sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

02/03 Docetismo


02/03 Docetismo

            Beausobre, conceituado teólogo protestante, autor de várias obras de crítica religiosa, em sua “Histoire Critique de Manichée et du Manichéisme”, muito falou sobre o Docetismo, sistema por ele considerado interessante a prol do melhor entendimento da religião cristã, tornando-a mais plausível. Conta-nos, então, esse autor que, segundo os docetas, Jesus não tinha abandonado aos seus algozes senão um «fantasma» que se lhe assemelhava.

            Se bem que não davam muito crédito ao Velho Testamento, em todas as suas partes, serviam-se, nas suas discussões sobre o corpo aparente de Jesus, das aparições de Jeová ou de anjos a Abraão, a Moisés e a tantos outros profetas. Constantemente, alegavam que Jeová havia aparecido a Abraão sob a forma humana na planície de Mamre, tendo o Senhor concordado em receber alimento, comendo e bebendo, em aparência pelo menos, o bezerro, o pão e o leite que Abraão lhe preparara (Gên., 18:1 a 8). Seguem-se, ainda, a convivência dos dois anjos com Lot, na casa deste (Gên., 19:1 a 22) e muitos outros fatos semelhantes. Apoiavam-se os docetas, igualmente, em o Novo Testamento, citando diversas passagens dos Evangelhos e das Epístolas de Paulo.

            Raciocinavam dizendo que um corpo humano é sempre visível, sempre palpável e com um peso proporcional à quantidade de matéria que o compõe; que ele não pode penetrar através de outros corpos, nem ser penetrado. Ora, acrescentavam eles, o corpo de Jesus não possuiu nenhuma dessas propriedades. Não era visível senão pela vontade do próprio Jesus, e não por natureza; por isso é que ele passou despercebido através de uma multidão furiosa que, levando-o ao cume de um monte, resolvera precipitá-lo dali (Lucas, 4:28 a 30); pareceu repentinamente diante dos olhos dos dois discípulos que o reconheceram em Emaús (Lucas, 24: 30 e 31), o mesmo sucedendo em outras ocasiões.

            Ora, semelhante raciocínio, para ambos os casos citados, mostra-se-nos inteiramente confirmável pela Doutrina Espírita, raciocínio que o Codificador, apoiado nos fatos, externou em «Obras Póstumas», ao dizer que «o Espírito pode adquirir tangibilidade real, deixando-se, então, tocar, apalpar, oferecendo a mesma resistência e o mesmo calor qual se fora um corpo vivo, mas isto não o priva de desfazer-se com a rapidez do relâmpago».

            Diziam, ainda, os docetas: Jesus não possuía um corpo inerente à matéria, pois que andou sobre as águas do mar da Galileia sem se afundar (Mateus, 14:25 e 26); não tinha solidez permanente, pois penetrou, estando as portas fechadas, na casa onde os discípulos se reuniram por duas vezes (João, 20 :19 e 26).

            É preciso considerar esses argumentos em conjunto, e não insuladamente, pois, desta forma, poderiam conduzir a raciocínio diverso e parcial.

            “Notamos, disse Beausobre, que os antigos heréticos defendiam sua doutrina pelos mesmos testemunhos da Escritura e pelas mesmas razões de que se serviu a  Igreja Católica, nos séculos posteriores, para defender a presença real do corpo de Jesus-Cristo na eucaristia.”

            Acompanhemos o raciocínio desse teólogo: - Se nos primeiros séculos os cristãos houvessem admitido o dogma da presença real, os docetas disso se aproveitariam, retirando uma objeção invencível e, certamente, diriam aos seus adversários: “Tudo o que subsiste, sem nenhuma propriedade do corpo humano, não pode ser corpo humano; ora, vós afiançais que o corpo de Jesus está na eucaristia, sem nenhuma das propriedades do corpo humano; por conseguinte, não é ele mais um corpo humano.”

            Sustentavam os docetas - repetimos - que Jesus pareceu possuir um corpo humano igual aos nossos, se bem que, na verdade, de forma alguma o possuísse. Comentando, prossegue Beausobre: «Ora, sob que direito e sob qual pretexto os Padres, admitindo a presença real do corpo de Jesus na eucaristia, teriam podido rejeitar aquele milagre semelhante que continuava a perpetuar-se na Igreja, do qual a prova e o exemplo a todo momento se apresentavam aos olhos dos fiéis? Que absurdo aí havia em dizer que o Senhor, durante o curso do seu ministério, parecia ser aquilo que não era, ele que, após a sua ascensão ao céu, não cessou de aparecer?

            “Como na eucaristia o corpo de Jesus tem todas as aparências do vinho e do pão, sem ser nem um nem outro, do mesmo modo o corpo aéreo teria todas as aparências de realidade carnal, ainda que se constituísse de uma substância puramente espiritual.”

            Bergier, conhecedor profundo de Teologia dogmática, refutando tais comparações, diz que, certamente, os Padres assim teriam respondido: “Tudo que subsiste, sem nenhuma propriedade sensível ou insensível do corpo humano, já não é corpo humano. Ora, o corpo de Jesus, na eucaristia, privado das propriedades sensíveis, conserva, contudo, as propriedades insensíveis: logo é um corpo humano, senão no seu estado natural, pelo menos num estado sobrenatural e miraculoso.”

            Vemos que essa resposta de Bergier em si mesma nada diz ou prova. Partindo de premissas inconsequentes, senão dogmáticas, conclui nesta base, de maneira desarrazoada e pueril.

            Comentando, ainda, o assunto em foco, Bergier declara que, se o dogma da presença real de Jesus na eucaristia é aceito, ao passo que é rejeitada a opinião dos docetas, isso não o é por considerar-se uma destas questões menos absurda ou menos impossível a Deus que a outra! Assim se acredita, prossegue o explanador, por dois motivos: 1.°) “A presença real é formalmente ensinada na Escritura Santa, ao passo que, contrariamente, a opinião dos docetas é ali formalmente reprovada”; 2.°) “O dogma da presença real de maneira alguma conduz às consequências falsas e ímpias que se seguiriam à opinião dos docetas, isto é, a do corpo aparente e fantástico do Cristo.”

            A primeira razão derivou e continua derivando da interpretação literal dos textos escriturísticos que se referem a tais pontos. Apesar da recomendação de Paulo de tudo examinarmos à luz do espírito, os homens prosseguimos na mesma rota de adaptação ao nosso eu material das coisas do espírito.

            A segunda digressão, imediatamente verificamo-Ia não ser verdadeira, pelo menos atualmente, quando a obra de Roustaing, impregnada daquelas ideias docetistas, cada vez mais eleva o nome do Senhor, criando em nós uma admiração e um respeito bem mais profundos pelo filho de Maria.

            O distinto eclesiástico cita os testemunhos epistolares de Santo Inácio e de São Policarpo, que estabelecem ser verdade o «mistério» da encarnação, a realidade da carne e do sangue de Jesus, servindo-se também do 1° versículo da 1ª Epístola de João - versículo que em nada desaprova o corpo fluídico do Mestre, pois os próprios docetas não negavam terem os apóstolos visto, ouvido e tocado o Senhor, seja antes, seja após a ressurreição; ressalvavam apenas que, aos sentidos deles, era dada a ilusão de carne real.

            Santo Ireneu, bispo de Lião, discípulo de São Policarpo, combateu o Docetismo no seu “Tratado contra as heresias”, servindo-se, porém, dos mesmos fracos e parcos argumentos de que os demais Padres se utilizaram. Deste modo, refere-se à genealogia de Jesus por Mateus e Lucas, esquecendo-se o replicador das palavras textuais do próprio Mestre, contrárias a tal genealogia, constantes em Mateus, 22 :41 a 45 e João, 1:1 a 18, bem como as de Paulo na Epístola aos Hebreus, 10 :5.

            “Se Jesus não fosse semelhante aos homens (exceção feita do pecado!) - continua Santo Ireneu - não poderia ser chamado homem, nem Filho do homem; viria apenas para nos iludir, inutilmente, pois, se somente tivesse tomado no exterior todos os sinais e caracteres da natureza humana; se realmente não houvesse sofrido, não nos teria remido. Indigno do título de Salvador da Humanidade, seria simplesmente um impostor, e não aquele predito pelos Profetas. Ainda mais, a ressurreição da nossa carne tornar-se-ia impossível, e não receberíamos, na eucaristia, a sua carne e o seu sangue, etc ... “

            O inteligente leitor poderá verificar, por si mesmo, a mediocridade desses argumentos. Desejamos fazer referência à questão do “Filho do homem”, que melhor poderá ser compreendida em Daniel, 7 :13. Além disso, a expressão homem bem pode supor a ideia da Humanidade em geral, compreendendo todos os seres da espécie humana, significação que já era citada pelo notável jurisconsulto romano, Gaio, que viveu no século lI. Ainda poderíamos acrescentar o significado dado pelos antigos egípcios, relativo ao grau de saber. Doutro lado, não se refere o «homem» a José, pois Jesus nascera do Espírito Santo.

Zêus Wantuil

Apêndice sob título ‘Docetismo’
 in “Elos Doutrinários” (FEB)  3ª Ed 1978



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