Considerações
Críticas – parte
3
José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Outubro 1956
III - A Onda
Sobe
Zamora não foi tomada em uma hora, (refere-se às disputas por territórios entre espanhóis
e muçulmanos e que duraram séculos) e não
pode ser obra de alguns anos derrubar com a palavra uma instituição que já
conta tantos séculos de existência.
Para as grandes demolições exige-se, além do perseverante
martelo de inumeráveis operários inteligentes, a lenta, mas segura ação dos
tempos, desse grande demolidor que tudo gasta e pulveriza, salvo o que nunca
foi instituído e que é, por isso, indestrutível e imortal.
Sabemos disso, e por isso não alimentamos a ilusão de
presenciar em curtíssimo prazo o desaparecimento definitivo da poderosa igreja
ultramontana, nem construímos castelos de pura fantasia acreditando em imediata
renovação do sentimento religioso.
O ultramontanismo (refere-se
à doutrina política católica que busca em Roma a sua principal referência. Este
movimento surgiu na França na primeira metade do século XIX. Reforça e defende
o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplina e fé.) está irrevogavelmente condenado por sua corrupção, por
suas infâmias, por seus erros, pela odiosidade que despertam seus negros fins,
a sucumbir, esmagado pelo progresso, em sua majestosa corrente; mas ainda
dispõe de elementos e forças, não já para recuperar a sua perdida onipotência,
mas, sim, para resistir e perturbar.
Um novo símbolo, submetido primeiro ao grande concílio
ecumênico das ciências e da razão, virá encher o vazio que houverem deixado na
consciência humana os velhos erros, os dogmas caducos, as superstições
herdadas; mas ainda a indiferença e o ceticismo, densas névoas da razão e do
sentimento, levantadas dos antigos ensinos, interceptarão por algum tempo a luz da
nova fé.
Teremos, pois, de renunciar ao legítimo desejo de
assistir em nosso século ao desaparecimento do despotismo teocrático, verdugo
das consciências, filho espúrio do Cristianismo, e à doce, à consoladora
esperança de saudar a primavera de uma civilização expansiva, harmônica,
fundada na liberdade, na justiça e na fraternidade humana, na fé racional que
emana da contemplação científica do Universo, e que nos impele a dobrar o
joelho e beijar a mão de Deus na infalibilidade de suas leis e na magnificência
de suas obras?
Não, certamente Quase todo o trabalho de demolição já
está feito; o alicerce do Catolicismo convencional está perfeitamente minado, e
com um seguido esforço supremo da parte dos amantes da verdade a torre
babilônica pode ficar reduzida a escombros, sobre os quais abrirá profundos
sulcos o arado da Civilização, filha da filosofia e da consciência livre.
Desde Orígenes e Ario até Fócio, desde Fócio até Lutero,
desde Lutero até a Enciclopédia francesa e desde a Enciclopédia até o
racionalismo de nossos dias, o pseudocristianismo, mescla informe de religião,
filosofia e política, encontrou sempre em sua frente ilustres gênios para
combatê-lo e solapar o seu tenebroso domínio.
Foi a perpétua cruzada da razão contra a perpétua
opressão do pensamento. E a onda que arrastará e sepultará nos abismos a frota
ultramontana, foi subindo com os séculos, cheia de maldições e engrossada com o
sangue de milhares e milhares de vítimas e de mártires.
O século atual parece ser o designado pela Providência
para nele consumar-se a grande ruína de todo um sistema religioso, que teve a
sua razão na ignorância e no atraso moral das idades passadas.
Não é isso uma afirmação gratuita, expressão infundada de
um desejo, mas o anúncio de um acontecimento de cuja proximidade nenhuma
consciência duvida.
Que é feito daquele poder incontestável da seita
ultramontana, daquela sua decisiva influência na política dos Estados, daquele
seu despótico domínio nos costumes, daquela sua indiscutível infalibilidade na
declaração do dogma? De tudo isso não resta mais que pálido reflexo; e em
breve, a julgar pelo encadeamento e a lógica dos sucessos, só restará a sua
memória, para ser amaldiçoada, como a do maior dos crimes históricos, como a de
uma grande miséria social, espécie de asquerosa lepra moral que contagiou todas
as consciências, mergulhando-as ou num desespero acerbo ou numa vergonhosa
servidão.
Houve um tempo em que sua força era superior a dos
imperadores e reis; em que sua vontade prevalecia na política dos Estados; em
que seu espírito era o único que formava os costumes; em que seus dogmas
fixavam à Filosofia e a todas as ciências a norma de seus desenvolvimentos;
hoje ela vive de esmolas, e da interessada proteção dos governos, sem a qual a
Ciência teria destruído o dogma, e a consciência humana o jugo teocrático.
A onda da indignação dos povos sobe ameaçadora; se a
barca ultramontana ainda flutua sobre as águas, é por ser rebocada pelos
poderes públicos, que ainda não julgam oportuno abandoná-la a si mesma à mercê
da tormenta.
A igreja ultramontana em nossos dias é uma instituição
anacrônica; é o quietismo religioso no meio do movimento, do vapor, da
eletricidade; é o firmamento teológico de cristal pretendendo recuperar a
perdida posse do Céu, arrebatado a ela pelos milhões de mundos descobertos pela
Ciência, terrível inimiga da teologia dogmática.
Mas o vapor e a eletricidade do pensamento emancipado
triunfarão da inércia religiosa, e os mundos e as humanidades se apossarão do
Universo, apesar da lenda adâmica e da acanhada criação teológica.
Quem não sorri ao ouvir assegurar-se, com teológico
aprumo, que Deus confiou a certos homens a posse da verdade absoluta? Quem não
olha com lástima para os pretendidos intérpretes da Providência, de cujas mãos
afirmam haver recebido diretamente as chaves do Céu e dos abismos? A quem hoje
persuadirão mais com a indigente e irracional geringonça de que para ver com
clareza as coisas espirituais seja necessário cerrar os olhos do espírito?
Medite-se sobre o que tem perdido o ultramontanismo nos
últimos trinta anos, sua atual notória decadência, a importância de seus
reveses políticos, o descrédito em que vão caindo seus ensinos, a frieza com
que a consciência pública acolhe, tanto as suas impotentes ameaças como as suas
ridículas promessas; tenha-se ainda em conta que o bom senso dos povos aponta-o
como causador das discórdias civis e das agitações incessantes que perturbam a
paz dos Estados, entorpecendo a marcha ordenada do progresso; e
compreender-se-á que, com o que resta do século, há tempo de sobra para que possamos
presenciar os últimos momentos de seu império.
Agora se vive muito do passado; a julgar pela rapidez com
que os acontecimentos se sucedem, cada lustro vale uma centúria.
Oh! igreja ultramontana, dos dogmas absurdos, da feroz
intolerância, do sacrílego comércio! alimentarás ainda a soberba pretensão de
jungir uma vez as sociedades ao jugo de teus erros? Tua sede de domínio e de
riquezas é inextinguível; mas o mundo te conheceu, e o dia do teu poder declina
rapidamente. Erigiste o teu trono sobre a ignorância; mas a ignorância foi
vencida pelas caudais de luz que a Ciência esparge; a razão humana toma posse de
si mesma, envergonhando-se do seu longo cativeiro.
Como - pergunta ela maravilhada - como pude dar crédito à
palavra desses homens que, pregando a pobreza, se fazem ricos; recomendando a humildade,
são orgulhosos; falando de amor e paz, avivam os ódios e as guerras; blasonando
de fiéis discípulos de Jesus, são a contradição viva da moral evangélica?
Eles querem terraplenar, com a fé cega; o abismo que os
separa do Cristianismo; mas esse abismo cada dia se torna mais profundo, e já
não há ignorância nem fanatismo que bastem para enche-lo. Passam-se em bandos
os fanáticos para o campo dos cépticos, ao mesmo tempo que os homens pensadores
se agrupam para derrubar os ídolos, para denunciar as fraudes, para
opor aos dogmas da Teologia os da Natureza e da Razão, que hão de ser os
fundamentos da Igreja Universal. Soou a hora de quebrar os moldes das antigas
aberrações religiosas, substituindo-os pelos que a Filosofia e as ciências nos
oferecem já feitos. Acentua-se nesse sentido uma evolução, que não pode passar
despercebida, por pouco que se estude o movimento intelectual e moral da nossa
época.
No seio das famílias, nos saraus, nos círculos ilustrados,
nos ateneus científicos, onde quer que se reúnam pessoas estudiosas para a
permuta de suas observações e ideias, fazendo-se eco, tanto dos grandes ensinos
da História como das necessidades e aspirações humanas; em toda a parte, como
se um espírito invisível associasse em um mesmo pensamento todas as
inteligências, a atual crise religiosa é um dos temas preferidos, talvez o que
provoque as mais frequentes e renhidas discussões.
A imprensa de todos os matizes, esse novo poder das
sociedades modernas, órgão da opinião, barômetro da cultura e do progresso,
chama também a juízo a fé e a tradição e, refletindo fielmente o estado dos
ânimos, atesta a necessidade de uma renovação nas crenças, que ponha termo ao
tráfico imoral das mercadorias espirituais.
Milhares de livros entregues à voracidade do livre exame
e nos quais se ventilam todos os problemas da filosofia religiosa, avivam nas
almas o desejo de estudar a Natureza para nela buscar a chave dos destinos
humanos.
Ponhamos a nossa confiança nesse movimento regenerador,
nessa agitação incessante dos espíritos. A inércia é a enfermidade e a morte; o
movimento, a saúde e a vida. Assistimos à gênese de uma transformação moral que
há de ser o ponto de partida de uma nova civilização.
Quem não fica assombrado ao considerar as mudanças
operadas neste século? Quem poderá duvidar de estarmos atravessando um período
de rápida transição? Quem não prevê que a Humanidade vai assentar a sua planta
em um mundo novo, nutrir-se com outros alimentos, acariciar outras ideias, fundar
outras instituições e substituir por outros mais perfeitos os velhos
organismos sociais?
Sorri-nos a esperança de que em breve o racionalismo
cristão alumiará o mundo inteiro, e que da igreja ultramontana não restará
pedra sobre pedra.
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