Vítimas da Invigilância
Albert Schweitzer
(Página psicografada pelo médium Gilberto Campista Guarino,
na reunião pública de 16-11-73, na FEB, no Rio de Janeiro, GB.)
Reformador (FEB) pág. 183 Junho 1974
França, 1874.
Paris amanhecera envolta em bruma cinza espessa. Os ventos dos Alpes envolveram-se com os dos Pirineus e, num só assobio, conseguiam atingir Montmartre, levando o ar gelado às ruas gotejantes da cidade.
O aspecto, desolador. Gárgulas da Notre-Dame despejando aguaceiros, como boca enorme a vomitar impropérios. Os portais, fustigados pelo vento insistente, deixando entrever os arcos da arquitetura gótica ensombreada. No interior da imponente construção, onde o frio parecia concentrar-se em conchavo sorrateiro, só havia o lenitivo das sonoridades do grande órgão; e os vitrais estavam encharcados.
Na rua, sombrinhas bordejadas de enfeites desfilavam lépidas sobre saias rodadas e sorrisos de cortesia: damas e cavalheiros encontram-se a três por dois.
Num ambiente cinza de intempérie, somente a elegante mansão da XVIª[1] regurgitava. Ensaios de orquestra denotavam festividades, e o etéreo já cantava as primeiras notas e alguns acordes.
Marie Antoinette de Besançon et Châtaignier desfilava, por sua vez, distribuindo ordens aos batalhões de serviçais prestimosos que a circundavam. Acostumara-se a comandar seu navio como desalmado capitão, nos mares bravios próximos à praça da Etoile.
O que se comemorava era verdadeira aberração: a triste partida do Sr. de Besançon, ilustre milionário que deixara para trás, além das gemas preciosas, trabalhos pertinentes ao governo da gigantesca fortuna.
Assim era Marie Antoinette de Besançon et Chataignier. Livrara-se, finalmente, do fardo que lhe fora o pai e, mais leve, rejubilante, oferecia grande festa, sob o pretexto de reanimar-se um pouco do choque sofrido.
Corriam as 16 horas e Marie Antoinette, recolhida à sala de banho, entre sais e essências, começou a pressentir rumores maiores; não sabia deles o motivo, mas pressentia-os. Sem querer, como grande culpada que era, deixou o pensamento retroagir dois anos. E reviu a cena.
Deixara o esposo como quem se afasta de um cão hidrófobo. Ele era criatura de exaltadas faculdades mentais, capaz de acessos mórbidos nas situações mais melindrosas. Expulsara-o grosseiramente, pela porta enorme, afirmando-lhe ser ela a sua serventia; que por ali saísse e que por ali não mais voltasse. E assim foi. Por ali apagou-se o vulto de Gerárd de Châtaignier... e por ali não mais ele voltou. Partiu praticamente sem qualquer provisão. O ódio que passara a alimentar impusera-lhe deixar ali tudo o que fora seu. Mas jurara vingança e enchera o coração de fel e ódio, aferrolhando-o no cofre da insensatez. Há dois anos desaparecera; e naquela data parecia querer voltar, naquele dia brumoso, sob o assédio dos ventos dos Alpes e dos Pirineus.
Nessas meditações, correra Marie Antoinette no tempo; e o relógio badalava as sete horas.
O baile fora anunciado a toda Paris. Carruagens paravam e os convivas exibiam sorrisos largos, como mandava o protocolo. Todos envergavam as roupas da moda. Em poucos minutos começava o divertimento. A orquestra cantava temas de antigos minuetos, polcas, valsas... e os pares bailavam compassados!... Todos sorriam ante as bandejas repletas de iguarias, todos sorriam muito. E Marie Antoinette estava eufórica.
Mas a vida é credora impassível...
Na rua entulhada de carruagens era tarefa impossível a contagem de seu número. Alguma poderia chegar e partir sem que fosse percebida. Lá dentro, Marie Antoinette de Besançon et Châtaignier preocupara-se ao peso de um remorso. Que fizera? ... Parecia que o fantasma do Sr. de Besançon, o ilustre milionário, acercara-se dela, exprobrando-lhe a futilidade. E Gerárd?... Por que lhe retornava à mente o nome que lhe impunha recordações infaustas? Que mecanismo fora esse que jurara quebrar-lhe ao meio a felicidade do convívio com a sociedade que adorava?... As brumas citadinas pareciam envolver a mansão; e um manto negro descia sobre a torre.
Oprimida pela angústia, subira as escadas suavemente espiraladas, enfurnando-se na biblioteca. Mas Marie Antoinette necessitava de ar. E precipitou-se escada a baixo, ganhando o pátio posterior.
Nesse momento, a música vibra mais forte e o círculo de cobrança aperta o coração da jovem senhora. Os passos da polca enchem o salão de ponta a ponta. E um grito vara o rebuliço da reunião. Apressam-se os convivas em averiguar. Despencam-se para os fundos... Havia algo no chão... dois vultos estavam inermes: Marie Antoinette estava morta. A seu lado, Gerárd, o jovem de Châtaigner.
Na manhã do dia seguinte, Paris amanhecia gélida, ainda sob os ventos inclementes. Mas o céu era de um azul profundo e a natureza já conseguia sorrir.
Na mansão da XVIª estacionara a bruma que, na véspera, cobrira a cidade. E pelos amplos cômodos dois vultos perseguiam-se estentóricos. Eram as vítimas da própria invigilância; não os marcados pelo destino, mas os que se marcaram a si próprios, nas vielas escuras da inveja, da ganância e do ódio. Eram aqueles que recusaram o Sol e se recolheram provas, pintando grossos nimbos nos céus do futuro.
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