Um Exemplo
Imperecível
in ‘Reformador’ (FEB) Maio
1974
por
Indalício Mendes
Trabalhai, não pela comida que
perece,
mas pela comida que permanece para a
vida eterna,
a qual o Filho do homem vos dará:
porque sobre ele Imprimiu o selo do
Pai, que é Deus.”
Jesus (João 6:27)
Deixando em nossos corações o rastro
indestrutível da saudade, partiu Antônio
Wantuil de Freitas para a Espiritualidade, depois de haver dado ao mundo
sublime exemplo de amor e fidelidade ao Cristo
de Deus, no mandato que recebeu ao adotar a Doutrina codificada pelo
ilustre mestre Allan Kardec.
Homem inteligente, arguto, dinâmico,
possuía admirável acuidade mental e clarividência no trato com as criaturas humanas,
antecipando, não raro, as conclusões de fatos que mal se definiam aos seus
olhos. Não estamos dizendo que o nosso Wantuil
haja sido um profeta, no sentido vulgar do termo, mas, efetivamente, tinha
intuições que geralmente escapavam ao comum dos homens. Foi absolutamente
consciente do papel que deveria representar na vida terrena e intransigente
quanto aos deveres com Deus e Jesus. Habituou-se muito cedo ao trabalho
severo e aprendera que jamais se recupera o tempo perdido com inutilidades.
Assim, sempre encontrava um meio de valorizar o tempo, sem se desumanizar, sem
se negar ao contato e troca de ideias com outras
pessoas, ocasiões que considerava como pausas indispensáveis à reconquista da
energia despendida no labor estrênuo. Parecia que em sua mente lúcida estava
sempre aberta e iluminada a sentença do Mestre: "Meu pai trabalha até
agora, e eu trabalho também." (João, 5:17).
Muito lhe devemos pelo muito que recebemos
na amizade que nos uniu neste período encarnatório, e talvez jamais possamos
saldar esse débito. Todavia, onde quer que esteja, o Wantuil estará sempre disposto a nos conceder generosas moratórias,
seguindo os passos de Jesus na tolerância e na indulgência que levam ao perdão.
Grande espírita cristão, grande amigo!
Quiseram as circunstâncias que nos encontrássemos
ausente do Rio quando ele se desprendeu dos laços físicos, reingressando na
Senda dos Espíritos. Não lhe pudemos dar o adeus de corpo presente, mas, por
certo, ele já deve ter sentido a manifestação da nossa saudade através do
instrumento telecomunicativo da prece. A última
vez que nos faláramos, pelo telefone, ao perguntarmos por sua saúde,
respondera-nos, no tom discreto peculiar ao seu temperamento, que ia relativamente
bem. Não era homem de lamúrias. Compreendia a precariedade da vida terrena e
encarava o fatalismo biológico da morte como acontecimento verdadeiramente
natural, consoante o ponto de vista espírita.
Caráter franco, habitualmente comedido
no falar, Wantuil aprendera a divergir sem ferir, a dizer não, quando necessário,
sem machucar, sem magoar. Mas não iludia ninguém, não fazia promessas enganosas.
Como Helvetius, achava que a verdade
não pode ser nociva. Procedia, como se diz em nossa terra natal, minha e dele:
"mata a cobra e mostra o pau", quer dizer: sempre que era forçado a
discordar de uma ideia ou de uma proposta, explicava por que o fazia, pondo o
máximo de sinceridade em seus argumentos. A sua autoridade pessoal consolidou-se
porque jamais pisou o terreno falso do farisaísmo. Por mais desfavoráveis que fossem
as situações, mantinha o ânimo sereno e forte, contagiando os que o cercavam.
Era bom sem ser piegas e a sua justiça
se baseava nos Evangelhos, convencido de que a fraqueza humana decresce de
intensidade e pode até anular-se, quando escorada pelo Alto. Naturalmente
modesto, cordial e humilde, buscava nos Evangelhos e na prece os esclarecimentos
de que necessitava nos momentos de aguda crise, em face de problemas angustiantes.
Jamais quebrou a linha de austeridade que vem sendo apanágio dos dirigentes da Casa de Ismael. A Federação Espírita
Brasileira foi a "menina dos seus olhos", o coração de sua alma de
lúcido cultor do Espiritismo cristão. Podemos situá-lo, sem exagero e sem que
nossas palavras
sejam suspeitas, em virtude da longa e sólida amizade que nos ligava, entre os
maiores Presidentes que já passaram pelo Templo de Ismael.
Trabalhou, trabalhou muito, trabalhou
sempre, sem horas limitadas para os parcos lazeres que conheceu. Deve ter guardado
na memória esta frase dos Espíritos em a "Revelação da Revelação", que
devemos à fé e à pertinácia de Roustaing:
"A
oração agradável a Deus é o trabalho: trabalho da inteligência, trabalho do
corpo. Cada um de vós deve trabalhar conforme à tarefa que lhe está confiada.
Cada um de vós deve, pois, orar continuamente. Trabalhai, eis a oração; vigiai,
isto é, garanti-vos, exercendo constante vigilância sobre vós mesmos. Assim, vossa carne se tornará forte e não mais temereis
a tentação. VIGIAI E ORAl, irmãos nossos. O Mestre conta convosco."
E o Mestre deve estar satisfeito com
o servo diligente e responsável, que fez quanto podia para corresponder à sua confiança.
Os que conheceram de perto a Antônio
Wantuil de Freitas sabem que estamos sendo justo ao relembrar-Ihe o vulto
do companheiro valoroso, do administrador probo, vigilante e esclarecido. Nunca
transferiu a ninguém suas responsabilidades. Pelo contrário. Fez-se solidário,
não poucas vezes, com as responsabilidades de outros, dando sua colaboração constante
para preservá-los. Procedia, portanto,
como um espírita cristão, solícito no aplacar as atribulações dos que a ele
recorriam, buscando as luzes da sua experiência e dos seus conhecimentos.
Ao sentir-se acuado por questões difíceis,
concentrava-se e orava. Punha-se, em seguida, a analisar os assuntos, ponto por
ponto, e, finalmente, tomava a decisão definitiva, quando tudo parecia sugerir
o contrário do que iria fazer. Disso fomos testemunha e vimos os nossos temores
se esboroarem diante da sua segura determinação. Foi um lutador, na boa acepção
do termo.
Relacionar-lhe toda a obra seria estender
demais este artigo. Citemos, contudo, o importante papel que representou na
edificação e conclusão do Pacto Áureo,
sonho de Bezerra de Menezes,
destinado a unificar
a família espírita do Brasil; os esforços gigantescos que desenvolveu, em 1944, no chamado "Caso Humberto de Campos", que teve
extraordinária repercussão, dentro e fora do nosso País, e o qual terminou
favoravelmente à Federação Espírita Brasileira, amparada pelas forças
espirituais e defendida, nos Tribunais, pelo culto e respeitável confrade Dr. Miguel Timponi, além da valiosa
colaboração de outros abnegados correligionários,
em vários setores de ação. Era preciso, porém, que a têmpera espirítico-eristã
de Wantuil de Freitas fosse
submetida a outra prova dificílima. Em 1945, o Espiritismo começou a sofrer restrições
cada vez maiores, inclusive perseguições a espíritas e instituições espíritas. Wantuil, com o tato admirável que nunca
lhe faltou, procurou ter entendimentos com altas autoridades da República e a
verdade foi a duras penas restabelecida, como restabelecida foi também a
liberdade que a Constituição assegura a todas as religiões.
Lembremos também o desenvolvimento
do Departamento Editorial, organização sem similar no Espiritismo brasileiro e
estrangeiro. Recordemos o lançamento dos selos espíritas, apesar de todos os
obstáculos criados pela ação da intolerância e do desamor à harmonia.
Quanto lhe deve o Espiritismo! Quanto
lhe devemos nós, partícipes da sua laboriosa vida doutrinária! Na pálida
homenagem que tentamos prestar a esse grande companheiro do Espiritismo brasileiro,
pomos nela todo o espírito de justiça que se faz imprescindível. Iríamos longe,
muito longe, se esmiuçássemos o trabalho de Wantuil de Freitas, como, por exemplo, a campanha acirrada de
alguns poucos irmãos mal esclarecidos contra Roustaing, querendo negar à FEB o direito de respeitar o legado de
Bezerra de Menezes e sua inspirada determinação de estabelecer, na Casa de
Ismael, o estudo regular de "Os Quatro Evangelhos", como o faz com as
obras da Codificação Kardequiana.
Cercado de companheiros leais, imbuídos
da mesma disposição, pôde ele levar a bom termo as tarefas que se impôs.
Em 1969, ponderara aos que iam decidir
a renovação da Diretoria que se sentia enfermo e exausto. Compreendia que a FEB
crescera muito e exigia dele e de todos uma soma progressivamente maior de
atividade. Era tempo, afirmava, de passar o bastão de comando, para que os
altos interesses da FEB não sofressem nenhuma intermitência. Mesmo assim, foi
reeleito. Não pudera vencer o ponto de vista dos que insistiam em sua continuação.
Mas, em 1970, suas condições físicas pioraram e só a energia do seu espírito
permitira que se desincumbisse dos deveres multiplicados. Antes da Assembleia,
reafirmou a resolução de afastar-se, com palavras que significavam mais ou menos
isto: "Se vocês querem bem à Federação, não me reelejam desta vez. Fiz o
que pude. Estou doente, sem condições para continuar dando à FEB o que ela precisa.
Não é justo que me reconduzam à Presidência, comprometendo as necessidades da
Casa de Ismael."
E fomos todos para a Assembleia conformados
com a decisão do devotado Wantuil,
certos, porém, de que do Alto viria, como veio, a solução que mais conviesse
aos interesses do Espiritismo brasileiro. Isto aconteceu em 22 de agosto de 1970.
Cessou, nessa data, a sua participação administrativa na FEB, começada em agosto de 1936, quando assumira a Gerência do "Reformador".
Entretanto, não se admita sequer que Wantuil
se tenha desligado mentalmente da Federação. Acompanhava com carinhoso
interesse a nova fase, iniciada por seu discípulo Armando de Oliveira Assis, que, durante mais de vinte anos, seguia-lhe
os passos, como vice-presidente
da FEB. Mantinha-se atualizado quanto ao movimento espírita, ao ser derrubado
pela enfermidade que determinou a sua libertação da carne.
Aí está, em relatos superficiais,
sem roteiro cronológico, algo desse espírita extraordinário, desse companheiro
que, simples e
humilde, apesar do seu grande valor, marcou uma época invulgar no Espiritismo
brasileiro. Não obstante os pesados encargos que absorviam o tempo de que
dispunha, ainda "fabricava" algum tempo para escrever e publicar
artigos no "Reformador",
sob pseudônimos, e algumas obras de magnífico conteúdo doutrinário e
evangélico, em português escorreito, em linguagem simples e acessível a todos
os níveis de instrução, como "Ciência, Religião e
Fanatismo", "Os Milagres de Jesus" e "Síntese do Novo Testamento".
Esta última, então, de manifesta utilidade para os estudiosos dos Evangelhos,
contém valioso índice por versículos e o resumo de todas as passagens
das Escrituras Sagradas, dos ensinamentos deixados por Jesus. E, acrescentemos,
sempre fiel a escrupuloso critério ético. São dele as seguintes palavras, ao
terminar o preâmbulo da obra citada: "O Novo Testamento, revelação
divina por instrumentos humanos, quais o foram os seus autores, apresenta-nos
muitos degraus da revelação e conhecimento, somente acessíveis pela evolução
com o tempo e pela iluminação com o esforço próprio; uma só LUZ - em filtros
diversos." E a
assinatura, que é um testemunho da sua personalidade verdadeiramente humilde,
embora dinâmica e fecunda: Mínimus.
Que o dileto amigo, hoje ao lado de outros
grandes trabalhadores do Espiritismo cristão, na vida imaterial, como Bezerra, Bittencourt Sampaio, Sayão,
Pedro Richard, Cirne, Quintão, Guillon, Paiva Júnior, Ismael Gomes
Braga, Fred. Figner, Ignácio Bittencourt, José Augusto Romero e tantos outros,
recomece lá o trabalho
redentor que o fez digno do salário recebido, pois, na Terra, cumpriu conscientemente
sua missão e em nenhum
momento tirou a mão do arado nem olhou para trás; nunca depôs no chão a enxada,
quando a terra adusta e endurecida
exigia mais esforço, mais paciência, mais tenacidade, menos repouso. E foi
assim que o eito ingrato, umedecido
pelo bendito suor do trabalho, foi sendo transformado em leiras férteis e produtivas.
A obra que deixou aqui é imperecível
pelo exemplo de como se pode servir a Deus e ao Cristo, plantando o bem, colhendo
o bem, distribuindo o bem!
Prece
– II
Mínimus (A. Wantuil de Freitas)
Minha vida,
Senhor, é toda sofrimento
Desde
quando te vi, no Cedron da Judéia.
Muitas
vidas já tive aqui na Terra, um cento
Talvez, e
longe estou da verdadeira aleia.
Cada vez
que aqui volto, eu trago um só desejo:
Transformar
o meu "ego" e seguir-te as pegadas.
E ao voltar
para o Espaço, eu tristemente vejo
Tantas
leis, meu Jesus, que deixei desprezadas.
E se não
fora a luz, que me vai melhorando,
Essa dor
que aconselha, e me fala, e me inspira,
Certamente
outro crime, e talvez mais nefando,
Retardasse
o teu Malco e lhe partisse a lira,
Onde canto
essa dor que me vem ajudando
A seguir
para a frente, a te ter como mira!
(Extraído
do livro "Os Milagres da Jesus", pág. 6, 2ª ed. FEB, 1952.)