domingo, 3 de outubro de 2021

De Finados

 

De Finados 

por Alcindo Terra

Reformador (FEB) 1º Dezembro 1916

 Deveras comovente é a romagem dos que, acicatados pela saudade, lá se vão no dia de finados, cobrir de flores, orvalhadas de lágrimas, o recanto, para eles sagrado, onde, colhida pela morte, julgam haver desaparecido para sempre toda a criatura estremecida.

São estes os que, materialistas, pensam ser o túmulo o marco final da humana existência; são os que, em todas as manifestações da inteligência, em todas as modalidades do sentimento, nada mais reconhecem senão meras combinações de matéria organizada.

Por isso mesmo, devem ser os mais feridos pela dor, tanto é certo que, dentro da noite do ceticismo, não podem surpreender um lúcido sequer de consoladora esperança, sempre viva para aqueles que acariciam a crença em Deus e na imortalidade.

Não será menos dolorosa, entretanto, a lembrança de um ente querido já nos domínios extra terrestres, para quem se confranja à sombria ideia de estar o ídolo de suas afeições, por uma falta grave, num instante de arrependimento praticada, curtindo uma eternidade de torturas nas chamas infernais.

Enfraquecido, porém, vai se tornando felizmente, cada vez mais, o número de pessoas crentes no dogma do inferno, pois que, por simples intuição, parece compreender o homem hodierno não ser possível o Criador, perfeito em toda a execução de sua obra, lançar ao mundo os seus filhos, de cuja queda, ele, o Criador, de antemão, tivesse conhecimento para depois considera-los irremediavelmente perdidos, condenando-os para todo o sempre.

Por outro lado, escrava de ferina incerteza, avulta a grande maioria daqueles, para os quais a vida de além-túmulo é um eterno, insondável problema, e dizem que se considerariam felizes, se, entretanto, realmente, para além deste mundo de misérias, uma outra estância de paz lhe surgisse, onde fossem encontradas almas amigas que os precederam na grande jornada para o desconhecido.

Penetrada dessa desoladora incerteza está a massa popular, herdeira de religiões esboroantes, morrentes justamente, porque se contentam com o propagar a sobrevivência da alma à morte do corpo, sem contudo dar uma prova de suas afirmações, como requer o filho deste século, no transcorrer do qual só florescem doutrinas inspiradas na observação dos fatos experimentais.

Conservam ainda uma centelha de esperança àqueles que alimentam a crença de encontrarem ainda, ao ingressar na outra vida, os entes estremecidos, se não no céu, por quase inacessível ao homem presa de todos os vícios, provavelmente, ao menos, transpondo a montanha do purgatório, tão bem figurada pelo Dante na sua obra – uma das joias mais preciosas da literatura italiana.

                                                            ***

Todavia, muito outra, e muito mais consoladora, é, sem dúvida, a perspectiva do futuro humano, no passado século desvendada por aqueles mesmos que, desvencilhando-se dos elos corpóreos, já  respiravam o ar puro da vida espiritual.

Todo o homem não se aniquila com a desagregação do conjunto de moléculas, instrumento de que carecia enquanto neste mundo – verdadeiro Letes, onde nos esquecemos dos nossos atributos superiores – para transmitir o pensamento a seus semelhantes. O que se transforma com o fenômeno da morte é o que tomamos da matéria, é o corpo físico, só valioso como elementos de prova para o espírito que o dirige e se esforça por domar lhe os apetites da carne.

É sofrendo as contingências da matéria, é suportando resignadamente os embates da vida ordinária, inçada de precipícios invencíveis se não houvesse a Providência a sugerir os meios para vence-los , e curtindo, sem queixas, sem revolta, as dores do mundo, que o homem, constelando-se de bondade, colhendo experiencia dos fatos, em seu proveito e no intuito de minorar o sofrimento alheio, vai haurindo gradualmente energias para efetuar a sua difícil, mas gloriosa, escalada para o céu.

E a saudade que a tantos sensibiliza, se não for acompanhada de blasfêmias, reverterá em benefício, por adormentar sentimentos malsãos, ao mesmo tempo que ensaia as almas no cumprimento do amor ao próximo, que será o apanágio da humanidade redimida.

O amor é o ideal da vida humana, tem os filósofos de todos os tempos assegurado; e, hoje, mais do que nunca, os mensageiros do Alto vêm afirmar esta verdade; pois que, por eles, sabe-se que esse ideal, o do amor, contina a acenar à criatura, mesmo após deixar ela a algema da carne.

E, se é certo que, através do espaço e do tempo, o homem tem esse sagrado objetivo a colimar; se existe um alvo de perfeição para onde se dirija efetivamente, - o dogma do inferno, com suas penas eternas, segundo a concepção da igreja, está fadado a passar para o número das coisas arcaicas, que fizeram a sua época nos primórdios da civilização.

E, entretanto, a ideia do inferno ou do purgatório não é totalmente destituída de razão, porquanto, aí não existem punições perpétuas na outra vida, há, contudo, sem jamais ser eterno, o remorso persistente que fere e se aviva com a lembrança de se haver cometido o mal, quando poder-se-ia ter praticado o bem.

As recordações sombrias de atos irregulares, se não dos crimes, vão cessando, gradualmente, à maneira que o delinquente, reconhecendo a infração cometida contra as leis divinas, volver sinceramente arrependido olhos para o Alto, firmando o compromisso inquebrantável de ascender para Deus.

Mas, se o culpado é perseguido incessantemente pelo remorso que o crucia, ao revés, a alma do justo estremece de júbilos indefinidos, revendo a sua obra de amor e de paz na Terra realizada.

O bom desfrutará delícias paradisíacas, não porque esteja colocado em determinado lugar de venturas, mas porque, enriquecendo-se de virtudes, soube construir um verdadeiro céu dentro de sua própria alma.

Verdade alvissareira é que, todos, quer o criminoso, quer o justo, continuam a viver, além, em outros pousos do universo, não se esquecendo dos que lhes foram dedicados, aguardando o instante de sua volta a esse país de onde viemos e ao qual ele, primeiro dos que os choram, teve ocasião de aportar.

 ***

Para imprimir na criatura a crença na sua origem divina, e além disso, na grandeza de seus destinos depois de transcorrida a existência planetária, é que Allan Kardec, por determinação do mundo invisível, reuniu em código admirável as instruções que constituem a doutrina filosófica religiosa mais consentânea e consoladora que a história do pensamento humano tem ainda assinalado.

Consentânea, porque ao contrário das antigas filosofias que no dizer de Spicker (?) “eram destinadas a resolver problemas de maior magnitude e, ao cabo de 2500 anos, vem-se forçadas a reconhecer que fraudaram, por completo, o seu fim”, o espiritismo, firmando-se na experiência dos fatos, e explicando dentro da justiça os fenômenos morais, vem adaptar-se às exigências da razão mais esclarecida.

Consoladora, porque é de molde a desvendar o segredo do túmulo, pondo em relevo o engano em que permanecera a humanidade, relativamente ao seu futuro, provando existir a vida, mesmo além da morte.

E é por isso que o espírita não chora amargamente os seus “mortos”; e, enquanto outros desfolham flores gotejadas de lágrimas sobre a campa de entes queridos, o adepto da revelação nova ora, e, orando, tem a certeza de se comunicar, em pensamento, com quem, na vida, foi objeto de todo o seu encanto, de todo o seu amor.


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