O homem que venceu o desejo
José Brígido
(Indalício Mendes)
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB)
Setembro 1949
A pequena cidade de Yu-Pi, à margem direita do rio Liang, não apresentava progresso. Seus habitantes viviam de maneira primitiva e não sentiam entusiasmo pelas idéias novas que lhes chegavam do estrangeiro, através de notícias publicadas por uma gazeta local. Viviam mais do cultivo do arroz, indiferentes às dores alheias, procurando cada qual enfrentar as contingências da vida como melhor pudesse.
Entre os habitantes de Yu-Pi havia um rapaz de nome Chuan -Choo, espírito vivaz, sonhador, que não se conformava com as diferenciações de classe, lamentando a sorte que o fizera nascer de família paupérrima. Invejava a situação abastada de Ling-Lu-Y, cujo filho, Mang-Poo, da mesma idade que Chuan-Choo, possuía lindo e forte cavalo branco e uma carruagem com enfeites de jade.
Horas a fio, Chuan-Choo se punha a meditar na sua situação. Porque uns nascem ricos e poderosos, outros, pobres e desamparados? Porque a beleza e a força são atributos de certas indivíduos, enquanto a fealdade, o aleijão e a fraqueza representam a desgraça de outros? Bem que Chan-Choo sabia que uma das quatro verdades do budismo é está: “a vida é sofrimento”. Mas, perguntava, se a vida é sofrimento, porque Mang-Poo não sofre como eu? porque Mang-Poo tem tudo quanto quer e é feliz? E pôs-se a chorar, ante a impossibilidade de libertar-se do círculo de ferro que tal situação para ele representava.
Foi a essa altura que o velho Tu-Li-Man-Pu apareceu e procurou consolá-lo. Tu-Li-Man-Pu era homem de grande sabedoria. Conhecia profundamente a doutrina de Buda e os conceitos famosos de Confúcio, no Lun-Yu. Achava que a vida é uma ciência e por isso deve ser estudada em todos os seus pormenores e analisados com serenidade os diferentes aspectos em que se apresenta em face do homem.
***
- Porque choras, Chuan-Choo? Porque deixaste aberta a porta do coração, para que por ela entrasse a desventura?
- Tu-Li-Man-Pu, meu amigo: choro a minha desgraça. Quero viver uma vida feliz, como a de Mang-Poo, mas sinto que estou condenado à escravidão atual, porque assim viveram os meus antepassados...
Durante alguns minutos, o velho e o moço trocaram idéias. Por fim, Tu-Li-Man-Pu conduziu Chuan-Choo à sua casa, dizendo-lhe:
- Vês esta bola de cristal puríssimo? Pois bem. Vais concentrar toda a tua atenção sobre ela. Não pensarás em nada, a não ser no que possas ver dentro dessa esfera brilhante. Primeiro, verás o que se passa na intimidade das mais ricas e poderosas comunidades familiais de Pequim, depois de Nanquim e de todas as grandes cidades da China, onde vivem as famílias de maior tradição e fortuna.
E assim foi feito. Chuan-Choo se horrorizava das cenas refletidas pela bola de cristal. O famoso mandarim Hi-Khuam, por exemplo, venerado pela sua bondade, era cruel carrasco da esposa. O imperador Fu-Fuam ocultava de seus súditos os sofrimentos físicos de que padecia. Sua vida era verdadeiro inferno. A doce Irui, filha de Fu-Fuan, tinha alucinações tremendas e, em tais ocasiões, feria seus servos e insultava seu pai.
Chuan-Choo percorreu, em poucos instantes, a China inteira e visitou os homens mais poderosos de sua época. Não havia um só que não tivesse seu instante de amargura em cada dia. Então, Tu-Li-Man-Pu, aproximando-se mais um pouco do rapaz, acrescentou:
Agora, irás conhecer a verdadeira vida de Ling-Lu-Y e de seu filho Mang-Poo...
Imediatamente, a bola de cristal começou a reproduzir aspectos desconhecidos de ambos. Ling-Lu-Y era homem de mau gênio e Mang-Poo um viciado. As disputas entre os dois eram terríveis, pois o rapaz não respeitava a velhice do pai, nem este sabia colocar-se na posição devida em face do filho. Quando Mang-Poo saía, Ling-Lu-Y se embebedava com vinho de cerejas e cometia os maiores desatinos.
Tu-Li-Man-Pu pôs a destra sobre a cabeça de Chuan-Choo, até que este aparentasse tranqüilidade. Então, começou a falar-lhe:
-Não te deixes iludir pela aparência, rapaz. Tua vida é trabalhosa e isenta de prazeres. Todavia, é melhor do que a daqueles que supunhas num paraíso. Bem dizia Buda que “a ignorância é a causa de todo mal”... Só nos atrai o desconhecido. O desejo é a origem de muitas dores. Lembraste-me uma das quatro verdades de Gautama Siddharta, mas, ao que suponho, esqueceste as outras três... Elas todas, juntas, podem levar-nos à felicidade relativa, por mostrar-nos o caminho do Nirvana que, como sabes, é a região sublimada em que não há nascimento, doença, sofrimento, velhice e morte. Entretanto, só poderemos ganhar o direito de ingressar no Nirvana, se soubermos viver a nossa vida terrestre, revelando coragem, paciência, resignação e amor.
Se “a vida é sofrimento”, “a causa do sofrimento é o desejo”. Só “o homem que se domina a si mesmo pode libertar-se da dor”. Aí estão três verdades, Chuan-Choo. Vejamos a quarta: “São estas as maneiras de livrar-se o homem do sofrimento: compreender, pensar, resolver, falar, agir e viver com justiça e tolerância”... Não há na face da Terra quem não sofra, quando ainda não aprendeu a jugular o desejo. Este, sim, é o monstro que a criatura traz dentro de si. É difícil contê-lo e educá-lo, mas quando se consegue tão nobre desiderato, a vida fica mais bela, a humanidade parece melhor e tudo na Natureza sorri para o conquistador do desejo...
Chuan-Choo permanecia silencioso. As lágrimas haviam secado, porém ele sentia renascer dentro do peito a candura de sua meninice. Beijou as mãos enrugadas de Tu-Li-Man-Pu e saiu sem dizer palavra...
***
No dia seguinte, quando o velho atravessou a estrada poeirenta, surpreendeu-se com o cantar alegre de Chuan-Choo, entregue à áspera faina da colheita de arroz... Ao avistar Tu-Li-Man-Pu, gritou-lhe, animado:
- Aprendi muito, ontem! Mas, depois do que vi e ouvi, comecei vida nova. Seguirei o teu conselho, Tu-Li-Man-Pu!
***
Os anos vieram demonstrar que ninguém era mais alegre e feliz, na pequena cidade de Yu-Pi, do que Chuan-Choo, discípulo do velho Tu-Li-Man-Pu, o mestre budista. E, ainda hoje, a juventude chinesa se extasia com os feitos de Chuan-Choo, profundo na explanação da Doutrina de Gautama, que ele assimilou mais pelo coração do que pelo cérebro. E quando se refere ao ambicioso rapaz de Yu-Pi, apenas menciona:
“- O homem que venceu o desejo...”
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