sábado, 18 de junho de 2011

Carta à Mãe Católica, Evangélica...



Carta à Mãe Católica

João
Reformador  (FEB)  Maio 1961

            Querida mamãe: Esta carta contém uma terrível confissão: tornei-me espírita. Chamo-lhe confissão porque expressa minha convicção mais íntima, profunda, meditada e sofrida; chamo-lhe terrível porque sei o quanto vai feri-la também, íntima e profundamente. Conhecendo, como conheço, sua inabalável fé católica, sei que, para a senhora, é como se perdesse o filho amado, que se precipitou irremediavelmente nas chamas do inferno.

            Sei que sua religião - que foi também minha, desde o berço até bem adiante na vida - condena, sem remissão, aquele que lhe volta as costas. Mas sei também que a senhora é honesta e convencidamente católica e concordará comigo em que caberá a Deus julgar e não às organizações religiosas do nosso mundo imperfeito.

            A senhora tem uma bela religião, inspirada que foi na fonte comum do Cristianismo. Outras religiões também foram ao Cristo para beber inspiração e traçar novos roteiros aos homens, mostrando-lhes  os caminhos de Deus.

            Sua religião é bela pelo seu conteúdo moral e espiritual, pela importância de sua contribuição à Civilização, pelos grandes espíritos que povoam sua galeria, desde os vultos que se tornaram universais até o pároco anônimo, mas profundamente humano, que orienta meia dúzia de almas, no seu modesto rebanho.

            Respeito todas as suas crenças; no entanto, sua religião, como todas as demais, tem um conteúdo espiritual de origem divina e um continente de tosca feitura humana. Se a examinarmos de perto, veremos que o conteúdo continua puro e luminoso, pois eterna é a sua substância e sua concepção independeu da vontade do homem; mas veremos, também, que o vaso que o contém, é defeituoso e imperfeito, como toda obra humana.

            Por melhor que fossem suas intenções - e muitas, infelizmente, não o foram - muitos dos espíritos incumbidos de ajudar a fazer o vaso não viram bem claro os planos do Senhor e cometeram falhas, na ilusória esperança de que estavam criando medida de autodefesa contra futuros inimigos da nova fé. E assim, tudo se petrificou na imobilidade assustadora dos dogmas. Mais ainda; a precaução foi inútil, porque Deus, na Sua sabedoria infinita, não quer deixar que as coisas permaneçam estáticas. Toda a Natureza vibra, se move, evolui, nasce, morre, emigra e renasce. Porque haveria Deus de permitir que no meio de tanto movimento só um corpo doutrinário permanecesse inerte, estacionário, contraditando Suas próprias leis?

            Se o próprio Cristo aqui veio para modificar, ampliar e dar nova vida a um corpo doutrinário anterior... E note bem: Ele não veio destruir, ele veio executar um dos cânones da lei divina, que é a evolução. Retomou a doutrina morta no ponto em que estava e soprou-lhe novamente a vida.

            Para isso foi preciso pregar, curar, dar exemplos, sofrer e morrer. Ainda assim, até hoje o negam e o espezinham e o desprezam, até mesmo em nome dos princípios morais e filosóficos que ele pregou.

            De modo que respeito sua fé. O Catolicismo tem prestado grandes serviços e continuará certamente a prestá-los, todas as vezes em que prevalecer em suas obras a substância divina que nele se contém, todas as vezes em que subir às culminâncias de Francisco de Assis, por exemplo. Outros grupos religiosos prestam, igualmente, grandes serviços de natureza espiritual, pois o que importa, substancialmente, não é o rótulo da nossa crença religiosa, é a própria crença e o grau de caridade que ela é capaz de instilar em nossos corações. Desde que seja pura e honesta, sincera e humilde, Deus certamente nos receberá em Seus braços um dia, porque Seu maior Emissário nos garantiu que nenhuma de Suas ovelhas se perderia.

            Por tudo isso respeito sua fé e rogo a Deus que a ajude a compreender, no devido tempo, o passo que ora dou.

            Sei que a Senhora pensará neste momento, a ler confusa e desgostosa estas linhas: “Coitado, o demônio o arrastou para as hostes do mal.” Ensinaram à senhora que o Espiritismo é obra do demônio, que comanda, poderoso e invencível, todos os fenômenos espíritas.

            Digo-lhe eu agora, com a maior pureza na minha intenção: o ‘demônio’ fez no meu caso (e em inúmeros outros) obra magnífica. Por que? Porque me retirou das trevas impenetráveis da descrença e me arrastou para a luz da fé. Digo arrastou e digo bem, porque reagi e resisti enquanto me foi possível. Educado que fui - a senhora o sabe -, no mais profundo horror à luminosa Doutrina dos Espíritos, li os primeiros livros tomado de sobressaltos e temores.

            Mas, se não me restava nada da antiga fé, pensava eu, que mal poderia haver para as minhas dúvidas? Sim, porque eu duvidava; mais que isso: eu descria.

            Verificava, na idade ingrata do raciocínio, que não poderia salvar minha crença da meninice, pois seus destroços nadavam esparsos pelo mar de desencanto. No princípio, sentira um alívio tolo, como que desobrigado de compromissos éticos e religiosos. Era livre, era superior a toda aquela massa ignara que cria. Mas os anos foram volvendo e comecei a duvidar também da minha descrença. A senhora sabe que o homem é essencialmente espírito e de lá, de onde vem, ele traz a intuição de Deus. Trazendo no fundo do ser uma fagulha emanada de seu Criador, como pode ele subsistir sem Deus e passar pela vida indiferente, sem a crença naquele que o criou e o conduz? Poderá teimar ingenuamente, como uma criança perdida, e nem por isso Deus o abandonará.

            Deixe-me contar-lhe uma parábola.

            Disse uma criança a seu pai:  “-Pai, você não existe.” Respondeu-lhe o pai, condescentemente: “-Não? Por que você acha que eu não existo?” “-Porque você é absurdo. Porque não  posso  compreendê-lo.  Como é possível você ter existido antes de mim? Como é possível você saber, por exemplo, que aquela floresta escura me reserva perigos e sofrimentos? Quem lhe ensinou as coisas que você sabe? Quem o fez? Não. Você não existe.”

            E para prová-lo, quis atravessar a floresta na escuridão da noite. Iria sozinho, que nada o assustava. E foi. Mas o pai, que o amava, foi à sua frente; colocou sinais pelo caminho; abriu-lhe até algumas picadas e poliu a face da lua, para que ela iluminasse um pouco as veredas.

            Lá se foi a criança. No princípio estava alegre, sentia-se forte e independente. Era dona de sua vontade, não teria que prestar contas a ninguém do que fizesse. Esqueceu-se até do pai. Depois começou a sentir-se muito só, a caminhar solitária pelas veredas. E absurdamente, começou a ter saudade do pai e começou a notar que sua mão bondosa andara por ali a espalhar sinais de sua presença. Removera uns espinhos daqui; tirara uma pedra dali; deixara um pouco d’água fresca acolá. E como é que a lua, perdida nas nuvens, brilhava agora tão intensamente no céu? Teria sido o pai o que lhe aumentara o brilho? Era sim, desconfiava ela. Sentia isso agora, perfeitamente, com nitidez. Então, o pai existia, era bom e o amava. Foi só o tempo de pensar assim e sair do outro lado da mata. Lá estava o pai, à sua espera, com o amor sublimado de sempre. A criança caiu a seus pés, beijando-lhe as mãos, lamentando o tempo que perdera na mata escura, extraviada, sofrendo inutilmente para provar a si mesma que seu pai não existira. Esquecia-se a coitada, que, se conseguisse prová-lo, teria provado que ela também não existia. Que fazer então?

            Aí está a história. Aqui estou eu, humildemente, aos pés do Pai, sempre que posso, em cada momento da minha vida, para agradecer-Lhe as bênçãos incontáveis que sobre mim tem derramado generosamente. Aqui estou, dentro de minhas limitadas forças, a lutar como posso, contra minhas imperfeições que são muitas e meus erros que são inumeráveis. Aqui estou a Seus pés, a implorar-Lhe que me ajude, iluminando cada vez mais meu entendimento e meus caminhos, inspirando-me pensamentos e atos nobres, fortalecendo-me na prática da caridade. Aqui estou a Lhe pedir coragem e inspiração para que, por minha vez, possa ajudar os filhos que Ele me confiou, orientando-os na senda do bem. Aqui estou para agradecer acima de tudo o ter Ele permitido que voltasse ao mundo por intermédio da senhora, que, colaborando na Sua obra, ajudou a formar o meu corpo físico e tanto contribuiu, com a nobreza de seu caráter, para reformar meu espírito nesta peregrinação. E me sinto tranqüilo e feliz tanto quanto pode sê-lo a criatura imperfeita que ainda somos, porque creio, porque sofro e luto e aprendi a orar. Estou feliz porque a minha fé renasceu fortalecida, imune aos embates da razão, porque a própria razão a ilumina. 

            Quero, pois, pedir à senhora que não se preocupe comigo. Algum dia, com a graça de Deus, nos encontraremos em outras condições, desembaraçados deste tosco invólucro material e conversaremos sobre estes e outros problemas. Estou certo de que lá encontraremos também muitos e muitos amigos que, levados por injunções várias, foram espíritas, protestantes, judeus, católicos ou budistas. E a senhora não mais se admirará, porque saberá então que a Deus não importa de onde vem a prece que sobe até Seus pés: o que Lhe importa é a fé que a sustenta, o que Lhe importa são as obras que a iluminam. Mesmo porque, sem as asas poderosas da fé, a prece não chegaria sequer a esvoaçar naquelas alturas inconcebíveis do espírito humano. Levada pela fé, no entanto, lá chegam nossos agradecimentos e nossos pedidos, seja qual for a igreja de onde oramos, porque, ao criar Seus filhos, Ele não os separou irremediavelmente em seitas, raças, nações e castas: Ele apenas os criou simples e perfectíveis, como ensina a boa doutrina. E lhes deixou abertos os caminhos, para que cada qual tivesse o mérito de suas descobertas, de suas vitórias e de sua paz espiritual.

            Deus guarde, ilumine e assista sempre seu bondoso espírito, que pesada tem sido sua quota de sofrimentos e angústias.

            Abençoe, em nome do Senhor, seu filho na carne e irmão no espírito.   
João

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