“Uma só coisa
é necessária...”
"Marta, Marta, andas inquieta e
perturbada com muitas coisas - uma só coisa é necessária: Maria escolheu a
parte boa, que não lhe será tirada".
Vai nestas palavras brevíssimas de
Jesus toda a filosofia espiritual do Cristianismo. Há quase dois mil anos que a
humanidade ocidental tenta compreender o Cristo e seu Evangelho; mas essa
tentativa é sem esperança de resultado positivo enquanto não mudarmos
radicalmente de perspectiva. E essa mudança não se refere a tais ou quais
aspectos periféricos, mas requer uma nova atitude central em face da própria
realidade metafísica, eterna, absoluta. Não adianta remendarmos um pouco a
"roupa velha" da nossa teologia tradicional, cosendo-Ihe algum
"remendo novo", não: é necessário e indispensável jogarmos fora,
corajosamente, essa "roupa velha" e revestirmo-nos de uma vestimenta
inteiramente nova, que não necessite de remendos. Não deitemos o "vinho
novo" do verdadeiro espírito do Cristo nos "odres velhos" do
nosso cristianismo tradicional, mas tenhamos a jubilosa audácia de
crearmos[1]
recipientes novos e limpos para o vinho generoso e forte do Evangelho do
Cristo.
Enquanto não passarmos do nosso
obsoleto e Multissecular horizontalismo físico-mental para o novo e inédito
verticalismo espiritual, não compreenderemos o Cristo e seu Evangelho.
Segundo a nossa tradicional
filosofia empírica ocidental, o que é real, solidamente real, talvez unicamente
real, é este mundo material que os nossos sentidos percebem e cujas leis a
nossa mente concebe e calcula. Se, além disto, admitimos alguma outra
realidade, não-material, essa outra realidade não passa de algo longínquo,
vago, precariamente real, quase pseudo
real, algo em que cremos, em momentos de boa vontade e emoção espiritual, mas
de que nada sabemos propriamente, por experiência imediata. Cremos nesse mundo
espiritual, mais por convenção do
que por convicção; cremos, porque ouvimos dizer ou lemos a respeito desse tal
mundo invisível; cremos, quase por fraqueza ou para fazer um favor a Deus ... Das realidades do mundo material e suas leis
temos noção direta e concreta, diária - ao passo que do mundo espiritual
nos vêm apenas uns como que ecos longínquos, uns reflexos indiretos e incertos,
que não estão em condições de exercer impacto decisivo sobre a nossa vida
humana, ou até suplantar a intensidade das
nossas
experiências físico-mentais.
A nossa fé não representa 1% da
força brutal do nosso "perceber", e por isto é inevitável que a
concha da balança da nossa vida terrestre penda invariavelmente para o lado dos
sentidos e do intelecto, e não para o lado do espírito ou da razão. O mundo
espiritual da nossa
fé é para nós, uma espécie de bela teoria que respeitamos, mas não uma
realidade palpável
que possamos jubilosamente praticar e entusiasticamente amar. É um esplêndido
"fogo pintado", mas não uma chama real; entretanto, com o mais
esplêndido fogo pintado numa tela não posso atear fogo em coisa alguma, ao
passo que com a menor das chamas reais posso atear incêndios imensos.
* * *
Ora, de que modo poderíamos
conseguir que o mundo espiritual, que é a alma do Evangelho, se tornasse para
nós pelo menos tão real e eficiente como o mundo material? que exercesse um
impacto veemente e decisivo sobre a nossa vida humana? que chegasse ao ponto de
nos tornar suave e leve o que hoje nos é amargo e pesado? Se tal coisa
conseguíssemos, é fora de dúvida que a nossa vida se transformaria
completamente; viveríamos agora mesmo o reino de Deus no meio deste "vale
de lágrimas"; poderíamos exclamar com um que passou por essa gloriosa
experiência: "Eu transbordo de júbilo no meio de todas as minhas
tribulações" ...
De que modo poderíamos conseguir
essa conquista máxima da nossa vida?
Deixando de ser "Martas" e
passando a ser "Marias"; deixando de andarmos solícitos e perturbados
com as "muitas coisas" do plano horizontal e sentando-nos calmamente
aos pés do Mestre, abismados na profunda verticalidade da "única coisa
necessária", intensamente real, unicamente real, essa que não é do tempo e
do espaço, ilusórios e transitórios, mas da
eternidade, e que, por isto mesmo, "não nos será tirada" ...
Cruzar essa fronteira invisível,
transpor esse abismo imenso, passar por essa crise redentora, saber por
experiência pessoal e íntima o que é essa parte escolhida por Maria e
infinitamente mais real e grandiosa que todas as muitas coisas de Marta - isto
é redenção cristã, isto é iniciação espiritual, isto é entrada no reino dos
céus, isto é renascimento pelo espírito, isto é procurar o reino de Deus e sua justiça,
isto é, a vida eterna ...
Não ter tempo ou interesse para esta
única coisa necessária, esbanjar todo o tempo e todo o interesse nas muitas
coisas desnecessárias - isto é suprema insipiência, isto é, horrorosa cegueira
e obtusidade espiritual, isto é ser filho das trevas e dormir o sono da morte...
Tudo que temos ou julgamos ter nos
será tirado amanhã - só o que somos é o que seremos para sempre, se é que o
somos de verdade, hoje mesmo.
Tudo que eu chamo meu está apenas ao
redor de mim, fora de mim, longe de mim, alheio a meu verdadeiro ser; nada
disto sou eu, tudo isto é apenas meu, são os pseudo-meus. Somente o meu Eu é
que é realmente meu, inalienavelmente meu, eternamente meu, gloriosamente
meu.
As quantidades que Marta tem são fictícias, temporárias - a qualidade que Maria é, é real, eterna.
Marta tem muitas coisas - e por isto anda inquieta e perturbada.
Maria é alguém - e por isto se queda aos pés do Mestre, calma, serena,
feliz.
Quando o homem deixa de ter muitas
coisas e começa a ser alguém, então vem sobre ele a grande paz, que o mundo não
pode dar nem tirar.
Não adianta ter - é necessário ser...
O ser inclui o ter - mas o ter
não inclui o ser.
O ser é qualidade, é causa, é verticalidade, é fonte - o ter é apenas quantidade, efeito,
horizontalidade, canal.
Quem de fato é alguém por sua
experiência com Deus pode serenamente perder tudo o que tem, porque sabe que
não perde nada; descobriu a divina matemática de que o mais, que é ser, inclui o
menos, que é ter; e, como ele possui o mais,
o grande MAIS, o TODO, a Deus, não precisa preocupar-se com os pequenos menos, contidos, todos eles, nesse
grande MAIS. Pode espontaneamente abrir mão de tudo quanto tem, tornar- se
indigente de todas as quantidades horizontais ao redor dele, porque sabe que é
milionário daquilo que é, da sublime e profunda verticalidade da qualidade
dentro dele. Esse homem descobriu o reino de Deus dentro de si, e já não
precisa de dar caça frenética aos pseudo-reinos do mundo fora dele, porque sabe
que esses reinos estão todos radicados em Deus, no Deus dentro dele, e que, se
os quisesse possuir, os teria todos em grande abundância. Esse homem aprendeu a
suprema sapiência de possuir todos os efeitos na causa, e deixou de querer
possuir os efeitos sem a causa. Da excelsa atalaia central da sua visão
cósmica, esse homem
abrange, calma e serenamente, todas as periferias dos mundos que gravitam em
torno dele. Possuindo a
"única coisa necessária", abrange todas as outras coisas, e possue-as
sem inquietude nem perturbação, mas com a serenidade dinâmica e a paz creadora
com que o homem espiritual penetra todas as materialidades.
Que aproveita ao homem ter algo,
mesmo que seja o mundo inteiro, se não é alguém,
se sofre prejuízo naquilo que ele é, sua alma? Poderá acaso o ter resgatar o ser? poderá o menos crear
o mais? poderão as muitas quantidades produzir a única qualidade?
* * *
Essa transformação da nossa falsa
política do ter - na verdadeira
filosofia do ser é que no Evangelho
se chama "metánoia", que quer dizer "trans-mentalização"
(metá-trans; nous-mente) ,geralmente traduzido por "conversão".
Quando o homem começa a compreender a suprema sabedoria de que as coisas do
mundo material não são primariamente-reais, senão apenas
derivadamente-reais, alo-reais, e não auto-reais, e que só o mundo espiritual é
que é real em si mesmo - então passa ele pela grande "metánoia",
converte-se, transmentaliza-se, muda de mentalidade, realiza em si a misteriosa
alquimia espiritual, transmudando elementos
vis em elemento nobre, deixa de ser Marta e se torna Maria, para que depois
possa ser Maria-Marta, um ser humano capaz de tratar das muitas coisas do mundo
material sem inquietude nem perturbação e sem abandonar o seu lugar aos pés do
Mestre.
Huberto
Rohden
in “Filosofia Cósmica do Evangelho”
(Edição da Fundação
Alvorada - 1976)
[1] A
substituição da tradicional palavra latina crear
pelo neologismo moderno criar é
aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental - mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento. Crear é a
manifestação da Essência em forma de existência - criar é a transição de uma
existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador
do Universo - um fazendeiro é criador de gado, Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez
criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que "na natureza nada se crea
e nada se aniquila, tudo se transforma", esta lei está certa se grafarmos,
"nada se crea", mas se
escrevermos "nada se cria",
ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do
pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
Nota do Autor
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