quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Caridade


A Caridade

            Um hospital é lugar onde mais facilmente pode ser exercida a caridade: basta dirigirem-no pessoas que não tenham o coração empedernido, pessoas para as quais cada indivíduo seja um irmão, sejam quais forem, neste, a crença religiosa e politica, a nacionalidade, a cor, a posição pecuniária ou social.

            Nesses prédios, não raro vastos, denominados hospitais, numerosos pobres encontram abrigo, têm alimentos, são medicados.

            Nesta cidade (1) foi construído um desses prédios, - vasto, cômodo, firme, de acordo com a estética, e para a manutenção do hospital há a renda de um fundo de reserva. Era o mais difícil de se conseguir, e isso está feito.

               (1) Cataguases. Artigo publicado n'O Município.

            Agora é necessário, completando-se a obra, encontrarem aí os pobres, além do conforto físico, também o conforto moral. Que sob esse teto encontrem os enfermos a dedicação de um medico, a consciência de um farmacêutico e os cuidados pacientes de um enfermeiro. Quanto ao enfermeiro, principalmente, muito há a esperar, pois muito podem conseguir a sua palavra animadora, a sua prática profissional, a sua dedicação de todas as horas.

            É preciso colocarem-se como enfermeiros, nessa casa de caridade, indivíduos a quem o cargo não seja somente um meio de ganhar o pão, mas também uma espécie de sacerdócio. Devem ter caráter acima da mediocridade, e ser caridosos como o devem ser os cristãos.

            O enfermo pobre deve encontrar no hospital, além da assistência necessária aos sofrimentos físicos, também o conforto moral, os cuidados necessários à alma, onde bastas vezes reside a origem  das moléstias do corpo.

            Esses cuidados para com o espírito, porém, devem ser prestados a cada enfermo de acordo com a sua crença, e não impondo-se lhe essa ou aquela religião, por mais digna de respeito que ela seja, - como em geral o são todas as crenças sinceras; - pois liberdade alguma é tão merecedora de amparo como a liberdade religiosa, e é uma vilania, das mais torpes, martirizarem os diretores de hospitais o mísero inválido, mormente quando a este já vão faltando a faculdade de discernir com precisão e a energia para a defesa do próprio credo, impondo-se lhe as cerimônias de uma religião tardia, que o paciente aceita, coagido pela necessidade, sem sua alma tomar parte em quanto o rodeia. Esquecem-se os corifeus do dogmatismo de que o Divino Mestre recomendou, como seguro meio de nos aproximarmos de Deus, a prática da caridade...

            O benefício em troca da liberdade religiosa não é caridade, e não honra jamais a quem o pratica, como a benção de Isaac, permutada em um dia de fome por um prato de lentilhas, não atraiu felicidade ao adquirente.

            A verdadeira caridade deve ser humilde e secreta. Usando-se as palavras expressivas dos livros inspirados, pode-se declarar que a mão esquerda não deve perceber o que a direita oferece.

            Talvez seja demasiado hiperbólica a linguagem de Paulo de Tarso: "Se eu dispuser de todos os meus bens, e der o produto aos pobres, e der o meu próprio corpo a ser queimado em beneficio dos pobres, nada valerei e nada serei se não tiver caridade."

            Hiperbólicas ou não, as palavras do grande apóstolo contêm ensinamentos merecedores do mais profundo respeito.

            A verdadeira caridade é simples e humilde. Não tem grandezas; não tem ostentação.

            Conheci, há já muitos anos, uma pessoa que sabia exercer a caridade cristã como fala dessa virtude Paulo de Tarso. Fazia-o na persuasão de apenas cumprir um dever, - simplesmente, humildemente, cristãmente.

            Era uma pobre mulher de cor, cuja única propriedade era uma casinha térrea, onde residia com seu marido e seu único filho, em um dos bairros mais pobres de uma pequena cidade do interior.

            Laboriosa e ágil, pequena de corpo e grande de alma, e de uma alegria sincera e comunicativa, e atividade surpreendente, minorava muitas dores, amenizava muito sofrimento alheio, e tudo fazia sem ostentação, mas alegremente, naturalmente, e
algumas vezes com a humildade de quem pede.

            Onde houvesse um enfermo desprotegido, ali estava essa mulher. Ouvia as observações do facultativo, - que não raro chamado por ela com o pedido de se apresentar como se o fizesse espontaneamente, - e ministrava os medicamentos, cozia e apresentava alimentos, etc.

            Muitíssimas vezes eu a vi, ora levando um caldo à cama de um enfermo vizinho, ora fazendo-lhe   um chá, ora compondo lhe o leito, ora fazendo, enfim, tudo quanto só uma alma caridosa fazer, inclusive angariar lhe auxílios como se os pedisse para si própria.

            Se o enfermo era pessoa do seu sexo, e mormente sem parentes próximos no lugar, ia essa mulher fazer-lhe companhia, durante dias e noites, quase sempre conduzindo entre as mãos um trabalho começado, que continuava nas horas desimpedidas, e quase sempre dizendo que sentira-se isolada, por estarem ausentes o marido e o filho, operários que eram, e que por isso tinha resolvido continuar o seu trabalho junto ao leito da sua vizinha ou sua amiga enferma, assim fazendo-se companhia mutuamente. E dizia-o com a maior naturalidade, sentindo talvez, em sua alma boa, que de tanto amparo necessitava ela como a pessoa a quem tão abnegadamente servia na moléstia.

            Pobre entre as mais pobres, ninguém naquela pequena cidade espalhou tanto beneficio como a senhora a quem eu me refiro.

            Um vestido longo e escuro, calçando sapatos leves e sem saltos, os longos cabelos suspensos, em tranças, à parte posterior da cabeça, ela percorria todos os bairros da pequena cidade, ligeiramente, às pressas, como si o fizesse a negócios, mas realmente à procura de um beneficio a fazer, de um ato de caridade a praticar, o que ela fazia sem compreender estar exercendo a caridade como Paulo de Tarso a descreveu, mas apenas agindo com o intuito único de minorar, de combater o sofrimento alheio.

            É provável não pertencer mais ao número dos vivos, tendo ido certamente, se deixou de existir, colher o fruto da sua bondade, da dedicação com que compreendeu a mais sublime das virtudes.

            Deixo de citar lhe o nome, - e que vale um nome? - para que, caindo estas linhas sob as vistas de algumas pessoas de sua família, ou de sua vizinhança ou suas antigas relações, pessoas que não a compreenderam devidamente, não lhes arranque o meu pobre escrito algumas palavras de protesto.

            Há criaturas assim. Passam pela vida sem ser compreendidas pela grande massa popular, sem ser sequer notadas por muitíssimos, e entretanto deixam após si, na roda dos seus íntimos, ou entre os raros observadores atentos e imparciais dos homens e das coisas, um rastro luminoso que Deus certamente transforma, após a passagem desta à outra vida, num halo de bênçãos pelas regiões sidéreas.

            A pessoa de quem falo é um desses casos, uma das Pérolas Ocultas disseminadas pelo mundo.

            É de criaturas semelhantes que os hospitais necessitam, para que possam eles ser chamados, sem ironia, casas de caridade.

por Abel Gomes
in ‘Pérolas Ocultas e Factos Comentados’

Ed. FEB  -  1943

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