sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

03/03 Docetismo


03/03 Docetismo

            Prendendo-se, frequentemente, à imprescindível necessidade do sofrimento material, carnal, de Jesus, os contraditores dos docetas esqueciam-se do inenarrável sofrimento moral ou espiritual do Mestre. Ainda mesmo que o Cristo nada sofresse dos homens, bastaria, para nos remirmos, a sua vinda ao abismo escuro da minúscula Terra, com todas as angústias que essa vinda deveria acarretar-lhe ao Espírito, a fim de trazer-nos a sua palavra iluminada.

            Atualmente, os espíritas, estudantes da Terceira Revelação, aceitamos, por bem provável, o sofrimento material de Jesus, visto que este, possuindo um envoltório fluídico condensado (se assim nos permitem exprimir), e portanto matéria em si, se tornava, por conseguinte, suscetível aos choques da matéria.

            É bom não esquecermos de que tal matéria condensada é tão sensível que, ao ser tocado um Espírito materializado, sem a permissão deste, nas sessões de experimentação, comumente a ação se reflete dele para o médium, que a sofre intensamente; assim, pois, podemos asseverar que tal matéria é sensível, sensibilíssima mesmo.

            Ao contrário dessas materializações «artificiais», de laboratório, em geral imperfeitas e dificultosas, cumpre refletir atentamente sobre as aparições espontâneas, perfeitíssimas, quase diríamos carnais, distintas mesmo daquelas outras, e em tudo nenhuma relação parecendo mostrar com determinados médiuns, antes nos deixando supor a completa independência de sua formação, inclinando-nos a admitir que elas, as aparições, apenas se utilizaram dos recursos extraídos da Natureza.

            Nestes últimos «fantasmas», a que chamamos agêneres, é admissível que os choques materiais, por eles recebidos, não se reflitam no exterior, qual se verifica com os Espíritos materializados em nossas sessões, os quais, quando o permitem, se deixam tocar pelos circunstantes vivos, sem isso trazer qualquer perturbação ao médium. Assim, se o Espírito materializado pode conservar em si mesmo a ação do choque, é admissível e lógico que o agênere igualmente poderá sentir o choque, sem o transmitir. Dessa forma, não vemos por onde negar a príorí que os seres fluídicos (agêneres) sejam insensíveis à dor[1].

            Em vários dos chamados «livros apócrifos», encontram-se ideias docetistas. Antes de mencioná-Ios, vejamos a significação precisa da denominação que Ihes foi dada.

            O Protestantismo considerava apócrifos os chamados deuterocanônicos do Catolicismo. Os católicos reservam o nome - apócrifos - aos escritos que a Igreja rejeita do cânon ou catálogo público das Escrituras, por neles se encontrarem «coisas corrompidas» e contrárias à verdadeira fé (católica, é claro!). Existem, ainda, os apócrifos cujo motivo de exclusão do cânon é desconhecido. Tais livros, dizem mais, dados por seu título ou teor como obra de autores inspirados, não podem ser justificados neste sentido, ainda que sejam admitidos como inspirados por algumas Igrejas particulares ou por heterodoxos. A bem dizer, nem todas essas obras foram impugnadas por alguns dos venerandos Padres e Doutores da Igreja, que as consideravam ligadas à inspiração divina.

            Comentando esses apócrifos, disse Orígenes: “De modo geral, não devemos rejeitar em bloco tais obras, das quais podemos extrair alguma utilidade para esclarecimento de nossas Escrituras. Demonstra tal proceder a ausência de um espírito sábio em compreender e aplicar o preceito divino: Provai tudo e retende o que é bom.”

            Foi num concílio realizado no século V, em Roma, que parece ter sido decretado, pela primeira vez, sob o papado de S. Gelásio I, um catálogo de livros canônicos, cuja compilação definitiva crê-se ter sido terminada no começo do século VI. Esse papa, já possuído da «heresia da dominação», na expressão de Arnaud, perseguiu os maniqueus na cidade de Roma, expulsando-os e queimando seus livros.

            Os deuterocanônicos, obras que por muitos séculos foram postas em dúvida quanto à sua autenticidade, surgindo mesmo discussões entre os Teólogos e entre os Padres da Igreja, receberam, mais tarde, a sua inclusão no cânon, por conseguinte após as obras já nele existentes, e daí a origem de sua denominação de deuterocanônicos. Entre muitas delas, temos as seguintes: o livro de Tobias; o de Judite; o Eclesiastes; as Epístolas de Pedro; a Epístola aos Hebreus; a 2' Epístola de João; o Apocalipse de João, etc.

            Antes dessa época, os Evangelhos e os Atos apócrifos eram largamente espalhados e consultados entre os cristãos.

            Na Epístola de Barnabé (apócrifa), obra considerada autêntica por Orígenes e S. Clemente de Alexandria, no versículo 12, há: "O Senhor diz que a influência da carne dele é deles." Parece aí haver uma idéia docética, como pensa Harnack, se bem que outros não aceitem o mesmo.

            Serapião de Antioquia proibiu a leitura do Evangelho de Pedro, na suspeita de nele haver corruptelas por parte dos docetas, talvez por conter o versículo 10 uma referência a Jesus, na cruz, nos seguintes termos: "Mas ele permaneceu mudo, como alguém que não sente dor alguma."

            Exceto os Atos de Paulo, todos os demais Atos apócrifos - dizem os ortodoxos - encerram mais ou menos idéias docetistas. Alguns desses foram reunidos numa coleção, na segunda metade do século II, por Leucius Charinus que, segundo Santo Epifânio, bispo de Constância, fora um discípulo de João, o Evangelista, e tal coleção foi ainda assinalada pelo bispo de Astorga, no século IV.

            Nos Atos de João conta-se que, na Última Ceia, João, o apóstolo, encostando-se ao peito do Cristo, sentiu-o não resistente; ao ser sepultado, o corpo de Jesus estava por algum momento aparentemente sólido, e logo em seguida ele se tornou «imaterial e incorpóreo como se nada fosse». Ainda os mesmos Atos dizem que a crucificação foi somente em aparência, e que o Cristo apareceu a João, no Monte das Oliveiras, e lhe explicou o fato.

            Os Atos de Pedro relatam que Deus enviou seu Filho "através da virgem Maria". Considerando aparente a Paixão, diz que "o sofrimento que se manifestou na Paixão do Cristo foi totalmente diferente do que em geral se supõe".

            Os Atos de André relatam que Jesus é "imaterial, puro, imponderável", etc ...

            Nos Atos de Tomé, frequentemente é evidenciada a antítese entre matéria e espírito, de sorte que a expressão neles existente - "Jesus é espírito" parece conter uma ideia de fundo docético. S. Cirilo de Jerusalém, referindo-se ao termo espírito, diz que, de um modo geral, assim se denominava todo aquele que não possuía um corpo pesado e denso.

            Um ilustre sacerdote de Letchworth (Inglaterra), estudioso de tal assunto, observa que, fora esses pontos, de resto todas essas obras apócrifas falam de Jesus muito semelhantemente aos livros canônicos, convindo, entretanto, frisa ele, «sejam lidas somente nos círculos ortodoxos, não devendo parar em outras mãos, por causa de sua tendência herética».

            O nome geral de docetas foi dado a representantes de várias seitas, aos discípulos de Simão, de Menandro, de Saturnino, de Basílide, de Valentim, de Dositeo (discípulo de João, o Evangelista) etc., visto que todos eles concordavam na mesma ideia a respeito do corpo de Jesus, ainda que estivessem divididos sobre vários pontos de doutrina.

            Basílide, morto no ano 130, redigiu um comentário sobre o Evangelho, primeira obra desse gênero de que se tem conhecimento. Esposava ele ideias interessantes com relação ao porquê do sofrimento da Humanidade terrena. Dizia, então, que o homem sofre neste mundo porque sua alma pecou em vida anterior à sua atual união com o corpo, sendo essa união um estado de expiação de que ela somente sairia depois de se haver purificado em passando sucessivamente de corpo em corpo, até o cumprimento da justiça divina, que não dava outros castigos, mas que, contudo, não perdoava senão as faltas involuntárias. Era esta ideia reencarnacionista, clara, consoladora, que, anexada à teoria do corpo “aparente” de Jesus, recebia igualmente a pecha de heresia.

            Simão, o Mago, que se acredita ter sido aquele citado nos Atos dos Apóstolos, disse que Jesus viera entre os homens como um homem, se bem que não fosse de forma alguma um homem.

            No século H, Valentim, Bardesana, Apeles, Marinus e outros admitiam o corpo do Cristo, embora fosse um corpo espiritualizado, depurado, e que somente passou através de sua mãe, mas não foi formado por ela. Valentim ensinava que Jesus possuía um corpo «psíquico», especial, não sujeito à destruição e às leis normais da matéria. Nasceu de Maria, passando através dela, que permaneceu virgem, como a água passa através de um conduto, sem nada receber ou modificar, visto já possuir ele um corpo «lá em cima». Valentim afirmava ter recebido esta doutrina de um discípulo de Paulo.

            Heracleon, discípulo de Valentim, escreveu comentários sobre os Evangelhos de Lucas e de João. O comentário a respeito deste último era bem conhecido de Orígenes que, se bem não concordasse inteiramente com a exegese de Heracleon, considerava-a, pelo menos, com respeito.

            Bardesana, tido pelos Padres de sua época como homem cheio de talentos e virtudes, negara a ressurreição carnal. Reconhecia a imortalidade da alma, a onipotência e providência de Deus, e dizia que Jesus tivera um corpo espiritual. Parece haver crido na existência de satanás ou do demônio, que não era, porém, criatura de Deus, nem administrava parte alguma do mundo. Buscava Bardesana essa saída para poder explicar a origem do mal, que de Deus não poderia resultar. Para ele, o mundo e o homem foram criados por Deus, mas o homem, no princípio, não era um ser revestido de carne e, sim, uma alma unida a um corpo sutil e conforme à sua natureza. Essa era, pois, a alma que fora formada à imagem de Deus e que, enganada pelas astúcias do demônio, havia transgredido as leis do mesmo Deus, o que obrigara o Criador a expulsá-Ia do paraíso e a ligá-Ia a um corpo carnal, uma espécie de prisão, que Bardesana dizia serem as túnicas de pele com que Deus havia coberto Adão e Eva, depois do pecado.

            Malgrado essas ideias estarem eivadas dos sentimentos e da compreensão vigentes naquela época, são elas merecedoras de acatamento.

            Judiciosamente, em conclusão à doutrina esposada, Bardesana diz que a união a um corpo carnal é, pois, consequência do mesmo pecado e, em vista disso, Jesus, espírito puro, imaculado, não poderia ter tomado um corpo carnal. Igualmente, prosseguia ele, devido ao mesmo princípio, não ressuscitaremos com o mesmo corpo que temos sobre a Terra, mas, sim, com um corpo sutil e celeste, que deve ser a habitação normal de uma alma pura e inocente.

            Harmonius, filho de Bardesana, mais claramente que o pai afirmou a reencarnação. Marinus prosseguiu com o ensino dessas doutrinas.

            Segundo Apeles, Jesus realmente não nasceu da virgem Maria; todavia, não se manifestou sem um corpo real. Dizia, então, que Jesus, servindo-se do material das estrelas e "das mais altas substâncias da Natureza", compôs um corpo e nele habitou durante todo o tempo que passou neste mundo. Ressurgido depois de três dias, mostrou aos discípulos as marcas das mãos e o lado, a fim de convencê-los de que era ele mesmo em pessoa, em carne e osso, e não um fantasma - prossegue Apeles, argumentando. Após aparecer, durante quarenta dias, com essa carne, o Cristo, tendo rompido o laço que o prendia a semelhante corpo, restituiu a cada um dos elementos aquilo que lhes pertencia, retirando-se, em seguida, para o Pai. Assim fazendo, ele não quis conservar nada de estranho, pois apenas se servira daquela carne, momentaneamente, enquanto dela tinha necessidade.

            Em verdade, Apeles teve razão ao considerar o corpo de Jesus uma verdadeira carne e esta é a mesma impressão que temos com os Espíritos materializados, que às vezes se nos apresentam perfeita e legitimamente «carnais».

            Marinus e outros, seguindo a Bardesana, diziam que o Cristo possuíra um corpo "celeste", "astral", não tendo, pois, nascido de mulher.

            O docetismo radical, de que nos fala o teólogo protestante Harnack, negava toda a realidade do corpo de Jesus; este não nascera absolutamente em nenhum sentido, e durante toda a sua vida humana foi um perfeito fantasma.

            Embora Saturnino e Cerdo, os mais radicais, tenham aventado tais ideias, estas, bem analisadas, tinham razão de ser, pois Jesus não passara pelo nascimento normal na Terra e o seu corpo participara dos caracteres de um "corpo fantasma".

            Saturnino, gnóstico do século I, dizia, segundo Santo Ireneu, que o Salvador não foi nascido, foi incorpóreo, sem matéria real, sine figura, assemelhando-se a um homem aos olhos da Humanidade.

            Antes de continuarmos, devemos lembrar aos leitores que a maior parte das questões em estudo não provém dos escritos dos docetas, escritos que, embora produzidos, ou se perderam ou sofreram a destruição. Quase tudo o que relatamos nos foi legado por alguns dos primeiros Pais da Igreja (Inácio, Ireneu, Tertuliano, Hipólito, Epifânio, etc.) que se insurgiram contra tais ideias, e, assim, é bem provável que eles tenham, consciente ou inconscientemente, deturpado, algumas vezes, o sentido oculto do pensamento dos docetas.

            Cerdo (ou Cerdon) explicava que o "Cristo, o Filho do Deus Altíssimo, manifestou-se sem nascer de Maria, ou seja, sem nenhum nascimento na Terra à semelhança dos homens".

            Para Marcion, zeloso cristão, Jesus não fora, de maneira alguma, um homem, pois não tinha um corpo real; apareceu, ao contrário, “sob a semelhança de um homem” (Epístola aos Filipenses, 2 :7). E diz ainda: “O Cristo pareceu sofrer e ser sepultado.” Há também referências sobre Marcion em que este se baseia em Mateus, 12:48, na Epístola aos Romanos, 8 :3, além de outras passagens, em apoio do Docetismo.

            Contra Marcion escreveu Tertuliano, para provar que o Cristo não teve um “corpo fantástico”, embora este Padre acreditasse que os anjos possuem um corpo que lhes é próprio, passível de se transfigurar em carne humana, tornando-se, por algum tempo, perceptíveis aos homens, e com estes podendo manter relações visíveis.

            Ptolomeu, gnóstico cristão da escola de Valentim, de meados do século II, foi dos que mais circunscreveram as ideias docetistas. Dizia que o Cristo fora, de fato, um homem real, porém a sua substância ou natureza era apenas composta dos elementos psíquico e pneumático, isto é, do perispírito e do espírito propriamente dito, como hoje diríamos.

            O elemento psíquico, mesmo entre os filósofos não materialistas, tinha o sentido de um elemento de natureza física ou animal, formando como que o intermediário entre o espírito e o corpo, e constituía o princípio imediato da vida. O pneuma constituía o sopro imortal, o princípio espiritual da vida espiritual ou intelectiva. Ptolomeu dizia que a natureza psíquica de Jesus permitiu-lhe sofrer e sentir dor, ainda que nada possuísse de grosseiramente material.

            Abstinham-se os docetas da eucaristia, visto que não reconheciam representar a carne e o sangue de Jesus.

            Os ofitas continuaram com as mesmas ideias que, no século VI, foram retomadas por alguns eutiquianos e monofisitas.

            O Monofisismo surgiu em princípios do século III, amoldando-se às ideias apolinaristas (das quais trataremos mais adiante). No século VI, sofreram os seus adeptos as mais cruéis perseguições, sendo forçados a emigrar para o Egito. Nessa época, o Monofisismo dividiu-se em duas seitas, pois Juliano, bispo de Halicarnasso, discordando quanto à natureza do corpo de Jesus, afirmava, então, que era fazer injúria à sua divindade supor que o Verbo se unira a uma carne terrestre e corruptível como aquela dos homens “animalizados” e “mal-cheirosos”. O Cristo, em sua passagem pela Terra, tivera o seu corpo sempre incorruptível, como aquele de Adão antes da queda, e igual àquele que os outros o creem ter tomado após a ressurreição; foi sempre isento da corrupção e das enfermidades, bem como da punição do pecado. Completando os seus pensamentos, Juliano diz que, se o Cristo sofreu, o fez voluntariamente, para salvar os homens, mas não por efeito de sua natureza. Os que professavam esta doutrina foram chamados aftartodocetas, em contraposição com os corruptícolas. Procedendo do Egito, os incorruptícoIas espalharam-se por várias regiões, tendo sido dominantes na Armênia.

            O Maniqueísmo, que contém ideias docéticas, surgido no século III, sofreu muitas perseguições, conseguindo, contudo, espalhar-se pelo Oriente e pelo Ocidente, declinando somente no século XII, devido à violenta oposição da Igreja.

            Os maniqueus acreditavam na reencarnação, por julgarem-na indispensável ao progresso do espírito humano, visto que, alegavam eles, não é possível que todas as almas adquiram perfeita pureza no decurso de uma única vida mortal.       

            As almas que persistem no pecado, após certo número de revoluções, são então entregues aos demônios do ar, para serem alimentadas e domadas. Depois dessa dolorosa penitência, voltam as almas a outros corpos, como que para novas escolas, até que, tendo adquirido o grau de purificação suficiente, se transportam, atravessando a região da matéria, ao lugar a que os maniqueus denominam «coluna da glória». O Espírito Santo, que está no ar, assiste continuamente as almas, espalhando sobre elas suas preciosas influências.

            O maniqueísta Fausto, entre outros, descreve o corpo do Mestre como não sendo humano, mas, sim, formado de elementos celestiais.

            No século XII floresceu na França meridional a seita neomaniqueana dos albigenses. Admitindo, como os cátaros, os princípios antagônicos - o mau e o bom - diziam que Jesus não podia tomar um corpo genuinamente humano, porque viria debaixo do controle do princípio mau. Por conseguinte, seu corpo era de natureza celestial e com ele penetrou a pessoa de Maria; nasceu dela e sofreu, apenas aparentemente.

            Entendiam, ainda, que a redenção do Mestre não foi “operativa”, mas unicamente instrutiva.

            Inúmeros concílios católicos foram realizados com o fim de dar combate à doutrina dos albigenses, a qual, todavia, se propagava cada vez mais rapidamente. A convite do papa, organizaram-se cruzadas militares sob os auspícios de alguns países, as quais desbarataram os albigenses, cometendo as maiores atrocidades. A Inquisição, instituída para esse fim, prosseguiu no bárbaro trabalho de limpeza, e conseguiu, no começo do século XIV, o quase total desaparecimento dessa seita.

            Além de outras diversas seitas que encerravam ideias docéticas, alguns anabatistas foram docetas; Maomet, no Alcorão, veladamente parece referir-se ao corpo de Jesus, e chega a dizer que «Jesus, o filho de Maria, o Verbo e o Apóstolo de Deus, não foi crucificado senão em aparência»; e o próprio Budismo, numa de suas seitas, apresentou, com relação a Buda, tendência docética.

            Só agora escreveremos sobre Apolinário, visto que, ao que nos parece, suas ideias não interessam ao estudo a que nos propomos, como veremos.

            Alguns autores, ao tratarem do corpo de Jesus, referiram-se às concepções apolinaristas no que estas dizem ter sido impassível o corpo do Cristo, e que descera do céu ao seio da Virgem, mas que não nascera dela.

            Desejando comprovar a veracidade de tais afirmações, encontramo-Ias, de fato, no Grande Dicionário Universal do Século XIX, de Larousse, e em alguns outros dicionários talvez calcados nessa obra, que, sucintamente, sem trazer qualquer relação bibliográfica, nos pareceu ser a de que aqueles autores se serviram.

            Entretanto, estudando a vIda e a obra de Apolinário em outras Enciclopédias, teológicas ou não, que profusamente se referiram a esse bispo, citando a redação dos anátemas proferidos contra a sua doutrina, e com a apresentação final de extensa bibliografia, é desconcertante dizer nada havermos encontrado a respeito daquelas questões inseridas no “Larousse”. Infelizmente, por não possuirmos os livros indicados nas bibliografias como referentes a Apolinário, não pudemos verIficar a veracidade ou não da exposição oferecida pelo Grande Larousse. Esperamos, todavia, que outro estudioso mais paciente e dedicado esclareça essa dúvida.

            Apresentamos, pois, a síntese do estudo que levamos a efeito:

            Apolinário (o jovem), bispo de Laodiceia, nascido talvez a 300, e falecido em 390 ou 392, era filho de ApoIinárío (o antigo), com quem trabalhou na adaptação da Bíblia à literatura profana. Foi mestre de S. Jerônimo, que se julgou diante dele, assim como de Orígenes e outros Padres, “imperitíssimo comparado com eles”. Diz o autor da Vulgata que Apolinário escreveu inúmeros volumes sobre a Sagrada Escritura e que os trinta livros contra Porfírio foram muito admirados.

            Apresentou ele refutações ao Arianismo e ao Maniqueísmo, escreveu algumas obras em verso e fala-se de uma versão poética da Bíblia, produzida, parece, somente por ele, sem o auxílio do pai, como pensam alguns autores.

            Sócrates, o Escolástico, referindo-se a ele, disse: "foi um sábio em ciência". S. Basílio diz que "devido ter ele grande facilidade em escrever, sobre qualquer assunto, conseguiu encher o mundo com seus livros".

            Acredita-se ter sido 360 o ano em que Apolinário iniciou o ensino de uma nova concepção a respeito da natureza do Cristo. Sofrendo a oposição da Igreja, desta por fim se separou, surgindo assim a seita dos apolinaristas.

            Mesmo depois de seu afastamento dos Pais ortodoxos, estes continuaram a tratá-Io com respeito e até com certa afeição.

            Santo Epifânio conta que ele próprio, bem como Santo Atanásio e "todos os católicos", muito amaram o “ilustre e venerável ancião Apolinário de Laodiceia”, e que, ao ouvirem falar de sua heresia, não puderam acreditar que tão grande homem houvesse caído em semeIhante erro.

            O Sínodo de Alexandria (362) parece ter conhecimento das ideais de Apolinário, rejeitando-as, não mencionando, porém, o nome do autor. No Sínodo romano (374), foi Apolinário julgado herético e condenado, não sendo, contudo, nominalmente incluído nos cânones. Outras reuniões eclesiásticas condenaram a doutrina apolinarista. O Sínodo de Antioquia (378) lança o anátema contra aqueles «que dizem que o Verbo de Deus habitou na carne humana, em substituição à alma racional e inteligente». O papa Dâmaso, no Concílio de Roma (380), lança idêntico anátema. O primeiro cânon do Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) registra também a condenação.

            Serviu-se Apolinário, para sua concepção, dos três elementos componentes da natureza humana, segundo a Escola neoplatônica, a saber: o corpo; a alma “anima animans”, princípio que atua e informa o corpo, sendo Comum aos homens e aos animais, tornando-os em seres vivos; e a mente ou espírito, agente do pensamento, da razão, da consciência, da vontade livre, em síntese: a essência da personalidade humana. Em apoio dessa divisão, citava passagens das Escrituras, como por exemplo a «Primeira Epístola aos Tessalonicenses, 5 :23 – “e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis”. Desses três elementos, o corpo  e a alma formavam o ser “natural” (a máquina, teria dito PIatão) controlado e guiado pela razão ou espírito. Mas - comentava Apolinário - o espírito no homem é transformável, falível, cheio de pecados inerentes à natureza humana e, por isso, não deve tomar lugar no Cristo, o que tiraria o valor à Redenção.

            Raciocinando ontológica e psicologicamente, Apolinário criou, então, a doutrina que admitia, na pessoa do Cristo, o corpo humano e a alma, mas não a mente racional humana. Esta é o Logos ou este lhe toma o lugar, tornando-se, assim, o centro racional ou espiritual.

            Atribuiu-se a Apolinário o haver sustentado que a divindade (Logos) sofrera, morrera, etc.; porém, isto são mais consequências tiradas dos princípios de Apolinário que propriamente opiniões do bispo, comentam estudiosos católicos.

            Baseando-se em algumas passagens do Novo Testamento, para Apolinário foi Jesus realmente um ser de natureza humana, por possuir alma e corpo, embora controlado e guiado pelo Espírito divino que lhe constituía a natureza divina. O Cristo não foi, pois, um Homem-Deus e sim um ser partilhando do homem e de Deus; nem inteiramente homem, nem inteiramente deus.

            Os Padres ortodoxos contemporâneos, rejeitando a teoria de Apolinário, não estão muito interessados, declara um escritor eclesiástico, sobre a verdade ou a inverdade contida na exposição de que a natureza humana consiste de três elementos, questão que foi levantada na Idade Média, e que tem suscitado veementes discussões entre os teólogos. Os primeiros contraditores do Apolinarismo escandalizaram-se principalmente com a asserção de que ao Cristo faltou um elemento de completa natureza humana.

            Diante de toda essa análise, podemos concluir que Apolinário foi um trabalhador cristão, admirado por seus contemporâneos, e que a sua doutrina; nada tendo a ver com a do corpo fluídico de Jesus, foi fruto natural da época, quando diferentes ideias surgiam no afã de explicar a tese católica da união divina à humana.

            Dissemos acima que Apolinário combateu o Arianismo, doutrina do presbítero Ário, apresentada no princípio do século IV, contrária à da S. S. Trindade, e que chegou a abalar os alicerces do Catolicismo dominante, que desapareceria se não fossem as lutas e perseguições violentíssimas movidas contra os sectários da doutrina mencionada. Baseado nos Evangelhos, Ário dizia que, se o Filho está subordinado ao Pai, não é, pois, absolutamente Deus; não é consubstancial com o Pai, portanto não coeterno com Este, não O igualando em dignidade e poder. Logo, Jesus não é eterno e sim, concluía Ario, uma criatura gerada antes da criação do mundo por ato da vontade de Deus, e deste não tem a mesma essência ou natureza, apesar de ser a criatura tipo, a mais perfeita. Esta perfeição é tal - considerava Ário - que, para os terrestres, Jesus poderia ser mesmo um Deus. A doutrina arianista reapareceu, sob outros nomes, nos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como, em parte, qual a do Docetismo, foi revelada, revivescida, pelos Espíritos que nos trouxeram a Terceira Revelação.

            Com a ânsia espontânea e nobre de esclarecer a Humanidade, aqueles homens foram incompreendidos e passaram a sofrer as perseguições dos que se sentiam com o privilégio da iluminação de Mais Alto. Que esses exemplos de incompreensão cristã, do passado, não revivesçam, perturbando a marcha evolutiva do pensamento humano. Os homens de responsabilidade doutrinária deverão reconhecer a necessidade de nos respeitarmos uns aos outros, lembrando-nos de que o livre-arbítrio, ou melhor, a liberdade de crença é uma das maiores, senão a maior conquista do século, por permitir a cada um procurar as luzes que o auxiliem a vencer a jornada terrena e satisfaçam à inteligência e ao raciocínio próprios.

            O professor de Escritura Sagrada, Arendzen, de uma das Universidades inglesas, num estudo do Docetismo, anota um renascimento de idéias docéticas em círculos espiritistas, embora - diz ele - menos fantásticas e extravagantes que as do passado. Sim, confirmamos nós outros, a obra de Roustaing ressuscitou o pensamento fundamental do Docetismo - o corpo fluídico de Jesus. Cumpriu, destarte, o Paracleto uma das facetas do seu infindo programa esclarecedor, e, realmente, sem qualquer extravagância.

            Ao deliberar a confecção deste trabalho, assaltou-nos apenas o desejo de trazer uma explanação menos imperfeita das ideias que se prendem ao Docetismo, visto que este termo é encontrado em importantes obras espíritas e comumente é referido nas conversações entre espiritistas.

            Trabalho sem valor, já o sabemos; todavia esperamos que outros, mais cultos e dispondo de obras cuja raridade não nos ensejou um estudo mais profundo, possam melhor desenvolver o assunto, trazendo-nos as luzes a que todos aspiramos.

BIBLIOGRAFIA

Grand Dictionnaire Universel du XIXe Siêcle - M. Pierre Larousse.
La Grande Encyclopédie.
The Catholic Encyclopedia - Various editors.
Encyclopedia of Religion and Ethics - Edited by James Hastings.
Encyclopédie Théologique - Publiée par M. L'Abbé Migne.
EncicLopedia Universal Ilustrada.
Dictionnaire de Théologie Catholique - G. Barellle.
Philosophumena ou Réfutation de toutes les hérésies – Hippolyte de Rome.
Dicionário Universal das heresias, Erros e Cismas – Antônio Gomes Pereira
El Legado de Egipto – Publicação da Universidade de Oxford.



Zêus Wantuil

Apêndice sob título ‘Docetismo’
 in “Elos Doutrinários” (FEB)  3ª Ed 1978


[1] Por outro lado, temos de refletir sobre os fatos hoje conhecidos da exteriorização da sensibilidade e da sua anulação, como vemos nas práticas de hipnotismo. Com seu ilimitado poder sobre a matéria e o magnetismo, mesmo que tivesse um corpo material, gerado, Jesus poderia torna-lo insensível, como fazem hoje médicos e dentistas em operações cirúrgicas. Portanto, o argumento que considera a dor como condição necessária à missão de Jesus é inconsistente, como tantos outros que pretendem igualar aquele Espírito sublime aos nossos de calcetas do pecado e da dor. - I. G. B. (Do blog: I.G.B = Ismael Gomes Braga)


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