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Não abandonaremos este assunto, a
pluralidade de existências, sem examinar uma objeção, aparentemente valiosa,
com que tem sido impugnada. Porque, - costumam perguntar - se nós já vivemos
neste mundo, não nos lembramos desse fato?
Antes de tudo, cumpre acentuar, o
esquecimento só se verifica em relação aos sucessos, por assim dizer, adjetivos,
relacionados com a personalidade. Porque a memória substancial, aquilo que
constitui a trama íntima de nossas aquisições morais e intelectuais, permanece
vivaz, em forma de aptidões e tendências inatas.
Que querem dizer certas
predisposições para determinadas artes e ciências, a preferência por um ramo de
atividade, em que o indivíduo se revela exímio, sem muitas vezes
ter aprendido mais que os seus rudimentos, que vem a ser, numa palavra, a
vocação e, melhor que isso, o gênio, esse lampejo dos predestinados, que não
precisa de mestres, porque se revela maior que todos eles, senão o testemunho
de uma lenta elaboração anterior, desabrochando agora na plenitude de uma
deslumbradora maturidade? Por isso afirmou um grande espírito que "viver é recordar-se. "
O homem conserva, pois, do seu
passado, como uma sorte de instintiva reminiscência, tudo aquilo que lhe pode
ser útil e facilitar a peregrinação terrestre, esquecendo em compensação o que
lhe poderia ser nocivo ou embaraçoso, não somente a si, mas aos seus próprios
semelhantes.
Se cada um de nós se recordasse
normalmente do que foi e do que fez, no transcurso das existências, para quase todos
tenebrosas, a presença constante, na retentiva da memória, das maldades, torpezas,
quantas vezes mesmo, crimes em que nos tivéssemos porventura chafurdado, não
seria antes de molde a nos acabrunhar que a servir de estimulo para uma reabilitação,
de que facilmente desanimaríamos? - ao passo que, na ignorância dos sucessos, vergonhosos
senão trágicos, que acidentaram as jornadas precedentes, podemos,
desembaraçados de humilhantes ou perturbadoras recordações, nos aplicar à meritória
tarefa das
reparações. E se a lembrança dessas vidas passadas permanecesse vivaz, com
todas as suas circunstâncias, não é certo que reconheceríamos também aqueles
que conosco as houvessem partilhado, e não estaria nisso uma fonte de perpétuos
ressentimentos e incompatibilidades? Como se poderia efetuar a reconciliação
dos inimigos, se cada um conservasse, nítida e fiel, a recordação das ofensas
recebidas?
É, pois, antes de tudo providencial
em seus benéficos efeitos a lei que sobre o passado de cada um e de todos nós
correu o misericordioso véu do esquecimento.
Os que, ao demais, pretendem ver
nesse esquecimento um motivo de impugnação ou invalidade, singularmente alheios
se mostram a uma eloquente analogia que se pode a tal propósito invocar. E vem
a ser que no curso desta mesma vida, uma multidão de fatos e impressões, apesar
de registrados pelo nosso cérebro atual, desapareceram do campo da memória,
pelo menos, ordinária. Todos nós - dissemos num trabalho publicado há alguns
anos (1) - tivemos uma infância, todos fizemos o nosso aprendizado nessa idade,
sofrendo a ação variada do mundo exterior, recebendo as suas impressões e
registrando-as nos arquivos de nossa consciência, sobre elas reagindo pelo riso
ou pelo choro, conforme eram agradáveis ou desagradáveis, delas em suma tomando
conhecimento pessoal, por isso que em nosso foro interno tinham uma repercussão
mais ou menos intensa. Todos, ou quase todos os fatos dessa primeira meninice,
entretanto, apesar de se produzirem no curso de uma mesma vida, se nos
varreram da memória.
(1) Ver L. Cirne, REGENERAÇÃO E REENCARNAÇÃO,
Demonstração da pluralidade de existências da alma (feita no REFORMADOR, órgão
da Federação Espírita Brasileira, em resposta ao PURITANO, órgão da Igreja
Evangélica Presbiteriana), folheto de 48 páginas. 1906.
E não são os únicos: durante a existência,
avançando através dos anos, uma multidão de sucessos, de incidentes, de coisas
referidas, de ideias percebidas, que de perto nos afetaram e foram do mesmo
modo registrados pela nossa consciência, tiveram idêntico destino, mergulharam
no olvido mais completo.
Se, pois, observávamos então, entre
as próprias impressões e percepções do nosso espírito, no curso desta vida, há
um número considerável que, em virtude de certas circunstâncias, termina por
inteiramente se nos apagar da memória ordinária, como nos admirarmos de que o
mesmo se tenha dado com os fatos de uma vida anterior, entre os quais os da
atual encarnação medeia todo o intervalo da erraticidade, que tanto pode ter
sido de alguns anos como até mesmo de alguns séculos!
Ao demais, se a memória, com ser um
fato de consciência e de atenção, conforme no capitulo III o assinalamos, é por
isso mesmo uma faculdade do espírito, não é menos certo que o seu funcionamento
normal, durante a encarnação, está dependente do veículo a que se acha, nesse
período, intimamente associada, a saber: o corpo físico, ou mais propriamente, o cérebro. Para
que uma percepção se dê, isto é, para que o espírito, no estado de encarnado,
tome conhecimento de um fato ou de um fenômeno qualquer, assim de natureza
moral como de ordem material, é necessário
que um movimento vibratório provocado por esse fato, afetando um ou alguns dos órgãos
dos sentidos, ponha em atividade as células nervosas correspondentes e, transportado
ao sensório, conseguintemente ao cérebro, se propague ao perispírito, para
atingir finalmente a consciência, cuja sede está no espírito. Não há assim,
para a consciência normal, ou de vigília, uma só impressão, percepção, ideia ou
fato que não tenha
transitado pelo cérebro e aí deixado um sulco mais ou menos profundo, donde se
segue que o cérebro é para a memória um instrumento e auxiliar, mais ou menos
fiel e obediente.
No cérebro atual, porém, só foram, transitoriamente
embora, registradas as impressões relativas a esta vida. Tudo o que se refere às
passadas existências, conservado sem dúvida nos arquivos profundos da subconsciência,
desapareceu temporariamente da memória, para só reaparecer no campo da consciência
do espírito: ou de um modo definitivo, ao se desembaraçar este, com a morte, do
grosseiro invólucro, ou com um cunho intermitente em certos estados supra normais,
como os determinados pelo sono magnético, em que o panorama das anteriores
vidas pode momentaneamente se exibir na tela do que se chama a consciência
sonambúlica. Tal é o caso das experiências do coronel de Rochas que há pouco relatávamos.
Não é contudo unicamente esse o caso
em que, tal seja 00 grau de evolução do espirito, a reminiscência do passado, umas
vezes indecisa, outras com um caráter positivo que não deixa lugar à Incerteza,
pode apresentar-se ao indivíduo, como outros tantos testemunhos subjetivos da
pluralidade de existências.
Vamos, em apoio deste asserto,
mencionar alguns exemplos, que, sem de modo algum invalidar a regra que
acabamos de indicar e é a que prevalece para a generalidade, relativamente ao
mecanismo da memoria associada ao funcionamento cerebral, servirão para
demonstrar que as leis do espírito podem se afirmar e se afirmam soberanas,
toda vez que, de alguma sorte ludibriando as constrições da carne, é dado a
este confundir a ciência dois prudentes com alguns fragmentos, pelo menos, dos
seus nativos esplendores.
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