sábado, 1 de dezembro de 2012

11. "À Luz da Razão" por Fran Muniz



11
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


O JEJUM


            Antigamente, dizem-nos as Escrituras, a barbárie e a ignorância dos povos, arrastavam-nos à prática de atrocidades, persuadidos de que eles seriam agradáveis a Deus e nessa convicção imolavam animais, carbonizavam ou decepavam os próprios braços ou pernas, sacrificavam os filhos e até se deixavam devorar pelo fogo. Daí, também o sacrifício do jejum de alimentos, adotado em honra e louvor ao Senhor e que Jesus encontrou em uso nas seitas judaicas.

            Essa frivolidade passou a pertencer, exclusivamente, à igreja que a conserva nos seus arcanos, desde que Telesforo, bispo de Roma, plagiando-a das crenças antigas, a instituiu no ano 130, fazendo dela um preceito que impôs aos católicos como possante auxiliar na aquisição das graças do Céu.

            Cristo, se não proibiu diretamente esse hábito inveterado, foi, sem dúvida, porque tal costume não acarretava outro prejuízo senão as agruras da fome; e isto era já uma punição imediata à ignorância reinante. Além disso, o jejum era, então, uma forma de adoração ao Criador e, Jesus o proibindo daria causa a certa desconfiança sobre a eficácia dos demais preceitos verdadeiros, pelo que teria de lhes dar uma explicação aprofundada que eles, absolutamente, não compreenderiam naquela época.

            Não obstante, o Nazareno nunca o pregou positivamente e, se algumas vezes se referiu a ele, foi sempre dando um sentido diferente do que era compreendido.

            Temos a prova disso. Quando ele busca nesse preceito um ensejo para repelir a hipocrisia e o orgulho, demonstrando que tudo quanto se faz com ostentação, perde o mérito e a utilidade. Por isso, recomendou aos seus apóstolos não imitarem os hipócritas que simulavam tristeza para mostrar aos homens que jejuavam; mas, ao contrário, asseassem a cabeça e o rosto a fim de ser aquela ação voluntária conhecida somente por Deus que vê tudo quanto se passa em segredo.

            Esse conselho figurado evidencia que quando praticarmos um ato que nos pareça bom, não o devemos fazer com ostentação, chamando a atenção para ele.

            Tal modo de proceder está confirmado ainda nesta indicação referente á caridade: “Que a tua mão esquerda não saiba o que dá a direita.”

            Lembramos que jejum significa privação, abstenção, de qualquer coisa. Por conseguinte, existe jejum de passeio, de teatro, de jogo, de bebidas e de tudo quanto possa o individuo privar-se. Esta recordação se torna mister para que não seja considerado jejum somente a privação de alimentos como é entendido e ensinado pela igreja.

            O jejum de alimentos é um atentado à Lei da nutrição; infringi-la é depauperar o nosso sistema orgânico, sem outra coisa explicar senão um sacrifício inútil e expressamente proibido pelo Mestre, nestas palavras:

            “Misericórdia quero e não o sacrifício”

            Outro esdrúxulo preceito é o da substituição da carne pelo peixe em determinados dias da quaresma católica, cujo infrator incorre em gravíssimo pecado se não se premunir com uma pequena bula, indulgência essa concedida com muito sigilo e a preço módico.

            De sorte que o fim não é evitar ofensas a Deus, mas, tão somente rechear a bolsa da religião.

            No entanto, esse absurdo está denunciado pelo Mestre nesta frase:

            “Não é o que entra pela boca que faz imundo o homem. mas o que sai da boca é que o faz imundo.”

            Se este ensinamento for mostrado à igreja, veremos que ela descobre logo nele uma legalidade para receber o dinheiro da “bula” A igreja, tratando de interesses, é bem inteligente...

            Mas, retomemos ao jejum. Este preceito tomado segundo a letra, perde toda a importância, ao depararmos com a resposta de Jesus, quando os fariseus lhe perguntaram porque eles e os discípulos de João jejuavam e os apóstolos não faziam o mesmo:

            “Porventura, podem jejuar os filhos do Esposo, enquanto está com eles o Esposo? Mas, lá virão dias em que lhes será tirado o Esposo e, então, eles jejuarão.”


            Faremos notar que esse cognome de “Esposo” era, antigamente, dado ao jovem que contratava união com uma mulher hebraica para constituir família e, por isso, Jesus se apelidava de Esposo porque sua missão era também organizar a família cristã, protegendo-a e governando-a.

            Portanto, com aquela resposta se esclarece que os apóstolos, vivendo sob a proteção de Jesus, tornavam-se seus filhos e, por isso, não tinham necessidade de jejuar, isto é, de se absterem dos vícios e dos excessos para expiar faltas que eles não possuíam, porque o Esposo os protegia dos erros com os seus ensinamentos e exemplos.

            Mas, afirmou que eles jejuariam, isto é, teriam de passar por privações, logo que o Esposo os deixasse, porque, então, cairiam em erros e, a seguir, ficariam sujeitos às privações para repará-los.

            De outra feita, Jesus respondendo à arguição dos Apóstolos:.

            “Porque não pudemos curar o lunático e tu o pudeste?” - disse. para demonstrar os prodígios da fé:

            “Esta casta de demônios não se lança fora senão a força de oração e jejum.”

            Não se suponha, porém, que demônios sejam entidades com rabo, chifres e pés de bode; são espíritos perversos que animaram, na Terra, os corpos de criaturas criminosas e malévolas e que depois da morte do corpo levam consigo o mesmo instinto e assim, na erraticidade, procuram continuar os seus desejos malvados, agindo sobre as pessoas fracas que se deixam dominar por falta do jejum, isto é, por se não privarem dos apetites materiais supérfluos, dos maus pensamentos e dos vícios inveterados.

            Para cura-los, ou seja, para afastar esses espíritos rebeldes, é necessária a força da oração; mas a oração, não é o que se lê num livro aberto, em doses determinadas pela quantidade de padre-nossos e avemarias, nem a repetição de palavras harmoniosas e sonoras, saídas dos lábios, sem terem passado pelo coração. A oração é um conjunto da fé viva com o pensamento puro, imbuído no amor, na caridade e nas boas obras; nestas condições a oração atravessa o infinito, qual o éter, e vai direta aos pés de Deus que sabe discerni-la e valoriza-la . Eis a prece!

            Há, portanto, falta de consciência, nos ministros de Deus que, tomando tão ao pé da letra a significação do jejum, impõe semelhante desumanidade a quem só devia receber deles, caridade e conforto!

            Basta-lhes o sacrifício de ter de dividir com a igreja o pão obtido com o trabalho penoso e fatigante.

            Protestemos com veemência, contra esse absurdo imposto à credulidade alheia!

            Independente da fonte iluminativa do Evangelho, apele-se ainda para a consciência que nos dirá se é aceitável o jejum de alimentos como expressão de louvor a Deus.

            Certamente, não é possível a uma criatura se preocupar inteiramente com o Senhor, dirigindo-lhe o pensamento e dedicando-lhe a prece sincera do coração, no momento em que sente a torture da fome.

            Ainda mesmo reagindo contra a natureza, empregando toda a boa vontade e procurando até fruir o máximo prazer com semelhante sacrifício, é claro que a nossa atenção e o nosso pensamento são, forçosamente atraídos para esse ponto que nos reclama socorro.

            Assim sendo, não é intuitivo que, embora independente da nossa vontade, a intenção deixa de preencher o fim exclusivo para o qual está voltada?

            Ao passo que se estivermos com o corpo devidamente nutrido e asseado, de modo a nenhuma preocupação desviar o nosso pensamento,  poderemos, de melhor forma, nos dedicar ao Criador.

            Isto é tão lógico como ineficaz é o “jejum católico” para o agrado de Deus.

            Esse preceito, diz a igreja, ser também uma disposição preliminar e preponderante para os sacramentos da comunhão e da missa, a fim de que os comungantes e os padres possam tomar Deus ou Cristo, isto é, a hóstia; porque, dizem, essa refeição do alimento celestial, não deve ser precedida da alimentação material comum e grosseira.

            A nulidade de tal precaução já foi externada em capítulo precedente; pede-se tão somente agora que nos respondam com sinceridade: Os que se submetem a esse preceito esfaimado, leva-lo-ão a cabo incondicionalmente? Aquele que impõe a outrem tal sacrifício, cumpri-lo-á também de modo completo e absoluto?

            Não é provável: pelo menos existem sobejas provas do contrario, pois estamos observando todos os dias excessivos exemplos daqueles que pregam aquilo que absolutamente não cumprem. Confirma essa desfaçatez a costumeira advertência com que zombam dos incautos: “Faças o que eu digo, mas não faças o que eu faço”.

            São a esses que o Mestre na sua presciência se referiu, dizendo:

            “Observei-os, porém, não obreis segundo a prática das suas ações: porque dizem e não fazem; eles põem pesadas e incomportáveis cargas sobre os ombros dos homens. mas nem com os seus dedos a querem mover.”

            Não nos iludamos! O jejum, a que Jesus sempre se referiu, consiste na abstenção de pensamentos criminosos, na modéstia da satisfação das nossas necessidades materiais, na sobriedade dos nossos costumes, na regularidade dos nossos atos e na prudência de nossa conduta.

            Nesta elevada e justa acepção é que podemos compreender o jejum e, jamais, como no-lo apresenta a igreja, emprestando-lhe um sentido fútil e irrisório.





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