Querer não é merecer
por José Giovanini
Reformador (FEB) Fevereiro 1937
O primeiro – querer – é o
verbo transitivo que exprime uma ambição; significa a existência de uma pretensão.
O segundo – merecer – que também
é verbo transitivo, idealiza o direito que alguém outorgou a si; delibera uma
dignidade a que se fez jus.
Nas funções ordinárias, respeitada a
etimologia, nada exprimem de estranho, mormente porque usamos destituídos de
outro valor, cumprindo tão somente observá-los como órgãos comuns de nossa
linguagem.
Porque não desejamos ministrar aqui
as regras da didatologia, vamos entrar, agora, no mérito da questão.
Conduzimos, pois, ambas as formas
linguísticas expostas para a arena do nosso pensamento, onde então iremos nos
bater contra interpretações que a elas se emprestam, tão bisonhas se nos
apresentam as opiniões de alguns, que as confundem pela força e desvario de uma
ideologia sem par e sem base.
A alma, apanhada em cheio pelo guante
da dor, feita presa dos tentáculos hercúleos desse fantasma que apavora e
enegrece os sentidos dos que fogem à fé, debate-se no emaranhado da sua revolta
e busca, quer no mais profundo de suas restritas possibilidades espirituais,
quer junto àqueles que lho podem dar, um lenitivo capaz de a reconduzir à paz e
à tranquilidade de espírito.
Guiada à fonte das virtudes, que é o
Evangelho de Jesus, vai ela haurir a graça dos céus ao conhecer a verdade, sua
forma mais transcendental, submetendo a vida do seu espírito à sublime e reta orientação
dos espíritos guias, que fazem entrever a Deus como aquele que deve ser amado
sobre todas as coisas.
É aí, então, que Deus, aquele Sumo Artífice do
Universo, grandioso na sua justiça plena de imparcialidade e magnânimo na sua
bondade inexcedível, vai colher aquele filho transviado, coma aluz vivificadora
que regenera e estimula, abrindo-lhe de par em par as portas que procurou e
mereceu, e que dão acesso à mansão dos humildes e dos bem-aventurados.
Essa alma houve por bem merecer e,
finalmente, recebeu.
Ao contrário, porém há aquela que
alimenta simplesmente um querer.
Se nas puerilidades das coisas
profanas deste mundo de provações e tristezas cabe um querer, essa alma
transviada quer a todo custo.
Se o ouro atrai como geralmente
acontece, quer abarrotar seus cofres intermináveis; se a vertigem das honrarias
mundanas a empolga, enfrenta os perigos e muitas vezes até a morte para
alcança-la; se se faz prisioneira de Cupido, atinge os limites da paixão
violenta, desvirtuando o amor em sua mais clara e sublime acepção, transpondo
os excessos que o Mestre condenou.
Por que ela anseia pelo querer na insaciabilidade
do seu desmedido desejo fútil; tudo quer na satisfação das suas mais ímpias e
fúteis ambições e não mede sacrifícios em satisfazê-las.
Sequiosa de aventuras e felicidades
que surgem efêmeras e em quantidade tentadora para ela, estorce-se no seu
egoísmo e vaidade desmesurados, conhecendo e ao mesmo tempo desconhecendo de
tudo, na mais desoladora vastidão de sua negligência.
Vem ela, pois, na sequência de sua
ambição ferir também a Revelação, que se faz dia a dia clara a todos, e tão
somente no intuito de não se desprestigiar perante os seus observadores
atentos, quer indagar das formas e consequências da alta filosofia
espiritualista, sem entretanto, sequer, prescrutar sua origem e finalidades,
somente para dizer adiante que viu e criticou as razões e crendices.
Esta alma é aquela a quem o querer satisfaz,
mas a quem a repele o merecer, colocando-a em justaposição com os fanatizados,
ou melhor, com os ignorantes, se é que aqueles não são estes.
Desta ordem, aqueles a quem nos
referimos de princípio, que confundem o querer com o merecer,
ferindo o conceito elevado e meritório do segundo, com a estolidez imperdoável
do primeiro.
Partindo o primeiro como glória de
um mérito que o sacrifício impôs, o segundo é fruto da árvore má que se cultiva
com a descrença, e que por certo Jesus arrancaria e lançaria ao fogo, qual
disse.
A matéria, já por sua conformação pesada,
já por sua natural função junto ao espírito, intercepta o alcance visual deste,
fazendo-o mesquinho e alheio à amplidão eterna, essa para a qual vive o
espírito e que ingrata e comumente esquece.
Por conseguinte, tornam-se inimigos
acérrimos da verdade, perdem a complacência e o respeito ao sentimento humano, atacando
destemida e ousadamente suas propensões, mas cujas armas lhes caem das mãos tão
logo apareça a menor defensiva.
Previnamo-nos, pois, contra os
inimigos do progresso, contra aqueles por quem vêm os escândalos, porque eles
existem deveras e se fazem uma prova aliás infalível de que a justiça de Deus
dispõe para aquilatar nossa crença, ou melhor, a firmeza de nossa convicção.
Dentro como nos encontramos na Seara
do Mestre, nada nos resta mais que defender a todo custo o terreno que conquistamos
e cultivamos pelo sacrifício dum labor fecundo, e que nos garantirá, por certo,
futuramente, o salário que tanto almejamos.
Se já merecemos compreender, desde
logo e felizmente, essa verdade luzidia que nos traça futuro tão risonho,
hosanas entoemos a Deus num agradecimento sincero e espontâneo, pela
benevolência de sua imensurável misericórdia e peçamos também essas mesmas
luzes para aqueles que não veem e julgam ver, que não ouvem e julgam ouvir.
Acolhidos, como nos achamos, sob o pálio majestoso
de Ismael, portanto, sob as vistas complacentes de Jesus, urge nos condoamos
daqueles que só nos podem espreitar de longe.
Se os críticos gratuitos nos
espezinham e tentam amedrontar, tenhamo-los por aqueles a quem não soou a hora
da salvação, porque – ainda são palavras do Mestre – muitos serão os chamados,
mas poucos escolhidos.
Se motejam da nossa crença, que
dizem fanatismo injustificável, evoquemos e ofereçamos-lhes a palavra eloquente
e sincera de Kardec, o codificador, que disse:
Vós que negais a existência dos espíritos,
cumulai o vácuo que eles ocupam. E vós que deles ride, ousai rir das obras de
Deus e da sua Onipotência.
Concordes com esta assertiva deveras
louvável, não podemos evitar a ufania de sentir conosco o espírito da harmonia,
esse que, translúcido e inebriante, afaga nosso coração ao ponto de fazê-lo
aceitar com doçura e alegria a verdade refulgente, que se irradia das páginas
doiradas do Evangelho.
Nessa linfa inesgotável, cuja pureza
nos devolve a inocência perdida por nossa maldade, e que tentamos reconquistar,
achamos a graça que nos conforta, a esperança que nos consola, a fé com a qual
transportaremos montanhas.
O demérito dos fariseus de hoje
surge não por faltar a bondade de Deus, porque esta jamais fenece; ele vigora
pela inércia de sentimentos e só o têm os nulos de convicção e baldos de
sinceridade. Bastar-lhes-ia a boa vontade pequena hoje, mas inexpugnável
amanhã, e deles também seria o reino da ventura.
Glória a Deus, pois, no mais alto
dos céus e paz na Terra aos homens de boa vontade.
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