fazendo da minha obra torpe profissão.
(8)
Mateus XVI,9 e 10
Isto
é demais! A prédica do meu ensino, feita profissão! E que predica! E que
ensino!
Ora,
se eu algum dia ensinei teologia! E que teologia! Meu servo Francisco de Assis
pretendeu cumprir esta minha última ordem. Mal fechou os olhos, logo entraram
os franciscanos a adquirirem bens e vejo ali, na Avenida Rio Branco, um suntuoso
prédio propriedade deles. Que infâmia! E essa igreja
queimou vivos os poucos franciscanos que tentaram ficar fieis ao meu preceito
de pobreza!
Condenei
os doutores da lei porque exploravam as viúvas sob pretexto de prolongadas
orações (9) e esses meus pseudo representantes aceitam dinheiro e legados para
missas e rezas!
(9)
Mateus, XXIII, 14
Condenei
os mesmos doutores por carregarem os homens com cargas difíceis de transportar,
tais quais os teólogos católicos que transformaram minha doutrina num tenebroso
imbroglio!
Mandei que fossem limpos, dessem esmolas, tiradas evidentemente do próprio
trabalho, e eles estão sempre em toda parte, a pedir esmolas e, se dão, é
sempre a sobra das esmolas pedidas aos outros.
Quando
o bobo do Pedro me perguntou se devia perdoar ao irmão sete vezes, firmei, sem
a menor dúvida a doutrina do perdão perpetuo: "Concilia-te com teu adversário!"
(10) "Paz
perpetua com teu irmão". Pois meus tais representantes vão
excomungando a torto e a direito, punindo e queimando hereges, condenando os
que batem à porta, os que buscam conhecer, exigindo de todos que recebam o que
eles dão como certo, sem tugir, nem mugir, sem discutir, sem buscar, em suma.
(10) Mateus V, 25
Positivamente
é uma corja despudorada! Essa é tua obra, Satanás. Tua igreja é digna de teus
dedos!
(Jesus
cala-se. Satanás sorri, pede licença e fala).
Como
essa resposta nunca chegou às nossas mãos, se é que foi publicada,
entrevistamos aquela figura diabólica, que no-la repetiu e permitiu que a estenografássemos.
Isto após um satânico sorriso do tinhoso, ouvindo-se uma mefistofélica e
retumbante gargalhada, que ressoou por entre as alterosas nuvens que coroavam
esse inigualável mirante, como se fora a explosão de um trovão infernal,
ribombando pelas frondosas matas da Tijuca, Bico do Papagaio e serras adjacentes,
indo ecoar pouco a pouco por todo o Brasil.
Eis
a resposta de Satanás...
“Obra
minha dizes tu!
Obra
dos padres é que é! pois foram eles que ensinaram que o Criador deste realejo desafinado,
a quem chamas: Pai, embora me houvesse criado perfeito, pois, ele me chamou de
Lúcifer, isto é, Anjo da Luz, devia
saber pela sua Onisciência, que eu aninhava a maldade e o orgulho, predestinando-me até para perseguir esta
raça humana que, por sinal, já uma vez Ele afogou num dilúvio.
Foi
uma deslealdade de sua parte, de que eu não gostei, pois, não lhe pedi para ser
criado. A mesma peça pregou Ele ao Adão de Barros e à Eva da Costa que também
não pediram para ser fabricados de barro nem de costela alguma, para, por fim,
por causa de uma banana, pois tal era a fruta que se
chama mesmo musa paradisíaca, proibir-lhes de fazer uma porção de coisas
que Ele mesmo inventou.
Ora,
se a igreja romana não tivesse ido buscar essa história da árvore do Bem e do
Mal na religião dos Persas, há muito tempo que essa igreja teria desaparecido,
porque a legião de antropófagos que, diariamente, come tua carne e bebe teu
sangue, não disporia desses elementos que lhe permite a exploração
da credulidade de 85% de analfabetos e, portanto, de ignorantes, que constitui
a tão apregoada maioria de católicos no Brasil.
Se
os bispos romanos não tivessem tido a genial ideia de criarem uma plataforma
de parada, com o nome de Purgatório, nessa interminável
Estrada por onde o homem faz sua última viagem, ou seja, um porto
de quarentena, do qual só se pode zarpar pagando ao padre, pergunto eu agora:
Onde
estaria a Obra pela qual te deixaste espetar num madeiro?
Nem
mais se lembrariam de ti e não estarias aqui feito um fantasma!
Havendo
céu, como dizem esses matreiros, e, sendo o Criador Onimisericordioso, como
apregoam, é claro que toda sua criatura, como confirma o próprio Paulo, teu
discípulo, tem de para lá ir um dia, sem precisar de procuradores de beca
preta.
Mas,
tu, responde Jesus, é quem desvia minhas ovelhas, enganando-as com os gozos
terrenos, levando-as, por fim, para teus domínios.
E
porque criou Ele esses gozos, uma vez que Ele os proíbe? Porque não os suprimiu?
Ou isto é abusar da fraqueza humana ou é incoerência!
Além
disto, deste modo, minha existência espiritual colidiria com a Misericórdia e
com a potência desse Criador, pois, se ele me criou, dando-me eternos domínios
e ilimitados poderes, como dizem os padres, claro é que sua misericórdia e
Poder veem-se frustrados pelo meu poder que, então, é superior ao Seu.
Ora,
assim sendo, é logico que se eu não existisse, como quer o clero que eu exista,
com minhas fornalhas e meu exército de diabões e diabinhos, também criados por
Ele, não poderia existir a Igreja Católica romana, uma vez que, como dizem
essas beatificas azêmolas (bestas de carga), de lá ninguém se salva, embora a padralhada te coma ao mesmo tempo no
mundo inteiro.
Ao
espertalhão, portanto, que inventou esse Subúrbio do céu, é que o catolicismo,
que a massa iletrada ou fanatizada confunde com Cristianismo, deve sua
existência, pois, para de lá sair-se, segundo os decretos do Papa, é preciso
que o trouxa pague previamente ao sacristão o bife tirado do teu filet,
que o padre vai comer, bife este representado num pedaço de obreia (massa de que se faz a óstia), regado com
quatro dedos de finíssimo Porto, como se fosse teu sangue, apesar
de tu mesmo teres dito que aquelas palavras se referiam a espírito e verdade e não à
carne que nada vale.
Ora,
se não fossem as duas eternidades opostas e insolúveis pela teologia deles, não
teria surgido essa estupenda ideia do Purgatório, cujo fim foi fazer-me
uma desleal concorrência, arrancando-me das garras uma grande percentagem
desses mesmos procuradores de saias
curtas, velhas, moças e alguns milhões de boas biscas, que andam beijando os
pés de Santos de gesso e segurando tochas de irmandades.
Como
não pode haver penalidade, sem infração de uma lei qualquer, claro é que eles
forjaram, igualmente, uma lista de pecados,
cada qual mais extravagante, por ir de encontro aos mais insignificante atos da vida humana, e cuja autoria esses canalhas
me arrumaram nos cornos.
Ora,
si não fosse o Purgatório, e se tais infrações não fossem inventadas pelo
catolicismo, é certo que não existiria essa legião de malandros tonsurados. Não
havendo mercadoria para vender, como missas, confissões, batismos, indulgências,
talismãs etc., etc., desnecessário se tornam empregados e a casa terá de fechar
suas portas.
A
mim, pois, como gratidão, é que esses papa-hóstias deveriam render culto, como
fazem algumas tribos da África; pois, segundo elas, sendo o Criador supinamente
bom e misericordioso, jamais pode fazer mal à sua criatura, e, portanto,
dispensável se tornam a padralhada e as preces; ao passo, que sendo eu
supinamente mal, é logico que me peçam com orações e oferendas, a brandura e a
benevolência dos meus ataques hemorroidários.
Looogo.
.. a obra é dos padres e não minha, como dizes, pois, eu nada inventei; eles é
que até me inventaram.
Já
te representando num bloco de cimento armado, estilo arranha céu, eles provam, por
aí, que não respeitam tua doutrina contra a idolatria, que pregaste na Judeia,
e que, aliás, não era tua conforme repetiste, pois, segundo esses incoerentes,
vieste exatamente para cumprir a Lei de Moisés e dos profetas,
que é a Lei de Deus e que tal coisa proibe. A perversidade desses jesuítas, sobejamente
provada com a Inquisição, que querem reinaugurar no Brasil, suplanta minha
maldade, quando fazem crer aos patetas que fujo de ti, sem se lembrarem esses
idiotas que eles mesmos contam no Evangelho que te fiz passear sobre cidades,
comodamente sentado nas minhas asas, como se eu fosse aeroplano.
Outra
vez, mesmo, dizem eles, o próprio Criador teve uma conferência comigo, num dia
em que estava de bom humor, e duvidou que eu fosse capaz de corromper o pobre Jó,
autorizando-me até a persegui-lo, po-lo nú e reduzi-lo a pão e laranja, o que
fiz, não há duvida, empregando minhas artimanhas todas, mas, confesso, acabei
dando com os burros n'água, pois, nunca vi sujeito tão duro de roer, como Jó.
Nunca encontrei um padre assim; essa gente comigo é sopa, desde o seminário.
E
estes farsantes inventaram a água benta, à guisa de Flit, para me espantar! É
boa!
Jesus sorriu docemente e disse-lhe: Lúcifer, é
a primeira vez que te ouço falar a verdade; parece que te estás regenerando;
recomendar-te-ei a meu Pai.
"Mas,
o povo carioca, retorquiu Satanás, é que continua ludibriado, porque ainda não
descobriu o plano dessas águias negras estrangeiras, que
pretendem apossar-se, definitivamente, desse invejável logradouro público, já
com a compra de terrenos e propriedades ali, já os adquirindo por outros meios
indiretos, até conseguirem instalar seus ninhos nesse penedo, e até já
começaram com um seminário, cujo acesso, mais tarde, só será permitido mediante
licença especial da Cúria, com gorda contribuição, a título de qualquer
caridade. Velhacos!
Quando
o carioca abrir os olhos talvez tarde seja.
E
dizes que a Obra é minha?"
Outra
formidável gargalhada se fez ouvir num trovão e o boneco ali esculpido
petrificou-se novamente.
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