domingo, 2 de dezembro de 2012

12. "À Luz da Razão" por Fran Muniz




12
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


A PROCISSÃO

            O catolicismo incorporou aos seus dogmas - a procissão - emprestando-lhe a grande, a extraordinária virtude de aplacar a ira do Senhor.

            Pensemos, porém, sobre isso com serenidade e logo se há de concluir pelo absurdo de mais esta pratica.

            A procissão. chamada de rogação foi instituída pelo Bispo de Viena do Delfinado no ano de 470, ao tempo em que grandes calamidades assolavam a sua diocese, reaparecendo mais tarde, no ano 590 – “quando Deus flagelava Roma com horrorosa peste, cujas pessoas atacadas por ela morriam espirrando; daí a tradicional saudação de Dominus tecum. (1)

             (1) Goffiné- Manual do Cristão, página 496.

            A nosso ver são as duas únicas coisas aproveitáveis da procissão, para muita gente: Uma é se ficar sabendo que o Deus católico já matou muitos romanos de peste e outra é conhecer a razão porque se diz ao vizinho: - dominus tecum!.. se é que espirra.

            Com os devidos agradecimentos ao Bispo do Delfinado.

            Diz a igreja ser a utilidade da procissão:

            1º - “A profissão pública da nossa fé;
           
            2º - Uma atração, em maior escala, das graças de Deus, concluindo-se que, se a oração de um só justo é tão poderosa, que não será a eficácia duma freguesia inteira, quando se sabe que Jesus Cristo Nosso Senhor está presente aos que oram unidos dois ou três?

            3º - É o meio mais próprio de remontarmos o nosso espírito a Deus e o mais capaz de inspirar-nos o firme propósito de sermos dignos membros da Igreja Católica. (2)

            (2) Obra Cit. pág. 197.

            Comentemos: Em primeiro lugar, Jesus tendo nos ensinado inúmeros meios para conseguirmos a salvação, nunca nos falou em procissões, pelo menos não é isso encontrado no Evangelho, nem pode deixar de assim ser, visto ter sido a procissão uma extravagância criada por conta própria da igreja, 470 anos depois de Cristo.

            Essa procissão foi iniciada com o propósito de combater a peste com que Deus flagelava Roma.

            Não sabemos se o mal foi debelado por esse processo mas, em compensação, vemos mais uma clamorosa heresia atirada ao Criador, considerado como bárbaro, por um povo ignorante.              

            Isso, porém, já não admira porque a igreja na Permissão do Juramento, diz: “Ele é uma obrigação entre todas a mais grave, porque toma-se o próprio Deus por testemunha, juiz e vingador.” (2)

            (2) Obra Cit. pág. 197.

            Esse hábito, aliás. é muito banal no Catolicismo. Para ele Deus é um títere que obedece aos caprichos de seus ministros.

            A procissão tem ainda por escopo. “demonstrar a nossa fé e a eficácia da oração. quando realizada por uma freguesia inteira.”

            E aqui, outra vez, se espezinha o preceito evangélico que não haverá demasia em repetir:

            “Quando orares não sejas como os hipócritas que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos dos homens, mas entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai em secreto, etc.”

             Portanto,. a clareza destas palavras não deixa a menor duvida de que Jesus proibia as orações espalhafatosas e em publico, certo de que, elas assim seriam inúteis.

            A igreja, porém, supõe salvar a situação acenando com esta outra afirmativa do Nazareno:

            “Quando estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu aí estarei também.”

            Estudemos, pois, essa condição com sincera imparcialidade:

            Deve-se entender uma reunião em nome de Jesus quando ela forma uma cadeia compacta, constituída de um só pensamento, uma só vontade; quando os seus componentes se acham animados pelo verdadeiro sentimento de amor a Deus e ao próximo; animados pelo mesmo sentimento de caridade e finalmente com a humildade e mais possíveis virtudes ensinadas pelo Cristo para que a sua presença se possa realizar.

            Ora, será isso o que se encontra entre uma Freguesia que constitui a procissão?

            Precisamente não, porque vemos aí, incrédulos, indiferentes e até indignos; vemos discussões e controvérsias; vemos risos e chacotas; vemos idílios amorosos e vemos, não raras vezes, até conflitos e ferimentos, na prevenção dos quais, as procissões, geralmente, são guardadas por soldados de policia.

            Assim, pois, uma procissão não é nem pode ser uma reunião em nome de Jesus e, portanto, ele aí não poderá estar presente.

            Outro prestígio da procissão é o de ser o meio mais próprio para remontarmos o nosso espírito a Deus.

            Isto de modo algum pode ser exato, pois sabemos pelas próprias palavras de Jesus, que, para tanto conseguir é mister sacrifício maior de nossa parte, que assistamos e curemos os enfermos; que não demos satisfação excessiva à matéria, abandonando-nos aos gozos e vícios; que, com os necessitados se divida os nossos haveres; que, enfim, sacrifiquemos os interesses mais caros em favor do nosso próximo. Eis no que consiste, segundo as divinas palavras, o meio de ascendermos até Deus.

            Uma verdade, aliás, resulta da procissão, como a igreja assevera: É ser ela o meio mais capaz de inspirar aos seus adeptos o firme propósito de serem dignos membros da igreja católica.

            Lá isto é!

            Realmente. Haverá quem se recuse a elevar-se a Deus por meio de uma excursão agradável, de um divertimento onde a gente expõe toaletes vistosas, ornados de fitas e flores, cada qual se esforçando  pare conseguir um lugarzinho ao lado do santo ou do padre?

            Com tal condição tão simples, tão vulgar, quem não desejará ser católico?

            Há, todavia, uma classe que não o deseja: é a dos que só vêm nessas futilidades uma ofensa ao Criador.

            Reflitamos ainda sobre a ostentação das procissões e sejamos coerentes:

            Essas procissões de rogações eram realizadas antigamente por ocasião das epidemias, secas, cataclismos e outras calamidades, e tinham por objetivo implorar a Deus a graça de aplacar aqueles flagelos.

            Sabendo-se, entretanto, hoje, que tais fenômenos são resultantes das leis da natureza, contra os quais os homens se devem precaver, quanto seja possível, por meio da ciência e do trabalho, não será um absurdo supor que Deus deva derrogar as suas leis para satisfazer a um certo numero de indolentes e inimigos da instrução?

            Objetar-se-á: Visto serem estas leis que produzem os flagelos, não se deve reprovar a igreja na acusação que faz a Deus uma vez que por sua vontade é que isso se realiza.

            A resposta é facílima: Conhecemos nós, por ventura, todas as leis que regem o universo? Podemos nos furtar à suposição de que esses flagelos sejam para atenuar outros ainda maiores?

            E ainda seremos, dentro da boa lógica, levados a admitir que isso se produza em beneficio da própria Terra ou talvez em proveito da vida nos outros planetas.

            Pois o que é que representará, em relação aos inumeráveis mundos espalhados pelo infinito, o cataclismo que, em nosso meio, devaste uma cidade ou um país, fazendo milhares de vítimas?
           
            Que sabemos nós?

            Demais, tudo que dimana das leis divinas é sempre bom; o fato de não atinarmos com a razão de ser de um fenômeno não nos autoriza a exigir que Deus nos dê conta dos seus desígnios.

            Assim, em vez de acusar Deus, devemos lhe dar graças pela sabedoria das suas leis!

            Portanto, pedir ao Criador que modifique os seus objetivos, é absurdo grosseiro e irrisório, que atenta contra a sua infinita sabedoria.

            É verdade haver quem acredite que Josué mandou parar o sol e foi obedecido...

            As procissões, em suma, não passam de festividades e ajuntamentos, formalmente proibidos por inspiração dos espíritos emissários do Senhor.

            Leia-se o Antigo Testamento:

            “Quem requereu de vós estas coisas? incensos, festividades, ajuntamentos, que para mim são indignos? A minha alma aborrece as vossas calendas. As vossas solenidades se me tem feito molestas”. (1)

            (1) Provérbios, cap. IX, v. 10.

            Não há nada mais claro. Mas a igreja na sua pretensa sabedoria passou por cima deste e de todos os textos que lhe não convinham para a realização dos seus intentos.

            O que merece, porém, mais aprofundada observação são as célebres procissões do Corpo de Deus ou do Enterro.

            Essas são um positivo rebaixamento e o maior ultraje, imposto ao Divino Mártir do Gólgota.

            Do mesmo modo que os carnavalescos comemoram o deus Momo, o deus da orgia e do deboche, com procissões vistosas. fantasias alegóricas, figuras ridículas e grotescas assim entendeu a igreja, que Cristo, isto é, o seu Deus, também tem o mesmo direito e merece idênticas manifestações figuradas em procissões retumbantes e fantasmagóricas,  posto que menos concorridas e muito mais baratas que 05 préstitos de carnaval.

            Na procissão, a alegoria principal é a figura representando Cristo que é submetido a uma longa exposição num templo que lhe serve de câmara ardente e, durante a qual, permanece ao lado, uma bandeja para receptáculo de dinheiro oferecido pelos fiéis.

            Se o Cristo chegasse a ser sepultado, era de supor que esse dinheiro obtido com a sua morte servisse para as despesas do sarcófago. Assim não sabemos se esses donativos ficam para a igreja ou se serão destinados às filhas de Maria, que são os herdeiros mais próximos do morto.

            Finalmente, à hora convencionada, o suposto Deus é retirado para o também figurado enterramento. É' então conduzido numa padiola, mais ou menos ornamentada, ai que chamam andor, sobre o qual é Deus deitado e coberto com panos, mais ou menos rendados e bordados, segundo as circunstâncias financeiras da igreja.

            Segue-se, então, o acompanhamento, de acordo com a determinação do padre encarregado da direção.

            Há, aí, cânticos, orações. Dei gratias, Anjos cantores, ignorâncias, atraso espiritual e até mesmo o perdão para tais ofensas tão ingratamente assacadas ao Criador; porque Jesus, na sua inigualável bondade, mais uma vez mostrará a magnanimidade do seu coração, repetindo: “Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem.”

            Há tanta semelhança entre os préstitos de Momo e as procissões religiosas, que só não se confundem de uma vez por faltar nestas os Zé Pereiras e o tintilar dos guizos que superabundam nas outras e mais a diferença de que naquelas campeiam as gargalhadas dos prazeres debochados e a loucura incontida da orgia desenfreada e nestas impera a demonstração fingida de certo cunho de tristeza adequada ao ato.

            Nas de Momo, faz-se a exposição de mulheres seminuas sobre palanques e tronos ornados de falsas pedrarias e nestas vemos a exposição do próprio Deus, representado numa figura grotesca sobre indecente padiola, ornada igualmente de bugigangas; naquelas finalmente se vê a glorificação do deus dos lupanares e nestas o frisante desrespeito ao boníssimo Jesus, em má hora aclamado Deus do Catolicismo.

            Mas a igreja não reflete, nem convém refletir nessas iniquidades porque seria decretar a falência do seu negocio e resolve que Deus deve ser comparado às banalidades terrestres e adorado pelo mesmo processo com as mesmas aparências, com que é adorado o deus da bacanal.

            Que desgraça para um povo que tanto rebaixa o seu Criador!

            Infelizmente o Catolicismo permanecerá ainda, por algum tempo, envolto nas densas brumas do erro a dominar um grande número de criaturas que, desconhecendo por completo o caminho da verdade, julgam encontrar nele a felicidade e a salvação.

            O tempo, porém, é um mestre incansável e há de raiar a época em que toda a humanidade despertará do narcótico a que está ainda submetida e sacudirá para sempre o jugo da inconsciência dos homens, para se consagrar inteiramente a Deus.

            Até lá, porém, procuremos nos convencer de que Ele está tão alto e tão longe que errônea há de ser toda a compreensão que fizermos a seu respeito. Nessas divagações bem nos parecemos com os astrólogos que fazem da Lua, de Marte ou do Sol uns mundos que cabem inteirinhos nas lunetas dos seus telescópios.

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