quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

24. 'O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários'




24

 “O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...
           
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris


            Entretanto, a ignorância religiosa já vai perdendo hoje, até mesmo no clero, alguns de seus clientes. A ciência crítica independente serenamente demonstrou, sem outra paixão além do amor à verdade, a absoluta gratuidade, senão a completa falsidade de tais e tais afirmações ainda mantidas como oficiais no ensino eclesiástico. Assim é que, sem falar nos dois volumes especiais de Monsenhor Duchesne sobre as "Igrejas separadas" e sobre os "primeiros tempos do Estado pontifício", ou da "História da Inquisição", pelo padre Vacandard, algumas Histórias gerais da Igreja, clássicas ao tempo de Leão XIII, como a de Kraus, a de Funk e Hemmer, embora guardando prudente silêncio a cerca de certos fatos ou de certos textos muitíssimo embaraçosos e repetindo, por ordem superior, certas interpretações utilitárias do Evangelho, indicam bem claramente, aqui e ali, inovações, quais, por exemplo, as ‘Falsas Decretais’ que serviram de base aos papas romanos para pouco a pouco estabelecerem a sua autocracia.

            Há, porém, um livro muito recente, intitulado Christus, obra cooperativa de alguns doutos jesuítas, que, talvez ainda melhor, dá testemunho do progresso que a ciência leiga impôs aos seus adversários, mesmo os mais qualificados. Como o fizera Monsenhor Duchesne em sua História antiga da Igreja (29), também esses senhores falseiam, confesso-o, o texto de S. Paulo aos Gálatas (30), onde S. Tiago vem mencionado, antes de Pedro, entre "as colunas da Igreja" e colocam Pedro em primeiro lugar (31). Noutras passagens, e bastante numerosas, deixam transparecer a verdade.              

            É aos grandes doutores gregos do quarto século, lê-se ali, à página 795, linha 18, que se deve recorrer para "conhecer o Cristianismo antigo", confissão explícita de que o Cristianismo da Igreja Romana data, não dos apóstolos do primeiro século, e sim do Episcopado cesariano do quarto século. E os mesmos escritores confessavam ingenuamente, algumas linhas antes, que os três grandes doutores capadocianos são "inferiores a Orígenes, pelo gênio" (página 794, linha 22) e lembram, um pouco abaixo (página 795, linha 12) que S. João Crisóstomo foi tratado de origenista. Não assinalam que Orígenes, nascido muito antes do quarto século, em 185, era muito mais conhecedor, do que os bispos de Niceia, da doutrina de Jesus Cristo, que ele recebera diretamente de um discípulo autêntico de São João Evangelista, mas ingenuamente sublinham que os quatro grandes doutores gregos designam o Cristianismo de que eram sabedores, dizendo: "a nossa filosofia". É, com efeito, uma filosofia e filosofia deles, pela qual os doutores do século IV substituíram o Cristianismo original. Ora, esses ilustres Pais do Dogmatismo Católico, confessam-no os autores de Christus, à páginas 797 e 798, eram, não tanto filósofos, como S. João e Orígenes, mas "literatos na alma", de sorte que, "talvez, também responsáveis em parte por esse não sei que de irreal e enfático, de que o púlpito sempre teve dificuldade em se libertar".

            (29) VoI. I, pág. 44.
            (30) II, 9. I
            (31) Christus, edição de 1913, pág. 730, linha 7.

            Com relação ao Cristianismo latino, as páginas 797 e 798 contêm indicações não menos sugestivas. Ai se lê: "O ideal romano era, antes de tudo, um ideal de sabedoria positiva (Mauras diz, com mais clareza, "positivista"), de disciplina enérgica e perseverante, com tendência ao formalismo jurídico." Pouco mais adiante, páginas 799 e 800, confessam os autores: "Assim é que não, há, até ao enunciado dos mais misteriosos dogmas, o que não revele a mesma tendência. Enquanto que os Gregos, para falarem da Trindade, alteravam o vocabulário filosófico, imprimindo-lhe um sentido novo, à língua do direito é que os Latinos foram buscar a palavra persona, para aplicá-la aos diferentes termos das relações divinas".

            Nesses dizeres creio que o leitor inteligente encontra fundamento bastante para deplorar que o ensino de tais mistérios faça parte da instrução que é ministrada às crianças e, também, que, diante de ouvintes mais amadurecidos, a explicação dos mesmos mistérios seja confiada a pregadores, em sua maioria, tão pouco versados na metafisica, quão incapazes inteiramente de discernir o sentido jurídico do termo persona e o sentido filosófico do termo pessoa. Não! um espírito sensato não admitirá que tais transcendências sobre a Trindade divina, com a teologia, que daí decorre, do Cristo encarnado, possam ser assunto de catecismo para todos, nem, para quem quer que seja, objeto de fé as explicações que a respeito formularam, em grego, há séculos de séculos, os Padres Capadocianos e os Concílios bizantinos. A vida de Jesus, segundo os Evangelhos, constituirá de certo leitura mais útil e prédica mais realmente cristã.

            Falando da Idade Média, os muito ortodoxos autores de Christus confessam que, no suposto triunfo alcançado pelo Catolicismo, "as declamações contra os males da Igreja e contra a decadência do clero, tanto regular, como secular, não passam de lugares comuns da "literatura" (pág. 834) e, à página 835, nota 1, citam textos de S. Bernardo mais duros do que os por mim reproduzidos há pouco. Quanto à forma religiosa daquela época tão glorificada nas Histórias Eclesiásticas, escrevem eles: "A Igreja maternal é branda para com os povos infantis e os nutre abundantemente com o leite da religião exterior (págs. 835 e 836)."

            Não mencionam, todavia, a forma um pouco menos maternal de que usavam o papa e o clero para com os "espirituais" que, como Joaquim de Fiore e os milhares de seus discípulos, reclamavam alguma coisa mais do que simples infantilidades.

            São mais explícitos os honrados jesuítas a cerca das inovações da Teologia. Lê-se, por exemplo, às págs. 836 e 837: "Mas, é de admirar-se como, de um extremo a outro daquele período, progressivamente se aperfeiçoa a excelente mistura do sensível e do espiritual, que constitui a disciplina católica. Dogma e sistema sacramentários se acentuam. O número de sete sacramentos é explicitamente reconhecido, pelo menos no século XII... assim como a eficácia ex opere operato, isto é, eficácia espiritual pelo gesto puramente material."

            Lê-se mesmo, um pouco mais longe, a págs. 841 e 842: "Santo Agostinho considera a luta pela verdade e pela santidade, antes de tudo, como questão pessoal entre a alma individual e Deus; foi desse modo que, se assim pode dizer-se, que ele "interiorizara" Deus. Mas, a humanidade do Cristo se conserva, para ele, em plano um pouco recuado. Na Idade Média, o Verbo encarnado se torna... , interior à alma, mesmo quanto à sua humanização; é o esposo da alma, atuando com ela e nela" (pág. 843). E essa confissão prossegue, à medida que a narrativa vai passando de um século a outro. Lemos, por exemplo, a págs. 931 e 932: "Certamente... o sagrado Coração é uma devoção que as multidões compreendem... sendo, no entanto, certo que essa devoção teve origem nas visões da irmã Margarida Maria", "muito diferente de Santa Teresa", confessam os bons padres, sem, contudo, citarem a passagem do "Castelo da Alma" (32), em que a grande reformadora escreve serenamente, falando das suas religiosas: "Muitas tenho conhecido, cujo espírito é tão fraco, que elas imaginam ver tudo o que pensam, estado esse muito perigoso."

            Iríamos longe demais se houvéramos de citar, do livro a que nos referimos, os numerosos lanços que comprovam as alterações feitas, de século em século e ainda nos dias atuais, no Cristianismo do Cristo e dos seus primeiros discípulos. Detenho-me nessa confissão que nos mostra a Igreja Romana, hoje como na Idade Média, maternalmente apaixonada pelos seus filhinhos e ocupada em criar novas devoções para o povo.

           (32) Quarta morada, cap. III



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