A
Caridade
Um hospital é lugar
onde mais facilmente pode ser exercida a caridade: basta dirigirem-no pessoas
que não tenham o coração empedernido, pessoas para as quais cada indivíduo seja
um irmão, sejam quais forem, neste, a crença religiosa e politica, a nacionalidade, a cor, a posição pecuniária ou social.
Nesses prédios,
não raro vastos, denominados hospitais, numerosos pobres encontram abrigo, têm
alimentos, são medicados.
Nesta cidade (1)
foi construído um desses prédios, - vasto, cômodo, firme, de acordo com a
estética, e para a manutenção do hospital há a renda de um fundo de reserva.
Era o mais difícil de se conseguir, e isso está feito.
(1)
Cataguases. Artigo publicado n'O Município.
Agora é necessário,
completando-se a obra, encontrarem aí os pobres, além do conforto físico,
também o conforto moral. Que sob esse teto encontrem os enfermos a dedicação de
um medico, a consciência de um farmacêutico e os cuidados pacientes de um
enfermeiro. Quanto ao enfermeiro, principalmente, muito há a esperar, pois
muito podem conseguir a sua palavra animadora, a sua prática profissional, a
sua dedicação de todas as horas.
É preciso
colocarem-se como enfermeiros, nessa casa de caridade, indivíduos a quem o
cargo não seja somente um meio de ganhar o pão, mas também uma espécie de
sacerdócio. Devem ter caráter acima da mediocridade, e ser caridosos como o devem
ser os cristãos.
O enfermo pobre
deve encontrar no hospital, além da assistência necessária aos sofrimentos físicos,
também o conforto moral, os cuidados necessários à alma, onde bastas vezes
reside a origem das moléstias do corpo.
Esses cuidados
para com o espírito, porém, devem ser prestados a cada enfermo de acordo com a sua
crença, e não impondo-se lhe essa ou aquela religião, por mais digna de
respeito que ela seja, - como em geral o são todas as crenças sinceras; - pois
liberdade alguma é tão merecedora de amparo como a liberdade religiosa, e é uma
vilania, das mais torpes, martirizarem os diretores de hospitais o mísero inválido,
mormente quando a este já vão faltando a faculdade de discernir com precisão e a energia
para a defesa do próprio credo, impondo-se lhe as cerimônias de uma religião
tardia, que o paciente aceita, coagido pela necessidade, sem sua alma tomar
parte em quanto o rodeia. Esquecem-se os corifeus do dogmatismo de que o Divino
Mestre recomendou, como seguro meio de nos aproximarmos de Deus, a prática da
caridade...
O benefício em
troca da liberdade religiosa não é caridade, e não honra jamais a quem o
pratica, como a benção de Isaac, permutada em um dia de fome por um prato de
lentilhas, não atraiu felicidade ao adquirente.
A verdadeira caridade
deve ser humilde e secreta. Usando-se as palavras expressivas dos livros
inspirados, pode-se declarar que a mão esquerda não deve perceber o que a direita oferece.
Talvez seja
demasiado hiperbólica a linguagem de Paulo de Tarso: "Se eu dispuser de todos os meus bens, e der o produto aos pobres, e der
o meu próprio corpo a ser queimado em beneficio dos pobres, nada valerei e nada
serei se não tiver caridade."
Hiperbólicas ou
não, as palavras do grande apóstolo contêm ensinamentos merecedores do mais
profundo respeito.
A verdadeira
caridade é simples e humilde. Não tem grandezas; não tem ostentação.
Conheci, há já
muitos anos, uma pessoa que sabia exercer a caridade cristã como fala dessa
virtude Paulo de Tarso. Fazia-o na persuasão de apenas cumprir um dever, -
simplesmente, humildemente, cristãmente.
Era uma pobre
mulher de cor, cuja única propriedade era uma casinha térrea, onde residia com
seu marido e seu único filho, em um dos bairros mais pobres de uma pequena
cidade do interior.
Laboriosa e ágil,
pequena de corpo e grande de alma, e de uma alegria sincera e comunicativa, e
atividade surpreendente, minorava muitas dores, amenizava muito sofrimento
alheio, e tudo fazia sem ostentação, mas alegremente, naturalmente, e
algumas vezes com a humildade de quem pede.
Onde houvesse um
enfermo desprotegido, ali estava essa mulher. Ouvia as observações do
facultativo, - que não raro chamado por ela com o pedido de se apresentar como
se o fizesse espontaneamente, - e ministrava os medicamentos, cozia e
apresentava alimentos, etc.
Muitíssimas vezes
eu a vi, ora levando um caldo à cama de um enfermo vizinho, ora fazendo-lhe um chá, ora compondo lhe o leito, ora fazendo,
enfim, tudo quanto só uma alma caridosa fazer, inclusive angariar lhe auxílios
como se os pedisse para si própria.
Se o enfermo era
pessoa do seu sexo, e mormente sem parentes próximos no lugar, ia essa mulher
fazer-lhe companhia, durante dias e noites, quase sempre conduzindo entre as
mãos um trabalho começado, que continuava nas horas desimpedidas, e quase
sempre dizendo que sentira-se isolada, por estarem ausentes o marido e o filho,
operários que eram, e que por isso tinha resolvido continuar o seu trabalho
junto ao leito da sua vizinha ou sua amiga enferma, assim fazendo-se companhia
mutuamente. E dizia-o com a maior naturalidade, sentindo talvez, em sua alma
boa, que de tanto amparo necessitava ela como a pessoa a quem tão abnegadamente
servia na moléstia.
Pobre entre as
mais pobres, ninguém naquela pequena cidade espalhou tanto beneficio como a
senhora a quem eu me refiro.
Um vestido longo
e escuro, calçando sapatos leves e sem saltos, os longos cabelos suspensos, em
tranças, à parte posterior da cabeça, ela percorria todos os bairros da pequena
cidade, ligeiramente, às pressas, como si o fizesse a negócios, mas realmente à
procura de um beneficio a fazer, de um ato de caridade a praticar, o que ela
fazia sem compreender estar exercendo a caridade como Paulo de Tarso a
descreveu, mas apenas agindo com o intuito único de minorar, de combater o
sofrimento alheio.
É provável não
pertencer mais ao número dos vivos, tendo ido certamente, se deixou de existir,
colher o fruto da sua bondade, da dedicação com que compreendeu a mais sublime
das virtudes.
Deixo de citar lhe
o nome, - e que vale um nome? - para que, caindo estas linhas sob as vistas de
algumas pessoas de sua família, ou de sua vizinhança ou suas antigas relações,
pessoas que não a compreenderam devidamente, não lhes arranque o meu pobre
escrito algumas palavras de protesto.
Há criaturas
assim. Passam pela vida sem ser compreendidas pela grande massa popular, sem
ser sequer notadas por muitíssimos, e entretanto deixam após si, na roda dos
seus íntimos, ou entre os raros observadores atentos e imparciais dos homens e
das coisas, um rastro luminoso que Deus certamente transforma, após a passagem
desta à outra vida, num halo de bênçãos pelas regiões sidéreas.
A pessoa de quem
falo é um desses casos, uma das Pérolas Ocultas disseminadas pelo
mundo.
É de criaturas
semelhantes que os hospitais necessitam, para que possam eles ser chamados, sem
ironia, casas de caridade.
por Abel Gomes
in ‘Pérolas
Ocultas e Factos Comentados’
Ed.
FEB -
1943
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