“Cristo-Redenção
ou Clero-Redenção?”
Desde os primórdios do século 4º,
quando os cristãos saíam das catacumbas e o Cristianismo iniciava a sua
organização teológica e social, começou a manifestar-se uma ideologia peculiar sobre
o caráter da redenção realizada pelo Cristo.
Em que consiste a redenção?
Como é ela aplicada ao homem?
Esta ideologia foi ganhando terreno.
E, na medida em que a hierarquia eclesiástica se robustecia, o aspecto humano
foi prevalecendo cada vez mais sobre o carácter divino da redenção. Por fim, a
Cristo-redenção foi sucumbindo totalmente ao impacto da clero-redenção: a obra
do Cristo foi dependendo da atuação do clero.
No século 13, Tomás de Aquino
codificou eruditamente, sobre a base da filosofia dualista de Aristóteles, essa
teologia clerical, que representa uma vitória do "poder" sobre a
"Verdade".
No século 16, o Concílio de Trento
oficializou, para toda a igreja romana, esse conceito da redenção, e
anatematizou todos os que pensassem de modo diferente.
Na segunda metade do século 20,
alguns papas, a começar por João XXIII, concederam certa liberdade de
pensamento aos teólogos - e logo se manifestou enorme onda de revolução e evolução
no seio do catolicismo, diminuindo grandemente o poder da hierarquia
onipotente. Vozes libertas do meio do clero ousaram dizer o que nós, da
ALVORADA e de outros setores do Cristianismo não-clerical, vínhamos afirmando
havia diversos decênios.
Segundo o conceito clerical
dominante, a redenção foi realizada pelo Cristo - mas a sua aplicação
individual ao homem depende da presença e atuação de um representante do clero; se
não há padre, a redenção do Cristo não funciona, é totalmente nula e
ineficiente. Quer dizer que a presença e atuação do padre é decisiva e
indispensável para a redenção e salvação do homem. Sem o clero não há salvação.
O Cristo depende do clero.
Quem não vê que essa ideologia dava
poder imenso ao clero - mas destruía totalmente a Verdade do Evangelho do
Cristo? A Verdade do Cristo era literalmente derrotada pelo poder do clero. E
assim o clero se tornava anti-crístico.
Suponhamos que existe algures um
grande depósito de mantimentos, um armazém fechado a chave; ao redor do depósito
milhares de homens morrem de fome, se não aparecer alguém com a chave e abra o
armazém de víveres.
Deste modo, estaria a redenção do
Cristo condicionada à atuação do clero; a presença de um padre faria funcionar
a redenção do Cristo; a ausência do padre anularia essa redenção.
Segundo a teologia romana - do
catolicismo clerical, não da catolicidade crística - o centro e cerne do
Cristianismo é a missa, cuja alma é a consagração, isto é, a transubstanciação
do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus, cuja recepção é indispensável
para a salvação.
Segundo a mesma teologia, somente o
padre pode absolver alguém de seus pecados, condição necessária para a
salvação.
Ora, tanto a missa, como também a
confissão e comunhão são privilégio privativo do padre; nenhum leigo tem o
poder de dizer missa, de absolver dos pecados e de dar aos homens o corpo e
sangue de Jesus.
Quer dizer que a salvação do homem
depende inteiramente da atuação do clero. Sem o padre não há salvação.
É este o zênite do poder clerical -
e o nadir da verdade crística.
É o anticristo derrotando o Cristo.
E, por cúmulo de males, a bandeira
do Cristo é hasteada sobre o quartel-general do anticristo.
Este movimento anticrístico em nome
do Cristo começou no século 4º, culminou nos séculos 13 a 16, e vai em declínio
no fim do século 20.
Nesse longo período de muitos
séculos não conseguiu a mensagem do Cristo exercer o seu poder redentor, porque
os cristãos lhe obstruíram o caminho, sob o pretexto de levarem adiante o Evangelho
do Cristo.
Que admira que esse Cristianismo
anticrístico tenha sido totalmente ineficiente, e até profundamente nocivo à
pobre humanidade iludida?
Nenhuma outra parcela da humanidade
cometeu tantos crimes e tantas guerras de extermínio, em nome de Deus e do Cristo,
como precisamente a humanidade cristã do ocidente, cujo bimilênio vai ser
celebrado daqui a poucos decênios. A única celebração condigna do ano 2000
seria a decretação de um luto mundial de três dias, com todas as bandeiras a
meia-haste. E a cristandade toda devia mergulhar em três dias de silêncio, de exame
de consciência, de jejum e de oração ... E rezar, em profundo silêncio de
contrição, o confiteor das suas maldades: Mea culpa, mea culpa, mea máxima
culpa ...
Assim, pelo menos, a nova humanidade
em Cristo teria caminho aberto para a sua verdadeira cristificação.
Quem melhor expôs essa deplorável
substituição da Cristo-redenção pela clero-redenção foi o célebre "Cura
d'Ars", segundo a biografia que dele escreveu o padre Monnin, com a devida
aprovação eclesiástica. O padre João Batista Vianney, mais conhecido como o
"Cura d'Ars", certamente não teve a intenção de desmascarar sua
própria teologia; mas como sua inteligência estava sempre abaixo de zero -
tanto assim que, no seminário, nunca foi aprovado em nenhum exame de teologia -
disse com grande simplicidade e ingenuidade o que outros tentam disfarçar
quanto possível.
No citado livro do padre Monnin sobre
o "Cura d'Ars" lê-se o seguinte:
Se tu tivesses aí uma legião de
anjos, não te poderiam absolver dos teus pecados - mas o mais humilde dos
padres te diz "eu te absolvo dos teus pecados", e estás livre dos
teus pecados. Se pedisses à Virgem Maria que te desse o corpo de Cristo, ela
não o poderia - mas qualquer padre o pode; ele diz sobre um pedaço de pão
"este é o meu corpo" - e eis que tem Jesus em suas mãos e te pode dar
para tua salvação. Maria fez baixar Jesus à terra uma única vez - o padre o faz
descer sobre o altar todos os dias. Ela fez descer à terra o Criador do mundo -
o padre o faz descer todos os dias. Isto é mais que criar o mundo - é criar o
próprio Criador do Universo; de um pedaço de pão, ele faz um Deus.
E conclui o "Cura d'Ars",
segundo a biografia do padre Monnin: Todo e qualquer benefício de Deus nos vem
através do padre. Pobres dos povos que não têm padre! assim não se podem salvar.
Será que o autor ignora que a imensa
maioria da humanidade não tem padre? e os muitos milhões que viveram antes do Cristo
e antes da origem do clero?
De maneira que essa clero-redenção
culmina na mais horripilante caricatura de Deus e do Cristo.
Huberto
Rohden
in “Que vos parece do Cristo?”
(Livraria Editora Sabedoria - 1970)
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