quinta-feira, 13 de setembro de 2012

58. "Doutrina e Prática do Espiritismo"





58

             
            VIII - o despertar na outra vida. Utilização das experiências terrestres. Percepções, sensações e sofrimentos dos espíritos. Código penal da vida futura. Inferno, purgatório e paraíso. Liberdade de ação e translação. Diferentes ordens de espíritos. Solidariedade entre o mundo invisível e o visível. Ação dos espíritos sobre os pensamentos e os atos humanos; sobre os fenômenos da natureza. Explicação de certos fatos do Evangelho.


            Há entre o duplo fenômeno, da encarnação e desencarnação, um certo cunho de similitude, que convém acentuar, como ponto de partida à indagação que nos propomos conduzir às peculiaridades da existência extraterrestre; e vem a ser que uma é precedida e a outra seguida de uma fase, por assim dizer, letárgica , durante a qual o espírito sofre uma perturbação, cujo prazo varia conforme o seu estado de discernimento e de progresso.

            É assim que, ao mergulhar na carne, em consequência do processo de adaptação a que aludimos precedentemente, vai o espírito perdendo gradualmente a consciência, até que, com o despertar para a vida objetiva e exterior, munido do seu novo invólucro, entra a fazer o aprendizado de utilização dos órgãos de que terá indispensavelmente que servir-se, como veículo de correspondência com o meio a que acaba de ser novamente conduzido.

            Terminada a peregrinação terrestre, restituído ao seu habitat normal, recomeça para o espírito, até que se tenha familiarizado com as suas novas condições, um aprendizado semelhante, que será tanto mais longo quão mais profunda tenha sido a sua identificação com a matéria e as suas ilusões. É por isso que aqueles que viveram exclusivamente para as coisas do mundo, sem cogitar da vida espiritual, ou dela tendo uma concepção errônea, permanecem por um largo prazo no estado de perturbação, de que só lentamente conseguem libertar-se, à medida que, solicitados pelas esplendidas, posto que mal entrevistas, realidades do plano superior, se vão pouco a pouco dissipando as névoas da cegueira em que a excessiva materialidade ou a indiferença pelas coisas do espírito os mergulhara.

            Mesmo pana os que souberam neste mundo viver dignamente, a simples transição para as regiões etéreas, com a definitiva ruptura de todos os laços de servidão carnal, produz, sem embargo duma primeira visão deslumbradora, ao desprender-se, como nos casos que citamos no final do anterior capitulo, uma espécie de atordoamento, semelhante ao do indivíduo que, retido anos a fio em tenebroso cárcere e privado assim de todo movimento, fosse restituído à liberdade e submetido a um regime de ativos exercícios, cujo hábito perdera.

            Tal é, com efeito, ao renascer na verdadeira pátria, a situação de um grande número de espíritos, daqueles por exemplo que, não levando sobrecarregada a consciência de remorsos, podendo ao contrário ter tido uma existência laboriosa e obscura, isenta porém de atos reprováveis, estão aptos a se iniciar, entre surpresos e indecisos, nos misteres do seu novo e magnífico viver.

            Em que irão, daí em diante, consistir as suas ocupações?

            Façamos antes de tudo um paralelo. Considerando quão diferente da vida na Terra, com as suas implacáveis exigências relativas às necessidades e à conservação do corpo, deve ser a existência dos espíritos no espaço, pode-se perguntar qual terá sido para estes a utilidade das múltiplas diligências e cuidados neste mundo, repartidos por mil objetos triviais que ali não devem ter equivalentes, como por exemplo a confecção dos alimentos e dos vestuários, os arranjos caseiros, mesmo as profissões vulgares de que tira o homem a subsistência, tudo, numa palavra, em que consiste a exclusiva preocupação de quase todos e que, referindo-se unicamente às peculiaridades do meio terrestre, de nenhuma utilidade parece dever ser à aplicação das faculdades do espírito na região superior em que se encontra. Não terá sido um tempo perdido o empregado em semelhantes exercícios, desde os que faz a criança para aprender a falar, a ler, a escrever, até as complicadas operações que com tão obstinado esforço empreende o homem, já não diremos nas artes e ciências, sempre eficazes como cultura do espírito, mas no comércio e nas ocupações materiais, tendo em vista interesses e resultados passageiros? Apurada a soma de todas essas atividades e considerado o seu objeto, qual terá sido o benefício daí resultante para o espírito? – Parecerá que nenhum, se atendermos a que as necessidades, que a tantos labores e fadigas dão lugar, desapareceram com a transferência do espírito ao outro plano, e que, portanto, cessado o objeto, dir-se-á que com ele cessou o aproveitamento das aptidões a sua obtenção encaminhadas.

            Assim não é, contudo. E, sem perdermos de vista que não há deveres, por vulgares ou mínimos que sejam, de cujo cumprimento não resulte sempre um beneficio moral para o individuo, podemos com o Dr. Gustave Geley, e mediante uma fórmula de admirável justeza com que procurou ele definir a alternativa da existência do espírito, ora na terra, ora no espaço, apreender a íntima conexão e o providente emprego das faculdades e aptidões do espírito, exercitadas analiticamente num e utilizadas sinteticamente no outro plano.

            Em seu ENSAIO DE REVISTA GERAL E DE INTERPRETAÇÃO SYNTHETICA DO ESPIRITISMO', escreveu ele: "a encarnação é um processo de análise; a desencarnação é um processo de síntese."

            Encarnando, com efeito, começa o espírito por se associar a um corpo com seus órgãos diferenciados, cada um dos quais exige um desenvolvimento especial e só lhe fornece isoladas noções das coisas com que entra em relação. Mediante esses órgãos, de que o cérebro é o aparelho centralizador, faz o espírito o aprendizado minucioso e analítico das coisas deste mundo, não sendo os trabalhos que executa e as experiências que adquire, dos mais importantes aos vulgares, mais que pretextos de adestramento para as faculdades de que é dotado. Assim, de todas as ocupações a que se entrega, por trivial ou elevado que em si mesmo seja o seu objeto, o que o espírito recolhe e fixa, em forma de aptidão ulteriormente utilizável, é o exercício metódico da atenção, a disciplina do esforço, do pensamento e -da vontade, o hábito do trabalho, que a necessidade estimula e aguilhoa, de tal sorte que, se na vida livre do espaço é abandonado o objeto das ocupações terrestres, em tudo o que têm de contingente e, mesmo, subalterno, a educação das faculdades, a que deu lugar, é utilizada na. aplicação de sua atividade a misteres mais nobres e fecundos, mas que, sem esse prévio adestramento, não poderiam ser convenientemente executados.

            Desencarnando, não somente se integra o espírito no sentido único, ou psíquico, mediante o qual as suas percepções e sensações já se não acham localizadas, circunscritas, como no corpo físico, senão que se operam, segundo o expressivo, posto que figurado, dizer de Allan Kardec, "por todos os poros do seu organismo fluídico", mas entra na posse completa de sua consciência individual, em que os conhecimentos, aptidões e experiências adquiridas através de suas anteriores peregrinações se fundem com as da encarnação que acaba de deixar.

            Dá-se então, de um modo definitivo e com uma extensão muito maior, o que as experiências de magnetismo tantas vezes têm posto em evidencia, isto é: enquanto nestas, o espírito do sensitivo exteriorizado patenteia, de par com uma acuidade anormal de percepções, uma amplitude de conhecimentos que, em geral, não revela possuir no estado de vigília, e que não são mais que as reservas latentes de suas aquisições em precedentes vidas, no estado de desencarnado, despedaçada a túnica obscurecedora da matéria, o cunho intermitente de tais manifestações desaparece e o vasto panorama das existências percorridas, com as múltiplas experiências em toda a série elaboradas, se apresenta numa verdadeira síntese à consciência unificada do espirito.

            Ele já não é a personalidade A, B ou C, homem ou mulher, que revestira em cada uma dessas anteriores jornadas planetárias, mas a soma ou fusão de tais personalidades no ego superior que o individualiza.

            A integração do espírito nessa plenitude de consciência - assinalemos desde logo - não se opera, contudo, a julgar pelas observações colhidas na experimentação espírita, logo após a desencarnação, a não ser que se trate de seres consideravelmente evoluídos, ou de iniciados com proveito nas transcendentes verdades espirituais. Para os espíritos vulgares e, sobretudo, para os inferiores, que da Terra se despedem levando consigo o estigma dos vícios, torpezas e até perversidades em que aqui se chafurdaram, os primeiros tempos de erraticidade - bem longos muitas vezes - se caracterizam por tormentosas angústias, e no meio das trevas em que se debatem, a lembrança dos erros, senão dos crimes recentemente perpetrados, é demasiado intensa e absorvente para lhes consentir a dilatação evocativa da consciência individual pelo passado a dentro.

            É preciso, ao demais, que as dolorosas reações provocadas pelos desacertos da existência proximamente abandonada, frutifiquem na consciência do culpado, em forma de remorsos e arrependimento, antes que possa ele auxiliado pelos espíritos prepostos a sua vigilância e direção, instruir-se no proveitoso conhecimento de suas peregrinações anteriores, afim de aí colher mais completas lições para o futuro.

            Enquanto as experiências resultantes de sua última encarnação não tenham produzido tais efeitos, a atenção do espírito se acha nelas inteiramente concentrada permanecendo, portanto, em estado latente, ou de torpor, a reminiscência de suas anteriores personalidades. É o que explica que tantos espíritos, sobretudo os de categoria inferior, se mostrem singularmente ignorantes da lei das vidas múltiplas, não sendo raros os que, em virtude do excessivo apego às coisas materiais ou da indiferença em que viveram, relativamente ao seu futuro espiritual, se conservam, muitos anos após a desencarnação, na crença de ainda pertencerem a este mundo.

            A primeira vista parecerá dificilmente explicável esse fenômeno. Como é que, devendo a morte produzir, e de fato produzindo, a definitiva separação entre o corpo e o espírito, em lugar de se integrar este imediatamente em sua consciência individual que, como há pouco o assinalamos, abrange não somente o período fracionário de sua última existência, mas a totalidade das que a precederam, permanece estacionária na ilusão da vida a que já não pertence?

            É esse, entretanto, um fato registrado em inúmeras experimentações espiritas, não podendo como tal ser, portanto, contestado. Quanto a sua explicação, deve naturalmente relacionar-se com o fenômeno de letargia que, semelhante ao que precede à encarnação, sucede à morte, podendo se dilatar por um largo prazo. Mergulhados nesse torpor e, pela sua condição de desencarnados, libertos até certo ponto da lei do tempo, já não contando os dias e as noites, assim pela repetição dos hábitos e ocupações terrestres, como principalmente pela alternação da vigília e do repouso, a situação de treva em que tais espíritos se encontram (1) determina em sua atividade mental uma sorte de paralisia, de que mais tarde ou mais cedo serão, todavia, libertados pela intervenção de novos fatores que os atraiam à realidade, como ação de outros espíritos, o próprio turbilhão de vida que em redor lhes flui, provocando os estímulos da curiosidade natural, etc.

            (1) Lembraremos que nas observações da psicologia experimental, como as empreendidas pelo coronel de Rochas e, particularmente, nos casos de regressão da memória a anteriores existências, os sensitivos acusavam os intervalos entre uma e outra como períodos de permanência no escuro, dando lugar esse estado - quem sabe? - à ilusão de um sono.

            Entre os numerosos casos que, em testemunho da letargia ou turbação de que falamos, poderiam ser invocados, mencionaremos, a título documental, apenas o seguinte, em que o espírito comunicante, sem ter sido na Terra um indivíduo de maus hábitos e sentimentos, mas ao contrario uma figura ornamental da alta sociedade, em que era apreciado por seus predicados de distinção, permaneceu dezenove anos na erraticidade, em situação de treva e ignorância dos próprios sucessos que no seio de sua família ocorreram após a sua desencarnação, sendo essa espécie de punição a consequência do orgulho que, embora o não manifestasse ostensivamente, constituía, entretanto, o substratum de suas imperfeições ocultas, como de resto - não será ocioso advertir - sucede a tanta gente.

            O fato passou-se em 1907, a 22 de março, aniversário de sua desencarnação, ocorrida em 1888, e assim nos foi narrado por sua viúva, a baronesa de S., cujo nome velamos sob essa inicial, por um motivo de discrição, facilmente compreensível, imposta pela natureza íntima das revelações a que se prende.

            Achava-se a baronesa em sua estância, em companhia de uma moça que a auxiliava em trabalhos de costura e que, possuindo a mediunidade sonambúlica, ou de incorporação, mais de uma vez, no decurso dos dois anos anteriores, caía espontaneamente em transe, por ela se manifestando espíritos familiares. A circunstância de ser aquele dia aniversário da desencarnação do marido sugeriu à baronesa a ideia de fazer uma prece em sua intenção. Enquanto a formulava, cai o médium em sonambulismo e começa dizendo, sob a influência do espírito: "Há 19 anos fechei os olhos nesta casa e somente agora te posso falar. "

            Declara em seguida o espírito achar-se envolto em trevas e queixa-se de que, apesar de ouvir e sentir a presença de sua velha companheira, não a podia ver.

            Convidado a orar e exortado a ter confiança na misericórdia divina, à medida que a baronesa orava, o médium foi pouco a pouco abrindo os olhos, até que, ao terminar da prece, os tinha completamente abertos.

            Nesse começo de lucidez entrou a descrever as suas impressões, declarando ver espíritos de parentes, cujos nomes ía mencionando, entre os quais o de uma filha, que estranhou lhe aparecesse com uma criança nos braços.

            Explicou-lhe então a baronesa (o que ele ignorava) que essa filha se havia casado em 1897 e desencarnara, em consequência de um parto, no ano seguinte, sendo sepultada ao mesmo tempo que a filhinha.

            Começou ele em seguida a reparar em torno, muito admirado, e, como a sua interlocutora lhe dirigisse de novo a palavra, a interrompeu: "Espera, deixa-me primeiro orientar-me." E logo interrogou: "Porque deixaste o nosso quarto?" - Porque cedi o à nossa filha S., desde que se casou. - "Fizeste bem."

            E, pondo-se a olha-la (o médium - observa a narradora - tinha os olhos sem brilho, com uma singular expressão, como se estivessem privados da visão normal) exclamou: "Como tu estás velha!"

            Interrogado como viera ter ali, explicou que fora trazido por um antigo empregado, cujo nome declinou, o qual, tendo sido na Terra um simples carroceiro, desencarnado havia 17 anos, era entretanto um espírito feliz, dedicado à família e particularmente à baronesa, por motivos de gratidão relacionados com os benefícios por ela prodigalizados a sua viúva e aos filhinhos, que aqui deixara e pelos quais continuava ele, do espaço, a velar carinhosamente.

            E como a baronesa, naturalmente comovida, inquirisse do querido espírito comunicante porque se achava há tanto tempo em tal penoso estado, confessou ele: "Uma das coisas que mais me faz sofrer é o orgulho"; e indicou alguns espíritos de parentes, que do mesmo modo sofriam por igual motivo.

            Esse caso, digno de ponderação não somente pela honorabilidade da veneranda narradora, como por sua espontaneidade e pelo inesperado das revelações, de um cunho absolutamente pessoal, que excluem a hipótese da sugestão, encerra exortativas lições de ordem moral, sobre que entretanto não insistiremos, tendo sido apenas nosso intuito apresenta-lo como um subsídio documental do estado de perturbação e alheamento em que pode, por muitos anos, permanecer tolhido o espírito após a desencarnação .

            Sobre idênticos testemunhos pessoais, repetidos, multiplicados desde Allan Kardec, que os observou e registrou em grande número, é que tem sido possível determinar de um modo geral a situação dos espíritos na outra vida, assim no que se refere às suas percepções, sensações e sofrimentos, como às ocupações e missões a que se entregam, consoante o seu grau de atraso ou de adiantamento, aferido sempre pela soma de imperfeições ou virtudes que possuam. 

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