quarta-feira, 28 de março de 2012

Um Exemplo Imperecível



Um Exemplo
Imperecível
inReformador’ (FEB) Maio 1974
por Indalício Mendes

Trabalhai, não pela comida que perece,
mas pela comida que permanece para a vida eterna,
a qual o Filho do homem vos dará:
porque sobre ele Imprimiu o selo do Pai, que é Deus.”
Jesus (João 6:27)


            Deixando em nossos corações o rastro indestrutível da saudade, partiu Antônio Wantuil de Freitas para a Espiritualidade, depois de haver dado ao mundo sublime exemplo de amor e fidelidade ao Cristo de Deus, no mandato que recebeu ao adotar a Doutrina codificada pelo ilustre mestre Allan Kardec.

            Homem inteligente, arguto, dinâmico, possuía admirável acuidade mental e clarividência no trato com as criaturas humanas, antecipando, não raro, as conclusões de fatos que mal se definiam aos seus olhos. Não estamos dizendo que o nosso Wantuil haja sido um profeta, no sentido vulgar do termo, mas, efetivamente, tinha intuições que geralmente escapavam ao comum dos homens. Foi absolutamente consciente do papel que deveria representar na vida terrena e intransigente quanto aos deveres com Deus e Jesus. Habituou-se muito cedo ao trabalho severo e aprendera que jamais se recupera o tempo perdido com inutilidades. Assim, sempre encontrava um meio de valorizar o tempo, sem se desumanizar, sem se negar ao contato e troca de ideias com outras pessoas, ocasiões que considerava como pausas indispensáveis à reconquista da energia despendida no labor estrênuo. Parecia que em sua mente lúcida estava sempre aberta e iluminada a sentença do Mestre: "Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também." (João, 5:17).

            Muito lhe devemos pelo muito que recebemos na amizade que nos uniu neste período encarnatório, e talvez jamais possamos saldar esse débito. Todavia, onde quer que esteja, o Wantuil estará sempre disposto a nos conceder generosas moratórias, seguindo os passos de Jesus na tolerância e na indulgência que levam ao perdão. Grande espírita cristão, grande amigo!

            Quiseram as circunstâncias que nos encontrássemos ausente do Rio quando ele se desprendeu dos laços físicos, reingressando na Senda dos Espíritos. Não lhe pudemos dar o adeus de corpo presente, mas, por certo, ele já deve ter sentido a manifestação da nossa saudade através do instrumento telecomunicativo da prece. A última vez que nos faláramos, pelo telefone, ao perguntarmos por sua saúde, respondera-nos, no tom discreto peculiar ao seu temperamento, que ia relativamente bem. Não era homem de lamúrias. Compreendia a precariedade da vida terrena e encarava o fatalismo biológico da morte como acontecimento verdadeiramente natural, consoante o ponto de vista espírita.

            Caráter franco, habitualmente comedido no falar, Wantuil aprendera a divergir sem ferir, a dizer não, quando necessário, sem machucar, sem magoar. Mas não iludia ninguém, não fazia promessas enganosas. Como Helvetius, achava que a verdade não pode ser nociva. Procedia, como se diz em nossa terra natal, minha e dele: "mata a cobra e mostra o pau", quer dizer: sempre que era forçado a discordar de uma ideia ou de uma proposta, explicava por que o fazia, pondo o máximo de sinceridade em seus argumentos. A sua autoridade pessoal consolidou-se porque jamais pisou o terreno falso do farisaísmo. Por mais desfavoráveis que fossem as situações, mantinha o ânimo sereno e forte, contagiando os que o cercavam.

            Era bom sem ser piegas e a sua justiça se baseava nos Evangelhos, convencido de que a fraqueza humana decresce de intensidade e pode até anular-se, quando escorada pelo Alto. Naturalmente modesto, cordial e humilde, buscava nos Evangelhos e na prece os esclarecimentos de que necessitava nos momentos de aguda crise, em face de problemas angustiantes. Jamais quebrou a linha de austeridade que vem sendo apanágio dos dirigentes da Casa de Ismael. A Federação Espírita Brasileira foi a "menina dos seus olhos", o coração de sua alma de lúcido cultor do Espiritismo cristão. Podemos situá-lo, sem exagero e sem que nossas palavras sejam suspeitas, em virtude da longa e sólida amizade que nos ligava, entre os maiores Presidentes que já passaram pelo Templo de Ismael.

            Trabalhou, trabalhou muito, trabalhou sempre, sem horas limitadas para os parcos lazeres que conheceu. Deve ter guardado na memória esta frase dos Espíritos em a "Revelação da Revelação", que devemos à fé e à pertinácia de Roustaing: "A oração agradável a Deus é o trabalho: trabalho da inteligência, trabalho do corpo. Cada um de vós deve trabalhar conforme à tarefa que lhe está confiada. Cada um de vós deve, pois, orar continuamente. Trabalhai, eis a oração; vigiai, isto é, garanti-vos, exercendo constante vigilância sobre vós mesmos. Assim,  vossa carne se tornará forte e não mais temereis a tentação. VIGIAI E ORAl, irmãos nossos. O Mestre conta convosco."

            E o Mestre deve estar satisfeito com o servo diligente e responsável, que fez quanto podia para corresponder à sua confiança. Os que conheceram de perto a Antônio Wantuil de Freitas sabem que estamos sendo justo ao relembrar-Ihe o vulto do companheiro valoroso, do administrador probo, vigilante e esclarecido. Nunca transferiu a ninguém suas responsabilidades. Pelo contrário. Fez-se solidário, não poucas vezes, com as responsabilidades de outros, dando sua colaboração constante para preservá-los. Procedia, portanto, como um espírita cristão, solícito no aplacar as atribulações dos que a ele recorriam, buscando as luzes da sua experiência e dos seus conhecimentos.

            Ao sentir-se acuado por questões difíceis, concentrava-se e orava. Punha-se, em seguida, a analisar os assuntos, ponto por ponto, e, finalmente, tomava a decisão definitiva, quando tudo parecia sugerir o contrário do que iria fazer. Disso fomos testemunha e vimos os nossos temores se esboroarem diante da sua segura determinação. Foi um lutador, na boa acepção do termo.

            Relacionar-lhe toda a obra seria estender demais este artigo. Citemos, contudo, o importante papel que representou na edificação e conclusão do Pacto Áureo, sonho de Bezerra de Menezes, destinado a unificar a família espírita do Brasil; os esforços gigantescos que desenvolveu, em 1944, no chamado "Caso Humberto de Campos", que teve extraordinária repercussão, dentro e fora do nosso País, e o qual terminou favoravelmente à Federação Espírita Brasileira, amparada pelas forças espirituais e defendida, nos Tribunais, pelo culto e respeitável confrade Dr. Miguel Timponi, além da valiosa colaboração de outros abnegados correligionários, em vários setores de ação. Era preciso, porém, que a têmpera espirítico-eristã de Wantuil de Freitas fosse submetida a outra prova dificílima. Em 1945, o Espiritismo começou a sofrer restrições cada vez maiores, inclusive perseguições a espíritas e instituições espíritas. Wantuil, com o tato admirável que nunca lhe faltou, procurou ter entendimentos com altas autoridades da República e a verdade foi a duras penas restabelecida, como restabelecida foi também a liberdade que a Constituição assegura a todas as religiões.

            Lembremos também o desenvolvimento do Departamento Editorial, organização sem similar no Espiritismo brasileiro e estrangeiro. Recordemos o lançamento dos selos espíritas, apesar de todos os obstáculos criados pela ação da intolerância e do desamor à harmonia.

            Quanto lhe deve o Espiritismo! Quanto lhe devemos nós, partícipes da sua laboriosa vida doutrinária! Na pálida homenagem que tentamos prestar a esse grande companheiro do Espiritismo brasileiro, pomos nela todo o espírito de justiça que se faz imprescindível. Iríamos longe, muito longe, se esmiuçássemos o trabalho de Wantuil de Freitas, como, por exemplo, a campanha acirrada de alguns poucos irmãos mal esclarecidos contra Roustaing, querendo negar à FEB o direito de respeitar o legado de Bezerra de Menezes e sua inspirada determinação de estabelecer, na Casa de Ismael, o estudo regular de "Os Quatro Evangelhos", como o faz com as obras da Codificação Kardequiana. [1]

            Cercado de companheiros leais, imbuídos da mesma disposição, pôde ele levar a bom termo as tarefas que se impôs.

            Em 1969, ponderara aos que iam decidir a renovação da Diretoria que se sentia enfermo e exausto. Compreendia que a FEB crescera muito e exigia dele e de todos uma soma progressivamente maior de atividade. Era tempo, afirmava, de passar o bastão de comando, para que os altos interesses da FEB não sofressem nenhuma intermitência. Mesmo assim, foi reeleito. Não pudera vencer o ponto de vista dos que insistiam em sua continuação. Mas, em 1970, suas condições físicas pioraram e só a energia do seu espírito permitira que se desincumbisse dos deveres multiplicados. Antes da Assembleia, reafirmou a resolução de afastar-se, com palavras que significavam mais ou menos isto: "Se vocês querem bem à Federação, não me reelejam desta vez. Fiz o que pude. Estou doente, sem condições para continuar dando à FEB o que ela precisa. Não é justo que me reconduzam à Presidência, comprometendo as necessidades da Casa de Ismael."

            E fomos todos para a Assembleia conformados com a decisão do devotado Wantuil, certos, porém, de que do Alto viria, como veio, a solução que mais conviesse aos interesses do Espiritismo brasileiro. Isto aconteceu em 22 de agosto de 1970. Cessou, nessa data, a sua participação administrativa na FEB, começada em agosto de 1936, quando assumira a Gerência do "Reformador". Entretanto, não se admita sequer que Wantuil se tenha desligado mentalmente da Federação. Acompanhava com carinhoso interesse a nova fase, iniciada por seu discípulo Armando de Oliveira Assis, que, durante mais de vinte anos, seguia-lhe os passos, como vice-presidente da FEB. Mantinha-se atualizado quanto ao movimento espírita, ao ser derrubado pela enfermidade que determinou a sua libertação da carne.

            Aí está, em relatos superficiais, sem roteiro cronológico, algo desse espírita extraordinário, desse companheiro que, simples e humilde, apesar do seu grande valor, marcou uma época invulgar no Espiritismo brasileiro. Não obstante os pesados encargos que absorviam o tempo de que dispunha, ainda "fabricava" algum tempo para escrever e publicar artigos no "Reformador", sob pseudônimos, e algumas obras de magnífico conteúdo doutrinário e evangélico, em português escorreito, em linguagem simples e acessível a todos os níveis de instrução, como "Ciência, Religião e Fanatismo", "Os Milagres de Jesus" e "Síntese do Novo Testamento". Esta última, então, de manifesta utilidade para os estudiosos dos Evangelhos, contém valioso índice por versículos e o resumo de todas as passagens das Escrituras Sagradas, dos ensinamentos deixados por Jesus. E, acrescentemos, sempre fiel a escrupuloso critério ético. São dele as seguintes palavras, ao terminar o preâmbulo da obra citada: "O Novo Testamento, revelação divina por instrumentos humanos, quais o foram os seus autores, apresenta-nos muitos degraus da revelação e conhecimento, somente acessíveis pela evolução com o tempo e pela iluminação com o esforço próprio; uma só LUZ - em filtros diversos." E a assinatura, que é um testemunho da sua personalidade verdadeiramente humilde, embora dinâmica e fecunda: Mínimus.

            Que o dileto amigo, hoje ao lado de outros grandes trabalhadores do Espiritismo cristão, na vida imaterial, como Bezerra, Bittencourt Sampaio, Sayão, Pedro Richard, Cirne, Quintão, Guillon, Paiva Júnior, Ismael Gomes Braga, Fred. Figner, Ignácio Bittencourt, José Augusto Romero e tantos outros, recomece lá o trabalho redentor que o fez digno do salário recebido, pois, na Terra, cumpriu conscientemente sua missão e em nenhum momento tirou a mão do arado nem olhou para trás; nunca depôs no chão a enxada, quando a terra adusta e endurecida exigia mais esforço, mais paciência, mais tenacidade, menos repouso. E foi assim que o eito ingrato, umedecido pelo bendito suor do trabalho, foi sendo transformado em leiras férteis e produtivas.

            A obra que deixou aqui é imperecível pelo exemplo de como se pode servir a Deus e ao Cristo, plantando o bem, colhendo o bem, distribuindo o bem!

Prece – II

Mínimus  (A. Wantuil de Freitas)


Minha vida, Senhor, é toda sofrimento
Desde quando te vi, no Cedron da Judéia.
Muitas vidas já tive aqui na Terra, um cento
Talvez, e longe estou da verdadeira aleia.

Cada vez que aqui volto, eu trago um só desejo:
Transformar o meu "ego" e seguir-te as pegadas.
E ao voltar para o Espaço, eu tristemente vejo
Tantas leis, meu Jesus, que deixei desprezadas.

E se não fora a luz, que me vai melhorando,
Essa dor que aconselha, e me fala, e me inspira,
Certamente outro crime, e talvez mais nefando,

Retardasse o teu Malco e lhe partisse a lira,
Onde canto essa dor que me vem ajudando
A seguir para a frente, a te ter como mira!

(Extraído do livro "Os Milagres da Jesus", pág.  6, 2ª ed. FEB, 1952.)


[1] Os destaques em negrito são do blogueiro.


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