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José de Anchieta
1553 – 13 de Julho – 1953
por Almerindo Martins de Castro
in ‘Reformador’ (FEB) Agosto 1953
Em 1578, o provincial da Companhia o
levou, por insistência, à Bahia, centro mor da Ordem, onde alguns padre ciosos
das boas aparências e do prestígio social que o Colégio dali conseguira, em
evidência e brilho, não podiam acolher com agrado aquela figura minúscula e
desgraciosa, com a sua batina poída.
O padre que o recebeu, ao olhá-lo,
pensou: Que irá fazer esse camarada aqui ? Anchieta, mediunicamente, ouviu o
pensamento do outro, e, abraçando-o, a rir, respondeu: "Você tem razão, meu irmão; de que valho eu, com esta cara
e este corpo?”
Foi nomeado reitor, mas o Colégio
apelou para o tipo desfavorável do escolhido, e Anchieta, ue não desejava
postos de comando, rumou para a Ilha de
Itaparica, na função de simples missionário. O provincial, porém, não se
conformou, e ordenou-lhe regressasse à Capital, e, em presença toda a Comunidade,
Ihe transferiu os poderes de provincial, ficando assim sob a autoridade do
humilde e grandioso corcunda, a jurisdição da Ordem dos Jesuítas no Brasil, desde
Olinda (Pernambuco) ao Tietê (S. Paulo).
E não houve administração mais séria,
nem de maior valor, isso até 1585, quando a saúde não lhe permitiu atender às
obrigações de tão espinhoso cargo, e regressou ao Rio de Janeiro, de – fundador de onde foi mandado repousar na
aldeia de Reritiba, no Espírito Santo. Mas, ainda assim, trabalhou, ensinando e
escrevendo, e dali mais uma vez o tiraram, em grande estado de debilidade, para
regressar à Vila, onde, o superior dizia necessitar dos seus conselhos e
labores. E não podiam os contemporâneos prescindir de, tal colaboração.
Os feitos da sua mediunidade, em
todos os sentidos, em chamados milagres, davam-lhe fama em qualquer dos pontos
onde podiam chegar, notícias da sua personalidade, e os próprios índios, mesmo
os que não o conheciam, nem haviam assistido aos seus prodígios, tinham por grande
respeito e consideravam-no enviado do céu, um pajé - como chamavam os profetas,
profetas da tribo - mas superior a estes
- ,o pajé maior - que
os dos índios não eram capazes de realizar ou predizer.
Essa admiração e quase culto, essa
influência dominadora de almas, aliada ao efeito da palavra evangelizadora e
aos encantos das cerimônias rituais, tiveram grande fundamento na austeridade
casta de José de Anchieta, apanágio da sua mediunidade altíssima. Era do uso
nas tribos o pajé oferecer aos hóspedes ilustres as mais formosas donzelas, às vezes, as próprias filhas. E Anchieta sempre as
recusou, explicando que a sua missão ali era mostrar os poderes de Deus, sem se
fundir em: gozos, deixando, por isso, pasmos os selvícolas, que não podiam compreender
essa força espiritual que galvanizava a natureza animal que vive em cada
criatura humana.
E tinham razão; porque, ainda hoje;
fora do conhecimento seguro das forças espirituais, é difícil compreender que um
homem, no vigor, pleno da sua mocidade, rodeado de grosseiras cenas excitantes, de amores clandestinos, até
por parte de padres, enfrentando mulheres todas nuas, atuado pelo ambiente tropical
da terra, resistisse; impávido, inacessível a pensamentos materialões, conservando
sempre a fronte mergulhada nas fronteiras da espiritualidade.
Mas, a afanosa existência nem sempre
lhe foi de serenidades espirituais, porque as lutas entre as tribos rivais, não
raro equipadas e dirigidas por estrangeiros, que pretendiam o domínio colonial
exercido pelos Portugueses, muito e muito o angustiavam além da escravidão dos
índios, largamente praticada, com acréscimo de torturas e dizimação. E isso
porque a sua insondável piedade também fulgia para os sofredores, e o
testemunho ele nos legou, ao fundar humilde abrigo para enfermos, o qual com o
decurso do tempo, se transformou no que hoje se chama -- Santa Casa da Misericórdia,
onde uma estátua lhe perpetua a memória de - fundador.
A sua abnegação ao serviço da paz e
da fraternidade dos selvícolas o levou muitas, vezes a intermediar
entendimentos no sentido de extinguir as rivalidades, os ódios pueris, as intrigas
insidiosas que faziam dos índios – todos Brasileiros - inimigos mútuos e
permanentes.
Dessas verdadeiras missões devia
ficar perpetuada na memória do futuro a que exerceu na ilha de, Iperoig, onde
ficou, sozinho, na qualidade de refém, em garantia de pazes, de cuja sinceridade
e conclusão os índios duvidavam. Foi então que, sobrepondo o seu Espírito aos
perigos, inclusive ,ameaça de morte que lhe fizeram, eclodiu em lavas de luz o
vulcão de primores do seu gênio, que ainda não tivera chegado tempo de entrar
em erupção
Passeando nas desertas praias, começou
a compor esse monumento de poesia religiosa, que dedicou à Virgem Maria - De
Beata Virgine - constituído de
5.700 versos. Sem papel, nem tinta, nem elemento que lhe permitisse escrever, ele,
o excelso médium, para esculpir Indeléveis na memória, com auxílio de uma haste
traçava os versos na areia da praia, e assim os fixava na prodigiosa retentiva
mental, até que,' restituído à
convivência do seu cubículo, os pudesse legar definitivos à posteridade.
Assombra, atoniza, a extensão
erudita desse Espírito. Exilou-se adolescente da Europa; viveu, até encanecer,
num rude labor nas selvas; separou-se das bibliotecas e das leituras; mas., o
seu estupendo poema, que é a vida de Maria e do Cristo, evocando a Bíblia, revela
profundo e seguro conhecimento dos clássicos religiosos e dos monumentos
poéticos de então, inclusive Ovídio, e Virgílio, sem esquecer, delicadíssimas
composições poéticas que escreveu, em castelhano, reveladoras do seu engenho
literário embora ungido do quase exclusivismo religioso.
No grande firmamento da vida
Brasileira, José de Anchieta foi uma aurora boreal do pensamento, polarizando
os átomos luminosos da divindade, para iluminar, na madrugada da nova Pátria, a
treva espiritual daqueles índios inscientes da Verdade.
Ele construiu, ao término da
jornada, a grande escadaria, subindo e argamassando, um a um, os degraus da
ascese, para, do cimo, contemplar a estrada percorrida. E a incoercível poeira destruidora,
que os séculos acumulam sobre os monumentos do passado, soterrou a lembrança e
os feitos desse grande e nobre taumaturgo, até que, escavando os lençóis de
esquecimento estratificados sobre a memória dos verdadeiros fundadores do
Brasil civilizado, possível for avistar, no ápice em que adormeceram esses
alicerçadores, a sombra imortal desse médium ímpar, que, dando ao chão
Brasileiro apenas o frágil corpo, legou à História Pátria os testemunhos de que Deus mandou ao solo dos
Guaranis um emissário para gravar nas
almas dos primitivos filhos desta terra a trilogia do seu futuro: Deus – Pátria – Família.
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