03/03 Docetismo
Prendendo-se, frequentemente, à
imprescindível necessidade do sofrimento material, carnal, de Jesus, os
contraditores dos docetas esqueciam-se do inenarrável sofrimento moral ou
espiritual do Mestre. Ainda mesmo que o Cristo nada sofresse dos homens,
bastaria, para nos remirmos, a sua vinda ao abismo escuro da minúscula
Terra, com todas as angústias que essa vinda deveria acarretar-lhe ao Espírito,
a fim de trazer-nos a sua palavra iluminada.
Atualmente, os espíritas, estudantes
da Terceira Revelação, aceitamos, por bem provável, o sofrimento material de
Jesus, visto que este, possuindo um envoltório fluídico condensado (se assim
nos permitem exprimir), e portanto matéria em si, se tornava, por conseguinte,
suscetível aos choques da matéria.
É bom não esquecermos de que tal
matéria condensada é tão sensível que, ao ser tocado um Espírito materializado,
sem a permissão deste, nas sessões de experimentação, comumente a ação se
reflete dele para o médium, que a sofre intensamente;
assim, pois, podemos asseverar que tal matéria é sensível, sensibilíssima
mesmo.
Ao contrário dessas materializações
«artificiais», de laboratório, em geral imperfeitas e dificultosas, cumpre
refletir atentamente sobre as aparições espontâneas, perfeitíssimas, quase
diríamos carnais, distintas mesmo daquelas outras, e em tudo nenhuma relação
parecendo mostrar com determinados médiuns, antes nos deixando supor a completa
independência de sua formação, inclinando-nos a admitir que elas, as aparições,
apenas se utilizaram dos recursos extraídos da Natureza.
Nestes últimos «fantasmas», a que
chamamos agêneres, é admissível que os choques materiais, por eles recebidos,
não se reflitam no exterior, qual se verifica com os Espíritos materializados
em nossas sessões, os quais, quando o permitem, se deixam tocar pelos
circunstantes vivos, sem isso trazer qualquer perturbação ao médium. Assim, se
o Espírito materializado pode conservar em si mesmo a ação do choque, é
admissível e lógico que o agênere igualmente poderá sentir o choque, sem o
transmitir. Dessa forma, não vemos por onde negar a príorí que os seres
fluídicos (agêneres) sejam insensíveis à dor[1].
Em vários dos chamados «livros
apócrifos», encontram-se ideias docetistas. Antes de mencioná-Ios, vejamos a
significação precisa da denominação que Ihes foi dada.
O Protestantismo considerava
apócrifos os chamados deuterocanônicos do Catolicismo. Os católicos reservam o
nome - apócrifos - aos escritos que a Igreja rejeita do cânon ou catálogo
público das Escrituras, por neles se
encontrarem «coisas corrompidas» e contrárias à verdadeira fé (católica, é
claro!). Existem, ainda, os apócrifos
cujo motivo de exclusão do cânon é desconhecido. Tais livros, dizem mais, dados
por seu título ou teor como
obra de autores inspirados, não podem ser justificados neste sentido, ainda que
sejam admitidos como
inspirados por algumas Igrejas particulares ou por heterodoxos. A bem dizer,
nem todas essas obras foram impugnadas por alguns dos venerandos Padres e
Doutores da Igreja, que as consideravam ligadas à inspiração divina.
Comentando esses apócrifos, disse
Orígenes: “De modo geral, não devemos rejeitar em bloco tais obras, das quais
podemos extrair alguma utilidade para esclarecimento de nossas Escrituras.
Demonstra tal proceder a ausência de um espírito sábio em compreender e aplicar
o preceito divino: Provai tudo e retende o que é bom.”
Foi num concílio realizado no século
V, em Roma, que parece ter sido decretado, pela primeira vez, sob o papado de
S. Gelásio I, um catálogo de livros canônicos, cuja compilação definitiva
crê-se ter sido terminada no começo do século VI. Esse papa, já possuído da
«heresia da dominação», na expressão de Arnaud, perseguiu os maniqueus na
cidade de Roma, expulsando-os e queimando seus livros.
Os deuterocanônicos, obras que por
muitos séculos foram postas em dúvida quanto à sua autenticidade, surgindo
mesmo discussões entre os Teólogos e entre os Padres da Igreja, receberam, mais tarde, a
sua inclusão no cânon, por conseguinte após as obras já nele existentes, e daí
a origem de sua denominação de deuterocanônicos. Entre muitas delas, temos as
seguintes: o livro de Tobias; o de Judite; o Eclesiastes; as Epístolas de
Pedro; a Epístola aos Hebreus; a 2' Epístola de João; o Apocalipse de João,
etc.
Antes dessa época, os Evangelhos e
os Atos apócrifos eram largamente espalhados e consultados entre os
cristãos.
Na Epístola de Barnabé (apócrifa),
obra considerada autêntica por Orígenes e S. Clemente de Alexandria, no
versículo 12, há: "O Senhor diz que a influência da carne dele é deles." Parece
aí haver uma idéia docética, como pensa Harnack, se bem que outros não aceitem
o mesmo.
Serapião de Antioquia proibiu a
leitura do Evangelho de Pedro, na suspeita de nele haver corruptelas por parte
dos docetas, talvez por conter o versículo 10 uma referência a Jesus, na cruz,
nos seguintes termos: "Mas ele
permaneceu mudo, como alguém que não sente dor alguma."
Exceto os Atos de Paulo, todos os demais Atos apócrifos - dizem os ortodoxos
- encerram mais ou menos idéias docetistas. Alguns desses foram reunidos numa
coleção, na segunda metade do século II, por Leucius Charinus que, segundo
Santo Epifânio, bispo de Constância, fora um discípulo de João, o Evangelista,
e tal coleção foi ainda assinalada pelo bispo de Astorga, no século IV.
Nos Atos de João conta-se que, na Última Ceia, João, o apóstolo,
encostando-se ao peito do Cristo, sentiu-o não
resistente; ao ser sepultado, o corpo de Jesus estava por algum momento
aparentemente sólido, e logo em seguida ele se tornou «imaterial e incorpóreo
como se nada fosse». Ainda os mesmos Atos dizem que a crucificação foi somente
em aparência, e que o Cristo apareceu a João, no Monte das Oliveiras, e lhe
explicou o fato.
Os Atos de Pedro relatam que Deus enviou seu Filho "através da virgem
Maria". Considerando aparente a Paixão, diz que "o sofrimento que se manifestou
na Paixão do Cristo foi totalmente diferente do que em geral se supõe".
Os Atos de André relatam que Jesus é "imaterial, puro, imponderável",
etc ...
Nos Atos de Tomé, frequentemente é evidenciada a antítese entre matéria
e espírito, de sorte que a expressão neles existente - "Jesus é espírito" parece conter uma ideia de fundo docético. S. Cirilo de Jerusalém, referindo-se
ao termo espírito, diz que, de um
modo geral, assim se denominava todo aquele que não possuía um corpo pesado e
denso.
Um ilustre sacerdote de Letchworth
(Inglaterra), estudioso de tal assunto, observa que, fora esses pontos, de
resto todas essas obras apócrifas falam de Jesus muito semelhantemente aos
livros canônicos, convindo, entretanto, frisa ele, «sejam lidas somente nos
círculos ortodoxos, não devendo parar em outras mãos, por causa de sua
tendência herética».
O nome geral de docetas foi dado a
representantes de várias seitas, aos discípulos de Simão, de Menandro, de
Saturnino, de Basílide, de Valentim, de Dositeo (discípulo de João, o
Evangelista) etc., visto que todos eles concordavam na mesma ideia a respeito
do corpo de Jesus, ainda que estivessem divididos sobre vários pontos de
doutrina.
Basílide, morto no ano 130, redigiu
um comentário sobre o Evangelho, primeira obra desse gênero de que se tem
conhecimento. Esposava ele ideias interessantes com relação ao porquê do
sofrimento da Humanidade terrena. Dizia, então, que o homem sofre neste mundo
porque sua alma pecou em vida anterior à sua atual união com o corpo, sendo
essa união um estado de expiação de que ela somente sairia depois de se haver
purificado em passando sucessivamente de corpo em corpo, até o cumprimento da
justiça divina, que não dava outros castigos, mas que, contudo, não perdoava
senão as faltas involuntárias. Era esta ideia reencarnacionista, clara,
consoladora, que, anexada à teoria do corpo “aparente” de Jesus, recebia
igualmente a pecha de heresia.
Simão, o Mago, que se acredita ter
sido aquele citado nos Atos dos Apóstolos, disse que Jesus viera entre os
homens como um homem, se bem que não fosse de forma alguma um homem.
No século H, Valentim, Bardesana,
Apeles, Marinus e outros admitiam o corpo do Cristo, embora fosse um corpo
espiritualizado, depurado, e que somente passou através de sua mãe, mas não foi
formado por ela. Valentim
ensinava que Jesus possuía um corpo «psíquico», especial, não sujeito à destruição
e às leis normais da matéria. Nasceu de Maria, passando através dela, que
permaneceu virgem, como a água passa através de um conduto, sem nada receber ou
modificar, visto já possuir ele um corpo «lá em cima». Valentim afirmava ter
recebido esta doutrina de um discípulo de Paulo.
Heracleon, discípulo de Valentim,
escreveu comentários sobre os Evangelhos de Lucas e de João. O comentário a
respeito deste último era bem conhecido de Orígenes que, se bem não concordasse
inteiramente com a exegese de Heracleon, considerava-a, pelo menos, com
respeito.
Bardesana, tido pelos Padres de sua
época como homem cheio de talentos e virtudes, negara a ressurreição carnal.
Reconhecia a imortalidade da alma, a onipotência e providência de Deus, e dizia
que Jesus tivera um corpo espiritual. Parece haver crido na existência de
satanás ou do demônio, que não era, porém, criatura de Deus, nem administrava
parte alguma do mundo. Buscava Bardesana essa saída para poder explicar a
origem do mal, que de Deus não poderia resultar. Para ele, o mundo e o homem
foram criados por Deus, mas o homem, no princípio, não era um ser revestido de
carne e, sim, uma alma unida a um corpo sutil e conforme à sua natureza. Essa
era, pois, a alma que fora formada à imagem de Deus e que, enganada pelas
astúcias do demônio, havia transgredido as leis do mesmo Deus, o que obrigara o
Criador a expulsá-Ia do paraíso e a ligá-Ia a um corpo carnal, uma espécie de
prisão, que Bardesana dizia serem as túnicas de pele com que Deus havia coberto
Adão e Eva, depois do pecado.
Malgrado essas ideias estarem
eivadas dos sentimentos e da compreensão vigentes naquela época, são elas
merecedoras de acatamento.
Judiciosamente, em conclusão à
doutrina esposada, Bardesana diz que a união a um corpo carnal é, pois, consequência
do mesmo pecado e, em vista disso, Jesus, espírito puro, imaculado, não poderia
ter tomado um corpo carnal. Igualmente, prosseguia ele, devido ao mesmo
princípio, não ressuscitaremos com o mesmo corpo que temos sobre a Terra, mas,
sim, com um corpo sutil e celeste, que deve ser a habitação normal de uma alma
pura e inocente.
Harmonius, filho de Bardesana, mais
claramente que o pai afirmou a reencarnação. Marinus prosseguiu com o ensino
dessas doutrinas.
Segundo Apeles, Jesus realmente não
nasceu da virgem Maria; todavia, não se manifestou sem um corpo real. Dizia, então,
que Jesus, servindo-se do material das estrelas e "das mais altas substâncias
da Natureza", compôs um corpo e nele habitou durante todo o tempo que passou
neste mundo. Ressurgido depois de três dias, mostrou aos discípulos as marcas
das mãos e o lado, a fim de convencê-los de que era ele mesmo em pessoa, em
carne e osso, e não um fantasma - prossegue Apeles, argumentando. Após
aparecer, durante quarenta dias, com essa carne, o Cristo, tendo rompido o laço
que o prendia a semelhante corpo, restituiu a cada um dos elementos aquilo que
lhes pertencia, retirando-se, em seguida, para o Pai. Assim fazendo, ele não
quis conservar nada de estranho, pois apenas se servira daquela carne,
momentaneamente, enquanto dela tinha necessidade.
Em verdade, Apeles teve razão ao
considerar o corpo de Jesus uma verdadeira carne e esta é a mesma impressão
que temos com os Espíritos materializados, que às vezes se nos apresentam
perfeita e legitimamente «carnais».
Marinus e outros, seguindo a
Bardesana, diziam que o Cristo possuíra um corpo "celeste", "astral", não
tendo, pois, nascido de mulher.
O docetismo radical, de que nos fala
o teólogo protestante Harnack, negava toda a realidade do corpo de Jesus; este
não nascera absolutamente em nenhum sentido, e durante toda a sua vida humana
foi um perfeito fantasma.
Embora Saturnino e Cerdo, os mais
radicais, tenham aventado tais ideias, estas, bem analisadas, tinham razão de
ser, pois Jesus não passara pelo nascimento normal na Terra e o seu corpo
participara dos caracteres de um "corpo fantasma".
Saturnino, gnóstico do século I,
dizia, segundo Santo Ireneu, que o Salvador não foi nascido, foi incorpóreo,
sem matéria real, sine figura, assemelhando-se a um homem aos olhos da
Humanidade.
Antes de continuarmos, devemos
lembrar aos leitores que a maior parte das questões em estudo não provém dos
escritos dos docetas, escritos que, embora produzidos, ou se perderam ou
sofreram a destruição. Quase tudo o que relatamos nos foi legado por alguns dos
primeiros Pais da Igreja (Inácio, Ireneu, Tertuliano, Hipólito, Epifânio, etc.)
que se insurgiram contra tais ideias, e, assim, é bem provável que eles tenham,
consciente ou inconscientemente, deturpado, algumas vezes, o sentido oculto do
pensamento dos docetas.
Cerdo (ou Cerdon) explicava que o "Cristo, o Filho do Deus Altíssimo, manifestou-se sem nascer de Maria, ou seja,
sem nenhum nascimento na Terra à semelhança dos homens".
Para Marcion, zeloso cristão, Jesus
não fora, de maneira alguma, um homem, pois não tinha um corpo real; apareceu,
ao contrário, “sob a semelhança de um homem” (Epístola aos Filipenses, 2 :7). E
diz ainda: “O Cristo pareceu sofrer e ser sepultado.” Há também referências
sobre Marcion em que este se baseia em Mateus, 12:48, na Epístola aos Romanos, 8
:3, além de outras passagens, em apoio do Docetismo.
Contra Marcion escreveu Tertuliano,
para provar que o Cristo não teve um “corpo fantástico”, embora este Padre acreditasse que os anjos possuem um
corpo que lhes é próprio, passível de se transfigurar em carne humana,
tornando-se, por algum tempo, perceptíveis aos homens, e com estes podendo
manter relações visíveis.
Ptolomeu, gnóstico cristão da escola
de Valentim, de meados do século II, foi dos que mais circunscreveram as ideias
docetistas. Dizia que o Cristo fora, de fato, um homem real, porém a sua
substância ou natureza era apenas composta dos elementos psíquico e pneumático,
isto é, do perispírito e do espírito propriamente dito, como hoje diríamos.
O elemento psíquico, mesmo entre os
filósofos não materialistas, tinha o sentido de um elemento de natureza física
ou animal, formando como que o intermediário entre o espírito e o corpo, e
constituía o princípio imediato da vida. O pneuma constituía o sopro imortal, o
princípio espiritual da vida espiritual ou intelectiva. Ptolomeu dizia que a
natureza psíquica de Jesus permitiu-lhe sofrer e sentir dor, ainda que nada
possuísse de grosseiramente material.
Abstinham-se os docetas da
eucaristia, visto que não reconheciam representar a carne e o sangue de Jesus.
Os ofitas continuaram com as mesmas
ideias que, no século VI, foram retomadas por alguns eutiquianos e monofisitas.
O Monofisismo surgiu em princípios
do século III, amoldando-se às ideias apolinaristas (das quais trataremos mais
adiante). No século VI, sofreram os seus adeptos as mais cruéis perseguições,
sendo forçados a emigrar para o Egito. Nessa época, o Monofisismo dividiu-se em
duas seitas, pois Juliano, bispo de Halicarnasso,
discordando quanto à natureza do corpo de Jesus, afirmava, então, que era fazer
injúria à sua divindade
supor que o Verbo se unira a uma carne terrestre e corruptível como aquela dos
homens “animalizados”
e “mal-cheirosos”. O Cristo, em sua passagem pela Terra, tivera o seu corpo
sempre incorruptível, como aquele de Adão antes da queda, e igual àquele que os
outros o creem ter tomado após a ressurreição; foi sempre isento da corrupção e
das enfermidades, bem como da punição do pecado. Completando
os seus pensamentos, Juliano diz que, se o Cristo sofreu, o fez
voluntariamente, para salvar os homens, mas não por efeito de sua natureza. Os
que professavam esta doutrina foram chamados aftartodocetas,
em contraposição com os corruptícolas.
Procedendo do Egito, os incorruptícoIas
espalharam-se por várias regiões, tendo sido dominantes na Armênia.
O Maniqueísmo, que contém ideias
docéticas, surgido no século III, sofreu muitas perseguições, conseguindo,
contudo, espalhar-se pelo Oriente e pelo Ocidente, declinando somente no século
XII, devido à violenta oposição da Igreja.
Os maniqueus acreditavam na
reencarnação, por julgarem-na indispensável ao progresso do espírito humano,
visto que, alegavam eles, não é possível que todas as almas adquiram perfeita
pureza no decurso de uma única vida mortal.
As almas que persistem no pecado,
após certo número de revoluções, são
então entregues aos demônios do ar, para serem alimentadas e domadas. Depois
dessa dolorosa penitência, voltam as almas a outros corpos, como que para novas
escolas, até que, tendo adquirido o grau de purificação suficiente, se
transportam, atravessando a região da matéria, ao lugar a que os maniqueus
denominam «coluna da glória». O Espírito Santo, que está no ar, assiste
continuamente as almas, espalhando sobre elas suas preciosas influências.
O maniqueísta Fausto, entre outros,
descreve o corpo do Mestre como não sendo humano, mas, sim, formado de
elementos celestiais.
No século XII floresceu na França
meridional a seita neomaniqueana dos albigenses. Admitindo, como os cátaros, os
princípios antagônicos - o mau e o bom - diziam que Jesus não podia tomar um
corpo genuinamente humano, porque viria debaixo do controle do princípio mau.
Por conseguinte, seu corpo era de natureza celestial e com ele penetrou a
pessoa de Maria; nasceu dela e sofreu, apenas aparentemente.
Entendiam, ainda, que a redenção do
Mestre não foi “operativa”, mas unicamente instrutiva.
Inúmeros concílios católicos foram
realizados com o fim de dar combate à doutrina dos albigenses, a qual, todavia,
se propagava cada vez mais rapidamente. A convite do papa, organizaram-se
cruzadas militares sob os auspícios de alguns países, as quais desbarataram os
albigenses, cometendo as maiores atrocidades. A Inquisição, instituída para
esse fim, prosseguiu no bárbaro trabalho de limpeza, e conseguiu, no começo do
século XIV, o quase total desaparecimento dessa seita.
Além de outras diversas seitas que
encerravam ideias docéticas, alguns anabatistas foram docetas; Maomet, no
Alcorão, veladamente parece referir-se ao corpo de Jesus, e chega a dizer que
«Jesus, o filho de Maria, o Verbo e o Apóstolo de Deus, não foi crucificado
senão em aparência»; e o próprio Budismo, numa de suas seitas, apresentou, com
relação a Buda, tendência docética.
Só agora escreveremos sobre Apolinário,
visto que, ao que nos parece, suas ideias não interessam ao estudo a que nos
propomos, como veremos.
Alguns autores, ao tratarem do corpo
de Jesus, referiram-se às concepções apolinaristas no que estas dizem ter sido
impassível o corpo do Cristo, e que descera do céu ao seio da Virgem, mas que
não nascera dela.
Desejando comprovar a veracidade de
tais afirmações, encontramo-Ias, de fato, no Grande Dicionário Universal do
Século XIX, de Larousse, e em alguns outros dicionários talvez calcados nessa
obra, que, sucintamente, sem trazer qualquer relação bibliográfica, nos pareceu
ser a de que aqueles autores se serviram.
Entretanto, estudando a vIda e a
obra de Apolinário em outras Enciclopédias, teológicas ou não, que profusamente
se referiram a esse bispo, citando a redação dos anátemas proferidos contra a
sua doutrina, e com a apresentação final de extensa bibliografia, é
desconcertante dizer nada havermos encontrado a respeito daquelas questões
inseridas no “Larousse”. Infelizmente, por não possuirmos os livros indicados
nas bibliografias como referentes a Apolinário, não pudemos verIficar a
veracidade ou não da exposição oferecida pelo Grande Larousse. Esperamos,
todavia, que outro estudioso mais paciente e dedicado esclareça essa dúvida.
Apresentamos, pois, a síntese do
estudo que levamos a efeito:
Apolinário (o jovem), bispo de
Laodiceia, nascido talvez a 300, e falecido em 390 ou 392, era filho de ApoIinárío
(o antigo), com quem trabalhou na adaptação da Bíblia à literatura profana. Foi
mestre de S. Jerônimo, que se julgou diante dele, assim como de Orígenes e
outros Padres, “imperitíssimo comparado com eles”. Diz o autor da Vulgata que
Apolinário escreveu inúmeros volumes sobre a Sagrada Escritura e que os trinta
livros contra Porfírio foram muito admirados.
Apresentou ele refutações ao
Arianismo e ao Maniqueísmo, escreveu algumas obras em verso e fala-se de uma
versão poética da Bíblia, produzida, parece, somente por ele, sem o auxílio do
pai, como pensam alguns autores.
Sócrates, o Escolástico,
referindo-se a ele, disse: "foi um sábio em ciência". S. Basílio diz que "devido ter ele grande facilidade em escrever, sobre qualquer assunto,
conseguiu encher o mundo com seus livros".
Acredita-se ter sido 360 o ano em
que Apolinário iniciou o ensino de uma nova concepção a respeito da natureza do
Cristo. Sofrendo a oposição da Igreja, desta por fim se separou, surgindo assim
a seita dos apolinaristas.
Mesmo depois de seu afastamento dos
Pais ortodoxos, estes continuaram a tratá-Io com respeito e até com certa
afeição.
Santo Epifânio conta que ele
próprio, bem como Santo Atanásio e "todos os católicos", muito amaram o “ilustre
e venerável ancião Apolinário de Laodiceia”, e que, ao ouvirem falar de sua
heresia, não puderam acreditar que tão grande homem houvesse caído em
semeIhante erro.
O Sínodo de Alexandria (362) parece
ter conhecimento das ideais de Apolinário, rejeitando-as, não mencionando,
porém, o nome do autor. No Sínodo romano (374), foi Apolinário julgado herético
e condenado, não sendo, contudo, nominalmente incluído nos cânones. Outras
reuniões eclesiásticas condenaram a doutrina apolinarista. O Sínodo de
Antioquia (378) lança o anátema contra aqueles «que dizem que o Verbo de Deus
habitou na carne humana, em substituição à alma racional e inteligente». O papa
Dâmaso, no Concílio de Roma (380), lança idêntico anátema. O primeiro cânon do
Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) registra também a condenação.
Serviu-se Apolinário, para sua
concepção, dos três elementos componentes da natureza humana, segundo a Escola
neoplatônica, a saber: o corpo; a alma “anima animans”, princípio que
atua e informa o corpo, sendo Comum aos homens e aos animais, tornando-os em
seres vivos; e a mente ou espírito, agente do pensamento, da
razão, da consciência, da vontade livre, em síntese: a essência da
personalidade humana. Em apoio dessa divisão, citava passagens das Escrituras,
como por exemplo a «Primeira Epístola aos Tessalonicenses, 5 :23 – “e o vosso
espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis”. Desses
três elementos, o corpo e a alma
formavam o ser “natural” (a máquina, teria dito PIatão) controlado e guiado
pela razão ou espírito. Mas - comentava Apolinário - o espírito no homem é
transformável, falível, cheio de pecados inerentes à natureza humana e, por
isso, não deve tomar lugar no Cristo, o que tiraria o valor à Redenção.
Raciocinando ontológica e psicologicamente,
Apolinário criou, então, a doutrina que admitia, na pessoa do Cristo, o corpo humano
e a alma, mas não a mente racional humana. Esta é o Logos ou este lhe toma o
lugar, tornando-se, assim, o centro racional ou espiritual.
Atribuiu-se a Apolinário o haver
sustentado que a divindade (Logos) sofrera, morrera, etc.; porém, isto são mais
consequências tiradas dos princípios de Apolinário que propriamente opiniões do
bispo, comentam estudiosos católicos.
Baseando-se em algumas passagens do
Novo Testamento, para Apolinário foi Jesus realmente um ser de natureza humana,
por possuir alma e corpo, embora controlado e guiado pelo Espírito divino que lhe constituía
a natureza divina. O Cristo não foi, pois, um Homem-Deus e sim um ser
partilhando do homem e de Deus; nem inteiramente homem, nem inteiramente deus.
Os Padres ortodoxos contemporâneos,
rejeitando a teoria de Apolinário, não estão muito interessados, declara um
escritor eclesiástico, sobre a verdade ou a inverdade contida na exposição de
que a natureza humana consiste de três elementos, questão que foi levantada na
Idade Média, e que tem suscitado veementes discussões entre os teólogos. Os
primeiros contraditores do Apolinarismo escandalizaram-se principalmente com a
asserção de que ao Cristo faltou um elemento de completa natureza humana.
Diante de toda essa análise, podemos
concluir que Apolinário foi um trabalhador cristão, admirado por seus contemporâneos,
e que a sua doutrina; nada tendo a ver com a do corpo fluídico de Jesus, foi
fruto natural da época, quando diferentes ideias surgiam no afã de explicar a
tese católica da união divina à humana.
Dissemos acima que Apolinário
combateu o Arianismo, doutrina do presbítero Ário, apresentada no princípio do
século IV, contrária à da S. S. Trindade, e que chegou a abalar os alicerces do
Catolicismo dominante, que desapareceria se não fossem as lutas e perseguições
violentíssimas movidas contra os sectários da doutrina mencionada. Baseado nos
Evangelhos, Ário dizia que, se o Filho está subordinado ao Pai, não é, pois,
absolutamente Deus; não é consubstancial com o Pai, portanto não coeterno com
Este, não O igualando em dignidade e poder. Logo, Jesus não é eterno e sim,
concluía Ario, uma criatura gerada antes da criação do mundo por ato da vontade
de Deus, e deste não tem a mesma essência ou natureza, apesar de ser a criatura
tipo, a mais perfeita. Esta perfeição é tal - considerava Ário - que, para os
terrestres, Jesus poderia ser mesmo um Deus. A doutrina arianista reapareceu,
sob outros nomes, nos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como, em parte, qual a do
Docetismo, foi revelada, revivescida, pelos Espíritos que nos trouxeram a
Terceira Revelação.
Com a ânsia espontânea e nobre de
esclarecer a Humanidade, aqueles homens foram incompreendidos e passaram a
sofrer as perseguições dos que se sentiam com o privilégio da iluminação de
Mais Alto. Que esses exemplos de incompreensão cristã, do passado, não
revivesçam, perturbando a marcha evolutiva do pensamento humano. Os homens de
responsabilidade doutrinária deverão reconhecer a necessidade de nos
respeitarmos uns aos outros, lembrando-nos de que o livre-arbítrio, ou melhor,
a liberdade de crença é uma das maiores, senão a maior conquista do século, por
permitir a cada um procurar as
luzes que o auxiliem a vencer a jornada terrena e satisfaçam à inteligência e
ao raciocínio próprios.
O professor de Escritura Sagrada,
Arendzen, de uma das Universidades inglesas, num estudo do Docetismo, anota um
renascimento de idéias docéticas em círculos espiritistas, embora - diz ele -
menos fantásticas e extravagantes que as do passado. Sim, confirmamos nós
outros, a obra de Roustaing ressuscitou o pensamento fundamental do Docetismo -
o corpo fluídico de Jesus. Cumpriu, destarte, o Paracleto uma das facetas do
seu infindo programa esclarecedor, e, realmente, sem qualquer extravagância.
Ao deliberar a confecção deste
trabalho, assaltou-nos apenas o desejo de trazer uma explanação menos
imperfeita das ideias que se prendem ao Docetismo, visto que este termo é
encontrado em importantes obras espíritas e comumente é referido nas
conversações entre espiritistas.
Trabalho sem valor, já o sabemos;
todavia esperamos que outros, mais cultos e dispondo de obras cuja raridade
não nos ensejou um estudo mais profundo, possam melhor desenvolver o assunto,
trazendo-nos as luzes a que todos aspiramos.
BIBLIOGRAFIA
Grand Dictionnaire Universel du XIXe Siêcle - M. Pierre
Larousse.
La Grande Encyclopédie.
The Catholic Encyclopedia - Various editors.
Encyclopedia of Religion and Ethics - Edited by James Hastings.
Encyclopédie
Théologique - Publiée par M. L'Abbé Migne.
EncicLopedia
Universal Ilustrada.
Dictionnaire de Théologie Catholique - G. Barellle.
Philosophumena
ou Réfutation de toutes les hérésies – Hippolyte de Rome.
Dicionário
Universal das heresias, Erros e Cismas – Antônio Gomes Pereira
El Legado
de Egipto – Publicação da Universidade de Oxford.
Zêus
Wantuil
Apêndice sob título ‘Docetismo’
in
“Elos Doutrinários” (FEB) 3ª Ed 1978
[1] Por
outro lado, temos de refletir sobre os fatos hoje conhecidos da exteriorização
da sensibilidade e da sua anulação, como vemos nas práticas de hipnotismo. Com
seu ilimitado poder sobre a matéria e o magnetismo, mesmo que tivesse um corpo
material, gerado, Jesus poderia torna-lo insensível, como fazem hoje médicos e
dentistas em operações cirúrgicas. Portanto, o argumento que considera a dor
como condição necessária à missão de Jesus é inconsistente, como tantos outros
que pretendem igualar aquele Espírito sublime aos nossos de calcetas do pecado
e da dor. - I. G. B. (Do blog: I.G.B
= Ismael Gomes Braga)
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