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XII O Espiritismo,
revelação divina que é, testemunha a ação de Deus, por seus mensageiros, nos
destinos do mundo. O Consolador, ou Espírito de Verdade, prometido pelo Cristo. Necessidade de uma renovação religiosa. Os três aspectos
fundamentais, do Espiritismo. O Brasil e a nova era.
Do
que ficou exposto nos precedentes capítulos resulta que a vida, em sua tríplice
expressão - física, intelectual e moral, ou planetária, mental e espiritual -
se desdobra, não decerto ao sabor do acaso, ou de forças inconscientes e cegas,
como em última análise o pretendem as escolas negativas c materialistas, mas
segundo um plano preconcebido e majestoso que - já o dissemos - pode ser
expresso nesta palavra: evolução. Do zero ao infinito da escala, os seres com as suas formas e os
mundos com as suas humanidades, todas as coisas visíveis como o substrato
invisível que as anima, tudo progride, se transforma e evolui, sempre no
sentido de uma perfectibilidade cada vez mais alta e tendo como final objetivo
reunir-se a sua Causa, que é Deus, de quem tudo procede, em quem tudo vive e, em
cuja eterna glória são chamados a confundir-se todos os espíritos, sem perda contudo
da individualidade, como nas páginas finais deste trabalho nos
reservaremos demonstrar.
Uma
só é assim a fonte da vida física de que se alimentam os seres, uma única a
Inteligência, que em todas as inteligências fracionarias se reflete, uma
finalmente a Bondade perfeita em que bebem e hão de perpetuamente haurir estímulos
e exemplos as aspirações de bondade, latente ou patenteada em toda criatura .
Partindo, pois, da vida física, preparatória inicial, em contado com as forças
vivas que nela operam, o que os seres buscam imediatamente é o desenvolvimento
da inteligência, solicitada pelo espetáculo da fenomenalidade exterior; mas o
objetivo superior, definitivo, a que são encaminhados é - não precisamos recordar que percorrendo ciclos
graduais, sucessivos e ascendentes - a realização da bondade, em que culmina a
evolução. Na primeira fase, despertam e afirmam-se os instintos, propriamente
inferiores tendentes à conservação do indivíduo, como da espécie:
na segunda, predomina a inteligência que, à
medida que se esclarece, os vai retificando e submetendo ao império da razão, e
por último a natureza divina desabrocha e, mediante a conveniente educação e
disciplina, acaba por absorver e transmudar no instinto superior do bem moral
as capacidades precedentes.
Ora,
se a ação divina, como o procuramos anteriormente demonstrar, se faz sentir por
seus órgãos próprios, isto é, pelos espíritos prepostos, em todas as esferas da
criação e em todas as manifestações da vida, de que é o oculto e supremo
propulsor; se, no referente às conquistas da civilização e do progresso, no
duplo sentido material e intelectual, se exerce com o concurso de todos os
homens de boa vontade, consoante a vocação de cada um, no domínio das letras,
das artes, das ciências, em suas modalidades e aplicações variadíssimas, é
sobretudo no domínio moral e religioso que, por mais importante, prepondera.
É
por isso que, enquanto os progressos em todos os ramos da atividade intelectual
humana se efetuam com uma espécie de continuidade que lhes não permite separar
e distinguir as fases, a evolução religiosa, posto que lenta e a intervalos, se
afirma acentuadamente, cada Revelação dessa natureza assinalando uma época e
não somente marcando o início de uma nova ou renovada civilização, mas
suscitando os ideais que lhe vão constituir os fundamentos e em torno dos quais
serão daí em diante chamados a gravitar os esforços e aspirações das
coletividades com o seu anúncio beneficiadas. Mais ainda: em cada um desses períodos cíclicos de revelação
religiosa, como a dar ostensivo testemunho da intervenção da Providência -em
tal sentido, surge sempre um grande missionário, pregoeiro das eternas verdades
que, da parte de Deus, veio a tornar-se necessário transmitir aos homens .
Aludimos
- é claro - a épocas relativamente próximas, de cujo movimento de iniciação
religiosa subsistem documentos escritos; porque, se houvéssemos de remontar às
origens desse movimento, em busca de uma primitiva Revelação natural, surgida
no berço das primeiras raças povoadoras do planeta, sobre excedermos os limites
deste trabalho e de nossas possibilidades pessoais, teríamos que renunciar a
toda pesquisa de cunho positivo, perdidos que se acham na bruma das idades os vestígios
de remotas civilizações conjecturais, que uma vaga tradição localiza no
continente africano. Recorrendo mesmo às fontes eruditas, nenhum documento se
encontra anterior aos Vedas, cujos livros sagrados, em forma ele hinos, são os
mais antigos de que há notícia.
Para
o fim, bem mais modesto, que nos propomos, baste-nos mencionar as grandes
figuras de fundadores e reformadores de religiões: a cujo aparecimento e
atuação no cenário do mundo bem se pode aplicar a palavra do inspirado apóstolo
no sentido de que "Deus jamais se deixou sem testemunho." Tais foram,
por exemplo, Çakia-Muni, ou Gautama (o Buda), e Krishna na Índia, Confúcio na
China, Zoroastro na Pérsia e Moisés entre os hebreus, sobre esses eminentes vultos pairando, com
soberano relevo, pela absoluta pureza e santidade de toda a sua vida, a doce e
inconfundível figura do Cristo, no dizer dos próprios orientalistas, "o Divino Instrutor dos anjos e dos homens.
"
Recentes
pesquisas e trabalhos de vulgarização, tendentes a tornar conhecidas no
ocidente as doutrinas filosóficas e religiosas professadas no oriente, sob os
nomes de Vedanta e Induísmo, posterior fusão do Budismo e Bramanismo antigos, e
sobretudo a propaganda, com intuitos de proselitismo e mediante um largo
programa de aproximação, empreendida pela Sociedade Teosófica, vieram pôr em
evidencia, com os pontos de similitude ou de contato existentes entre essas várias
doutrinas, a unidade de pensamento que a todas parece haver presidido, o que é
tanto menos de admirar quanto não somente uma única é a Fonte da eterna verdade
absoluta, de que derivam todas as verdades parciais cognoscíveis pelos homens, como sendo um mesmo, de sempre, o
Instrutor do mundo, as sucessivas revelações que, sob a sua direção, a ele tem
baixado, haviam de forçosamente guardar, pelo menos em suas linhas gerais, o
cunho de identidade originária.
Sem
desconhecer a utilidade das tentativas de aproximação a que aludimos, quer no
sentido de favorecer o estudo comparativo das religiões, quer no de contribuir
para a grande obra de unificação, que se aproxima, das crenças religiosas da
humanidade, na qual, pela amplitude e tolerância de seus objetivos, vem
colaborar o Espiritismo, não nos deteremos contudo em analisar esse paralelismo
doutrinário, tarefa que cedemos de bom grado aos eruditos, para nos cingir,
consoante o plano desta obra, a estabelecer a filiação direta, por assim dizer,
histórica do Espiritismo, buscando os elos por que se prende às revelações que
o precederam.
Para
isso não precisamos nos afastar do ponto de vista em que se colocou Allan
Kardec, não porque desconhecesse a anterioridade do movimento religioso operado
no oriente, mas, porque, considerando a limitação de sua órbita expansiva, circunscrita
àquela região, entendeu que, sendo o Espiritismo a terceira das grandes
revelações destinadas a influir ostensiva e decisivamente na civilização
ocidental, não havia necessidade de remontar além daquela que se caracteriza, na ordem de sucessão
progressiva, como o seu ponto de partida.
Assim
apreciando o assunto - e esse é também o critério que preferimos adoptar
- estabeleceu ele (1) na fórmula Moisés
- o Cristo - o Espiritismo o desenvolvimento gradual dessas revelações, cada
uma das seguintes contendo a ampliação e, ao mesmo tempo, a retificação da
precedente, naquilo que houvesse porventura sido adulterado pela colaboração
dos homens.
Há,
ainda, para legitimar a coordenação logicamente feita por Allan Kardec, uma
dupla circunstância indicativa do vinculo de similitude e, mais que isso, de
solidariedade que prende essa mutuamente confirmativa trilogia doutrinaria. Não
é apenas o fato de, em cumprimento das profecias que o anunciavam, ter sido entre os
hebreus que baixou pessoalmente o Cristo, conforme a sua palavra, "não a destruir a Lei, senão a dar-lhe
cumprimento," do mesmo modo que o Espiritismo surge entre os povos
cristãos, a cumprir as promessas de Jesus, restabelecendo e confirmando os seus
ensinos: é em primeiro lugar a intervenção ostensiva do mundo espiritual, isto
é, dos seres de diferentes categorias que o povoam, quer em toda a acidentada
história dos israelitas, assistindo e inspirando desde Moisés aos últimos profetas,
quer operando em torno e sob as ordens do Cristo, em todo o curso de sua missão
messiânica e, mesmo depois, junto aos apóstolos e discípulos, médiuns que eram
de várias aptidões ou faculdades, quer finalmente no Espiritismo, em
que essa colaboração do Alto adquire, com a máxima plenitude, o cunho de uma
universalidade e constância que vem a constituir a sua feição preponderante e,
em segundo lugar a índole eminentemente democrática dessas revelações,
dirigidas ao povo e não aos privilegiados de qualquer categoria,
caracterizando-se por isso os seus ensinamentos pela simplicidade e clareza que
os torna acessíveis aos de menos culta e desenvolvida inteligência.
É
certo, no que se refere ao Mosaísmo, que nem sempre foi mantida a instrução
religiosa do povo dentro dos rígidos e singelos preceitos do Decálogo, em seus
desenvolvimentos naturais, nem foi a doutrina preservada de modificações
tendentes a despojá-la de seu cunho originário, antes, à medida que declinava o
"profetismo," e sobretudo nos dois séculos que precederam o advento
do Messias, uma doutrina esotérica, sob o nome de Cabala, se foi paralelamente
instituindo, reservada unicamente a iniciados e contendo a filosofia religiosa
dos hebreus; mas não é menos certo que o ensino popular subsistiu sempre, ministrado nas sinagogas, com a modalidade
particular do livre comentário, como se evidencia do fato de ter sido Jesus,
aos doze anos, admitido a ler, no Templo, as Escrituras e as discutir com os
mestres de Israel, fato que se repetiu, já no curso de sua missão, quando em
Nazaré, penetrando na sinagoga, leu e comentou o livro do
profeta Isaías, na passagem referente à sua própria vinda (1) .
(1) Lucas, IV, 16 a
21.
E
se, por outro lado, esse mesmo ensino das verdades religiosas viera a declinar,
sobrepondo-se-lhe as práticas materiais do culto, que os escribas e fariseus se
empenhavam em desenvolver - tal qual ocorre em nossos dias - pelos proventos
que daí lhes resultavam, a vinda de Jesus teve exatamente por fim, com a
libertação do povo desse jugo obscurecedor, o restabelecimento da Lei na pureza
original de seus preceitos, a que viera trazer a oportuna ampliação.
A
cerca também do Cristianismo, pretendem certos exegetas atribuir a Jesus um
duplo ensino, esotérico para os discípulos e iniciados, exotérico para as multidões.
Sem dúvida, o Divino Mestre empregava frequentemente as alegorias e parábolas,
adaptando assim a sua linguagem ao imaginoso estilo oriental, antes, porém, com
o intuito, de um lado, de tornar mais acessíveis, por objetivos e, de alguma
sorte, materializados, os seus ensinamentos à inteligência popular, do que no
de lh'os subtrair, a não ser nalguns casos restritos e por um certo tempo, e do
outro para estimular os estudiosos a um maior esforço meditativo e de
compreensão.
Os
que afirmam essa instituição de uma doutrina secreta, que, entretanto, não
podia estar nas intenções d' Aquele que viera anunciar, de preferência, o
Evangelho aos pobres (1), e que a uma
simples mulher do povo, como a Samaritana, renegada da ortodoxia judaica,
ensinava abertamente um dos mais altos princípios - a natureza espiritual de
Deus e a universalidade do culto que identicamente lhe deve ser prestado -
pretendem basear-se em algumas passagens do Evangelho, como por exemplo aquela
em que, interrogado pelos discípulos acerca do motivo por que falava em parábolas
à multidão, tendo precisamente acabado de referir a do Semeador (2), lhes respondeu: "Porque a vós outros vos é dado conhecer os mistérios
do reino dos céus, mas a eles não lhes é concedido. "
(1) MATEUS, XI, 2-6;
LUCAS, VII, 18-23.
(2) MATEUS, XIII,
10-12 e segs.
Esquecem,
porém, tais exegetas, em primeiro lugar, que o Evangelho é um todo unido e
solidário e que, assim, para o seu perfeito entendimento é indispensável
buscar, pela aproximação, a concordância das passagens que se completam, elos
que são de um mesmo pensamento, em lugar de o mutilar pelo isolamento fracionário,
e em segundo que Jesus não se podia contradizer, pois que, se de um lado e em
determinado momento fez intencionalmente restrições como a que acabamos de
indicar, do outro, ao dar instruções aos discípulos para o exercício do ministério
de que os investia, expressamente lhes recomendava (MATEUS, X, 27): "O que eu vos digo às
escuras, dizei-o às claras, e o que se vos diz ao ouvido, publicai-o dos telhados."
Não
está aí evidente o cunho de vulgarização e de clareza que o Cristo estabelecia
para a sua doutrina, sob essa condição destinada a perpetuar-se e evoluir
indefinidamente?
Cumpre,
em terceiro lugar, não esquecer que a função didática do Cristo, dada a
exiguidade do tempo em que a exerceria - não mais que três brevíssimos anos -
era por natureza sintética e que assim, podendo apenas instruir previamente os
discípulos, espíritos adiantados por ele escolhidos para tal fim, como os mais
aptos depositários do seu pensamento, a estes caberia ser os continuadores de
sua missão, transmitindo aos povos os ensinos do Mestre, não somente em sua
forma alegórica e figurada, mas acompanhados das explicações que a todos
tornariam possível o seu claro entendimento. Não é assim que vemos, no mesmo corpo doutrinário do Evangelho, que
ulteriormente veio a circular, por cópias, nas comunidades cristãs, como objeto
de estudo e meditação dos novos convertidos, ao lado das parábolas, em que
Jesus falara ao povo, a explicação complementar que as esclarece, toda vez que,
solicitada pelos discípulos, como o haviam feito em relação a essa mesma do
Semeador, lhes fora ministrada pelo Mestre?
Por
isso vínhamos dizendo que as restrições, em alguns casos estabelecidas por
Jesus, o foram por um certo tempo, isto é, até que, despertado pelo anúncio da
Boa Nova o gosto das coisas espirituais, afluíssem as legiões de crentes ao
estudo dos ensinamentos que enfeixava e que, portentosa luz do Alto projetada,
não deveriam ser postas "sob o alqueire (1)," mas publicados para edificação de todos .
(1) Mateus, V, 15.
Nesse
estudo, feito nas comunidades cristãs e acompanhado dos exercícios de
recolhimento e prece que comporta, sob a vigilância e direção das elevadas
entidades
do invisível com o fim de proporcionar aos
adeptos o domínio da mente e o desenvolvimento da intuição, tal como vem, a seu
turno, renovar o Espiritismo, é que consistiam as práticas ou métodos iniciáticos
destinados a facultar um conhecimento dos princípios transcendentes da
doutrina, tanto mais profundo quão mais se fossem adiantando em perfeição os
seus cultores, não porém mediante a instituição de hierarquias convencionais
entre eles, nem dividido em esotérico e exotérico o ensino, mas
ao contrario mantido em sua feição democrática, sem arbitrárias exclusões.
Foi
o que não compreenderam e, menos (ainda se dispuseram a fielmente observar os
posteriores depositários do divino legado (1), que as
vicissitudes trazidas pelos séculos, sobretudo após a invasão, na Europa, dos bárbaros
do norte, e a intromissão do espírito de orgulho e de domínio no ministério
sacerdotal terminariam por converter num amontoado de práticas devocionais e suntuárias,
que são a antítese completa da espiritualidade e singeleza que, em seu berço e nos primeiros séculos
de apostolado humilde e pobre, o caracterizaram.
(1)
Referimo-nos propriamente à igreja católica, abstendo-nos de apreciar aqui as
tentativas de ecletismo ou, melhormente, de aristocratização do Cristianismo,
representadas nos sistemas que, sob os nomes de Gnosticismo e de Neoplatonismo,
floresceram de fins do 1º ao VI século e de cuja tradição doutrinária ainda
subsistem vestígios em algumas seitas filiadas ao Ocultismo .
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