terça-feira, 24 de abril de 2012

Uma só coisa é necessária...



“Uma só coisa
é necessária...”
           
            "Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas - uma só coisa é necessária: Maria escolheu a parte boa, que não lhe será tirada".

            Vai nestas palavras brevíssimas de Jesus toda a filosofia espiritual do Cristianismo. Há quase dois mil anos que a humanidade ocidental tenta compreender o Cristo e seu Evangelho; mas essa tentativa é sem esperança de resultado positivo enquanto não mudarmos radicalmente de perspectiva. E essa mudança não se refere a tais ou quais aspectos periféricos, mas requer uma nova atitude central em face da própria realidade metafísica, eterna, absoluta. Não adianta remendarmos um pouco a "roupa velha" da nossa teologia tradicional, cosendo-Ihe algum "remendo novo", não: é necessário e indispensável jogarmos fora, corajosamente, essa "roupa velha" e revestirmo-nos de uma vestimenta inteiramente nova, que não necessite de remendos. Não deitemos o "vinho novo" do verdadeiro espírito do Cristo nos "odres velhos" do nosso cristianismo tradicional, mas tenhamos a jubilosa audácia de crearmos[1] recipientes novos e limpos para o vinho generoso e forte do Evangelho do Cristo.

            Enquanto não passarmos do nosso obsoleto e Multissecular horizontalismo físico-mental para o novo e inédito verticalismo espiritual, não compreenderemos o Cristo e seu Evangelho.

            Segundo a nossa tradicional filosofia empírica ocidental, o que é real, solidamente real, talvez unicamente real, é este mundo material que os nossos sentidos percebem e cujas leis a nossa mente concebe e calcula. Se, além disto, admitimos alguma outra realidade, não-material, essa outra realidade não passa de algo longínquo, vago, precariamente real, quase pseudo real, algo em que cremos, em momentos de boa vontade e emoção espiritual, mas de que nada sabemos propriamente, por experiência imediata. Cremos nesse mundo espiritual, mais por convenção do que por convicção; cremos, porque ouvimos dizer ou lemos a respeito desse tal mundo invisível; cremos, quase por fraqueza ou para fazer um favor a Deus ...  Das realidades do mundo material e suas leis temos noção direta e concreta, diária - ao passo que do mundo espiritual nos vêm apenas uns como que ecos longínquos, uns reflexos indiretos e incertos, que não estão em condições de exercer impacto decisivo sobre a nossa vida humana, ou até suplantar a intensidade das
nossas experiências físico-mentais.

            A nossa fé não representa 1% da força brutal do nosso "perceber", e por isto é inevitável que a concha da balança da nossa vida terrestre penda invariavelmente para o lado dos sentidos e do intelecto, e não para o lado do espírito ou da razão. O mundo espiritual da nossa fé é para nós, uma espécie de bela teoria que respeitamos, mas não uma realidade palpável que possamos jubilosamente praticar e entusiasticamente amar. É um esplêndido "fogo pintado", mas não uma chama real; entretanto, com o mais esplêndido fogo pintado numa tela não posso atear fogo em coisa alguma, ao passo que com a menor das chamas reais posso atear incêndios imensos.

* * *

            Ora, de que modo poderíamos conseguir que o mundo espiritual, que é a alma do Evangelho, se tornasse para nós pelo menos tão real e eficiente como o mundo material? que exercesse um impacto veemente e decisivo sobre a nossa vida humana? que chegasse ao ponto de nos tornar suave e leve o que hoje nos é amargo e pesado? Se tal coisa conseguíssemos, é fora de dúvida que a nossa vida se transformaria completamente; viveríamos agora mesmo o reino de Deus no meio deste "vale de lágrimas"; poderíamos exclamar com um que passou por essa gloriosa experiência: "Eu transbordo de júbilo no meio de todas as minhas tribulações" ...

            De que modo poderíamos conseguir essa conquista máxima da nossa vida?

            Deixando de ser "Martas" e passando a ser "Marias"; deixando de andarmos solícitos e perturbados com as "muitas coisas" do plano horizontal e sentando-nos calmamente aos pés do Mestre, abismados na profunda verticalidade da "única coisa necessária", intensamente real, unicamente real, essa que não é do tempo e do espaço, ilusórios e transitórios, mas da eternidade, e que, por isto mesmo, "não nos será tirada" ...

            Cruzar essa fronteira invisível, transpor esse abismo imenso, passar por essa crise redentora, saber por experiência pessoal e íntima o que é essa parte escolhida por Maria e infinitamente mais real e grandiosa que todas as muitas coisas de Marta - isto é redenção cristã, isto é iniciação espiritual, isto é entrada no reino dos céus, isto é renascimento pelo espírito, isto é procurar o reino de Deus e sua justiça, isto é, a vida eterna ...

            Não ter tempo ou interesse para esta única coisa necessária, esbanjar todo o tempo e todo o interesse nas muitas coisas desnecessárias - isto é suprema insipiência, isto é, horrorosa cegueira e obtusidade espiritual, isto é ser filho das trevas e dormir o sono da morte...

            Tudo que temos ou julgamos ter nos será tirado amanhã - só o que somos é o que seremos para sempre, se é que o somos de verdade, hoje mesmo.

            Tudo que eu chamo meu está apenas ao redor de mim, fora de mim, longe de mim, alheio a meu verdadeiro ser; nada disto sou eu, tudo isto é apenas meu, são os pseudo-meus. Somente o meu Eu é que é realmente meu, inalienavelmente meu, eternamente meu, gloriosamente meu.

            As quantidades que Marta tem são fictícias, temporárias - a qualidade que Maria é, é real, eterna.

             Marta tem muitas coisas - e por isto anda inquieta e perturbada.

            Maria é alguém - e por isto se queda aos pés do Mestre, calma, serena, feliz.

            Quando o homem deixa de ter muitas coisas e começa a ser alguém, então vem sobre ele a grande paz, que o mundo não pode dar nem tirar.

            Não adianta ter - é necessário ser...

           O ser inclui o ter - mas o ter não inclui o ser.

            O ser é qualidade, é causa, é verticalidade, é fonte - o ter é apenas quantidade, efeito, horizontalidade, canal.

            Quem de fato é alguém por sua experiência com Deus pode serenamente perder tudo o que tem, porque sabe que não perde nada; descobriu a divina matemática de que o mais, que é ser, inclui o menos, que é ter; e, como ele possui o mais, o grande MAIS, o TODO, a Deus, não precisa preocupar-se com os pequenos menos, contidos, todos eles, nesse grande MAIS. Pode espontaneamente abrir mão de tudo quanto tem, tornar- se indigente de todas as quantidades horizontais ao redor dele, porque sabe que é milionário daquilo que é, da sublime e profunda verticalidade da qualidade dentro dele. Esse homem descobriu o reino de Deus dentro de si, e já não precisa de dar caça frenética aos pseudo-reinos do mundo fora dele, porque sabe que esses reinos estão todos radicados em Deus, no Deus dentro dele, e que, se os quisesse possuir, os teria todos em grande abundância. Esse homem aprendeu a suprema sapiência de possuir todos os efeitos na causa, e deixou de querer possuir os efeitos sem a causa. Da excelsa atalaia central da sua visão cósmica, esse homem abrange, calma e serenamente, todas as periferias dos mundos que gravitam em torno dele. Possuindo a "única coisa necessária", abrange todas as outras coisas, e possue-as sem inquietude nem perturbação, mas com a serenidade dinâmica e a paz creadora com que o homem espiritual penetra todas as materialidades.

            Que aproveita ao homem ter algo, mesmo que seja o mundo inteiro, se não é alguém, se sofre prejuízo naquilo que ele é, sua alma? Poderá acaso o ter resgatar o ser? poderá o menos crear o mais? poderão as muitas quantidades produzir a única qualidade?

* * *

            Essa transformação da nossa falsa política do ter - na verdadeira filosofia do ser é que no Evangelho se chama "metánoia", que quer dizer "trans-mentalização" (metá-trans; nous-mente) ,geralmente traduzido por "conversão". Quando o homem começa a compreender a suprema sabedoria de que as coisas do mundo material não são primariamente-reais, senão apenas derivadamente-reais, alo-reais, e não auto-reais, e que só o mundo espiritual é que é real em si mesmo - então passa ele pela grande "metánoia", converte-se, transmentaliza-se, muda de mentalidade, realiza em si a misteriosa alquimia espiritual, transmudando elementos vis em elemento nobre, deixa de ser Marta e se torna Maria, para que depois possa ser Maria-Marta, um ser humano capaz de tratar das muitas coisas do mundo material sem inquietude nem perturbação e sem abandonar o seu lugar aos pés do Mestre.

Huberto Rohden
in “Filosofia Cósmica do Evangelho”
(Edição da Fundação Alvorada - 1976)





[1] A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental - mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência - criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo - um fazendeiro é criador de gado, Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que "na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma", esta lei está certa se grafarmos, "nada se crea", mas se escrevermos "nada se cria", ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.   Nota do Autor



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