‘Ideias
e Ideais’
Quando entrei para o Espiritismo,
enchi-me de ideias. Cristão novo, logo por elas me entusiasmei, achando-as
inatacáveis, e julgava que quem não as compartilhasse dava sobejas provas de
debilidade mental, visto que me pareciam elas firmadas nuns embasamentos
indestrutíveis.
Mas sucedeu que entre
mim e um amigo meu, espírita como eu, e como eu referto de ideias inderrogáveis, surgiram sérias divergências doutrinárias.
Resolvemos
consultar o guia. O pior é que o guia se manifestava pelo meu contraditor, que era
o médium, e, no momento, não havia à mão, nem outro médium, nem outro guia. E
eu, apesar da minha profunda crença no mediunismo, comecei a recear aquilo que
se chama em termos de ciência, "a interferência do psiquismo do metagnomo."
Mas o médium caiu
em transe e eu lhe apresentei o ponto em debate, perguntando-lhe qual de nós
estava certo.
- Nenhum -
respondeu serenamente o guia, e elucidou: - Meus amigos, as ideias de vocês não valem nada; os homens ainda pensam como crianças que
são; as puerilidades com que se preocupam e que lhes tomam o tempo, a cabeça e
a razão espantariam os que aqui se acham em nosso plano, se não percebêssemos como vocês ainda são
atrasados. Não imaginam como nos sentimos penalizados quando vemos as
questiúnculas que os separam, quando os notamos perdidos em frioleiras, cada
qual com sua pequenina ideia, com seu restrito ponto de vista, com sua
minúscula doutrina, e isto, muitas vezes, com prejuízo dos grandes princípios
que devem levar o homem à paz e à felicidade.
As ideiazinhas
devem ceder terreno ao grande ideal que é o da solidariedade entre as criaturas;
por ele é que tomamos o penoso encargo de baixar até aqui; para ele é que os
queremos encaminhar. Não troquem nunca as pequeninas ideias que os separam
pelos grandes ideais que os devem unir.
*
Ficamos de cara à
banda, eu e o médium, principalmente o médium, que nunca supôs fosse desautorado
pelo próprio guia, e que se julgava sempre altamente inspirado.
Passou-se o tempo,
e comecei, então, a compreender o que havia de verdade naquele ensino.
Basta um relance
de olhos pelos fastos humanos para que se verifique como os homens se têm
injuriado, maltratado e matado por ideias; e, com o correr dos séculos, se percebe
como eles e elas andavam errados. As frioleiras por que uns assassinavam os
outros, deixam-nos atonitos, sem saber o que mais espanta neles, se a
ferocidade, se a ignorância.
É, sem dúvida,
para abismar, a lembrança das lutas que se travaram em França, entre duas facções religiosas, porque uma achava que a missa devia ser
dita em latim, e a outra, em francês.
Pudessem elas
sondar o Espaço, a ver qual seria a opinião dos Mentores, se a língua francesa
ou a língua latina, e eles, provavelmente, responderiam que a missa não deveria
ser dita em língua nenhuma.
Os massacres a
que deram lugar as contendas religiosas, ainda hoje são memorados, tal a intransigência e o furor dos combatentes. E quanto mais devoto,
quanto mais crente o indivíduo, a hoste, a sociedade ou a nação, tanto menos
piedosos, generosos ou clementes se tornavam os pelejadores.
Quando os
exércitos se levantaram para as Santas Cruzadas, estavam certos de que aquela ideia
de tomar o Santo Sepulcro aos infiéis era uma coisa sublime.
E destruiram
cidades, talaram campos, cometeram toda a sorte de violências, morrendo de fome, de peste, de cansaço, de combates ...
Perderam-se uns
dois milhões de seres, porque se achava que os Santos Lugares não deviam estar
em poder dos muçulmanos.
Ainda agora há
quem creia tais Cruzadas de muito proveito.
Quando as
fogueiras crepitavam em quase toda a Europa, quando os huguenotes eram exterminados
na noite de S. Bartolomeu, quando os cátaros e os albigenses se viam queimados fora
e dentro de suas igrejas, quando o duque d'Alba investia a Holanda, quando os
soldados do general Anhalt apanhavam no ar as crianças turcas à ponta de
baioneta, quando Mendes Pinto trucidava os hereges no Oriente, quando eram imolados
os íncolas, na América, tudo isto se fazia em nome de Deus, e os matadores estavam
convencidos de que possuíam a verdadeira ideia.
Para o árabe, o
ímpio era o cristão; para o cristão, o ímpio era o árabe. E nessa ideia acutilaram-se razoavelmente.
Gengis-Khan
entrava com sua montaria nas mesquitas, fazia dos livros santos cama para os animais
e mandava que os sacerdotes tratassem dos cavalos.
Tamerlão não
podia ver um cristão que o não estripasse; Balduíno, por sua vez, não podia ver
um sarraceno que lhe não tirasse a cabeça.
E ainda pior eram
as rivalidades dentro da mesma religião. O dissídio entre católicos e protestantes
fora de extermínio.
Entretanto,
fugiam todos do supremo ideal, mormente aqueles que empunhavam o lábaro de Jesus,
para quem a lei se resumia no amor do semelhante.
*
O grande ideal
entre os espíritas seria promover a aproximação das criaturas, e de maneira que
aquele ensino evangélico se tornasse para todos um imperativo categórico.
Não há motivo
para ódios entre os religiosos, nem deve existir um abismo entre as religiões.
Estaria de acordo
com os preceitos do Divino Mestre a tolerância entre os filhos de um mesmo Deus, e nunca a luta acesa, a de ferro e fogo como outrora,
a de doestos (insultos) como hoje.
Sem prejuízo dos
seus pontos de fé, nem dos seus princípios, nem dos seus mistérios, nem dos
seus dogmas, nem do seu catecismo, poderia a religião católica, a menos
tolerante das nossas religiões, formar com as demais na propagação, no
estabelecimento da solidariedade, da fraternidade, da paz universal.
Cada religião
adotaria esse mesmo processo, esse mesmo princípio.
Ao Espiritismo
caberia a iniciativa e, principalmente, o exemplo, por ser, a meu ver, a mais avançada das doutrinas religiosas. E o exemplo deve começar
por casa.
Entre os
espiritas, que todos se unam e se reúnam pelo preceito comum, primacial, da caridade,
e pelos que formam a espinha dorsal das lições mediúnicas. Não importa a
opinião especial de cada um, nem a de cada Centro, ou de cada Grupo, ou de
cada União, ou de cada Comunidade. Filiemo-nos a uma só bandeira, sob a égide dos
Preceptores, dentro do lema supremo da Harmonia, da Justiça, do Desinteresse, do
Bem.
Independência
completa de ideias, coesão indestrutível de ideal.
Alguns passos,
neste sentido, já foram iniciados, com, oposição, infelizmente, daqueles que pensavam
como eu, antes que o tempo e a reflexão me iluminassem o entendimento.
Quando pairar sobre
todas as religiões e sobre todos os religiosos o espírito da confraternização,
reinará a concórdia no planeta, e haverá, então, um só rebanho e um só pastor.
Possam todos
pensar como o célebre eclesiástico de que fala Machado de Assis, o qual acreditava que uma onça (30g) de
paz vale mais que uma libra (454g) de vitória.
por Carlos Imbassahy (Pai)
in Reformador (FEB)
Agosto 1945
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