As Três Pedrinhas
No
alto do monte Kiskut, perto de Medina, na Arábia, viviam dois pastores:
Mameiik, ancião de setenta invernos bem contados, e Ahmed-Nahra, no
estouvamento dos seus belos dezoito anos.
Certa
noite, inquieto, Ahmed-Nahra bateu nervosamente à porta do velho. Cometera uma
falta e temia sofrer-lhe as consequências. Apesar de a noite ir adiantada,
achava-se Mameiik acordado, lendo, à luz vacilante de uma candeia, versículos
do Livro Sagrado do Profeta. Interrompendo a leitura, pôs-se a ouvir
Ahmed-Nahra, cujas palavras, no silêncio tumular daquela hora, estrepitavam,
muito embora o rapaz as pronunciasse quase à meia voz.
Todo
esse tempo Mameiik permaneceu calado, sem fazer um gesto. Voltando a manusear o
vetusto livro, procurou um trecho que se adaptasse à situação do jovem amigo.
Leu-o em voz alta, vagarosamente, como que pretendendo gravá-la no coração irrequieto
do traquinas.
Cabisbaixo,
Ahmed-Nahra suportou humildemente a admoestação, ouvindo as considerações de
Mameiik, que conservava ainda o dedo pousado em certo ponto do sagrado eucológio
(livro que contém rituais religiosos).
E
o velho começou a falar:
-
"Ahmed: Estás ficando um homem. É preciso que te habitues a sofrear os
impulsos desordenados da tua natureza rebelde. A ocasião é propicia para
começares vida nova, porque teu coração se encontra em sobressalto e receias a
punição severa do cádi. Sirva-te de escarmento (exemplo) o que hoje te aconteceu. Deixa em paz as tamareiras de Abid- Amam e
volta teus olhos para o Livro Sagrado do Profeta, onde está escrito o destino
de cada um
de nós."
Passando
a mão espalmada pela cabeça do jovem, Mameiik confortou-o com um sorriso cheio
de bondade. E continuou:
- "Ahmed: Não tenho filhos; todos os
membros da minha família já foram chamados por Alá. Todavia, não me encontro
só, como imaginas, porque tenho a companhia das minhas melhores recordações, e
a bênção do Profeta enche os meus últimos dias de vida. Sinto em volta de mim
os amigos que os meus olhos não podem ver, mas que o meu coração percebe.
Conheço todo o Livro sagrado e posso dizer-te tudo quanto ele contém, do começo
ao fim, de trás para diante. Entretanto, Ahmed, isto não basta. É preferível
trazer as Santas Palavras no coração - e não somente nos lábios - para que os
nossos atos e dizeres não as contrariem.
Após
breve interregno, rematou:
-
"Em vez de invadires o pomar de Abid-Amam para roubar tâmaras, vem para
cá, todas as noites. Ensinar-te-ei alguns dos mistérios do
Livro Sagrado do Profeta; aprenderás a senti-la, a interpretá-lo, a ler,
através da linguagem poética dos versículos, muitas vezes alegórica, o
pensamento profundo e sutil que Alá soprou a Maomé. E, então, se fores fiel a
esses ensinos, tua vida mudará para melhor, novos horizontes se desdobrarão
ante os teus olhos. Aprenderás a compreender a Vida e a dar às coisas da Terra
seu justo valor. Acharás as Santas Palavras do Livro Sagrado infinitamente mais
doces do que os belos frutos maduros das tamareiras de Abid-Amam..."
*
Assim
fez Ahmed-Nahra. Longas e longas noites, do verão ao inverno, do inverno ao
verão, frequentou ele a choça de Mameiik, estudando e aprendendo que as
ambições do mundo são tolas e que somente nos deixamos seduzir por elas porque
não estamos preparados espiritualmente para a vida. A lição do velho místico
fora-lhe proveitosa.
Três
anos decorreram após aquela noite agitada e Ahmed-Nahra estava completamente
modificado. Guardava bem vivas na lembrança as palavras de Mameiik:
-"Ahmed,
Ahmed, meu filho, toma tento. Todas as graças do mundo não valem um momento de
real tranquilidade. Os homens se esfalfam, brigam e se matam pelo poder, pela
riqueza, pela dominação dos outros homens. Insensatos! Vai um dia ouvir o ulemá
Abdul-ben-Abdullah e verás, Ahmed, como a vida é muito mais bela do que parece.
Mas sua beleza é tão simples que a maioria dos homens não a enxerga nem
compreende ... Vai ouvir Abdul-ben-Abdullah. Ele te dirá como alcançar a Paz
Interior. Começa por não pensar mal nem fazer mal a quem quer que seja. Mas faze o bem a todos,
indistintamente. Ser bom, além de
constituir intransferível dever, é direito que o Espírito adiantado adquire,
pois a bondade é índice seguro de elevação espiritual. Trabalha por, ti,
ajudando os teus semelhantes, É fazendo pelos outros que nos ajudamos melhor. O
primeiro passo para o bem é não fazer o mal. O segundo, é fazer e pensar sempre
o bem."
Quando
o ex apreciador das tâmaras de Abid-Amam decidiu visitar a cidade de Meca, para
realizar o seu "abdest" (purificação legal) e ouvir o sábio
Abdul-ben-Abdullah, amigo de Mameiik, este lhe ofertou um alquicé (pequena capa) e uma sacola, dizendo conter três pedras pequeninas.
As lágrimas visitavam os olhos do rapaz, na hora da despedida. Então, Mameiik
lhe disse, docemente:
-"Toma,
Ahmed-Nahra, estas pedrinhas, Leva-as contigo onde quer que vás, para que te
não esqueças de teus deveres."
Ahmed
abriu o saquinho e segurou a pedra maior. Advertiu-lhe o velho:
-"Essa
pedra significa que a ingratidão do
mundo é a mais comum das recompensas que podemos esperar do bem que fizermos.
Isto quer dizer que não se deve fazer o bem senão por amor ao bem, ainda que
nos façam mal; nunca, porém, para recebermos qualquer paga ou agradecimento."
Ahmed
enfiou de novo a mão na sacola e dela retirou outra pedra, um pouco menor que a
anterior.
-"Sábio
Mameiik, e esta?"
Mameiik
olhou demoradamente para o jovem e tornou:
-"Esta
é a segunda pedrinha. Não é grande nem pequena demais. Quer dizer que deves sempre vigiar as tuas ações e
controlar os teus pensamentos, evitando, excessos e deficiências. Ela representa
o meio-termo. A verdadeira virtude está no equilíbrio. Foge dos elogios fáceis
e abundantes, como das censuras e acusações levianas. Sê sóbrio, discreto,
paciente, tolerante, Ahmed-Nahra ; sê
justo."
Ahmed,
então, rebolcou a sacola pela última vez, procurando a derradeira pedrinha, que
deveria ser a menor das três. Não a encontrando, olhou, surpreso, para Mameiik,
que lhe prestou o esclarecimento final:
-"Ahmed-Nahra,
filho meu: A pedrinha que não encontras representa o que fizeste de bom até
agora, em favor dos teus semelhantes... Não a vês, é certo, porque ela ainda é
imaginária. Não importa, porém. Trabalha com o pensamento em Alá; faze o bem, de preferência a quem te fizer
mal; serve ao teu próximo, com boa vontade e sincera alegria no coração, e,
um dia, quando procurares de novo a pedrinha dentro da sacola, encontra-la-ás,
porque ela crescerá simultaneamente com o teu progresso moral."
Cinquenta
anos depois, Ahmed-Nahra voltou ao alto do monte Kiskut, onde vivera com
Mameiik.
A
cabeça branca era como que uma auréola de prata fulgurante. Trazia ele ainda,
com acendrado carinho, a sacola com as duas pedrinhas que o velho amigo lhe
dera. A terceira ele a encontrara, depois de anos de intensa labuta. Seu nome
se fizera conhecido da Arábia inteira e era pronunciado com respeito geral.
Dizem
as crônicas daquele tempo que Ahmed-Nahra não pode trazer consigo a terceira
pedra porque ela crescera tanto, tanto, que, então, já pesava algumas
toneladas...
por José Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Outubro 1947
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