quarta-feira, 16 de junho de 2021

Olho por olho

 

Olho por olho

(Êxodo, cap. 21, v. 24)

por Geminiano Barboza

Reformador (FEB)    1916

 

            Eis um belo tema para estudo, esse dispositivo da lei mosaica. Seja-nos permitido toma-lo por objeto da presente meditação.

            “A letra mata, o espírito vivifica”, disse Jesus Cristo.

            “Tirai da letra o espírito” – aconselham os mensageiros do divino Mestre.

            Ora, conhecida como está hoje a crassa ignorância que dominava então o Senso humano; conhecido o alto grau de rebeldia que pesava sobre os sentimentos do homem; conhecida a ferocidade turbulenta e pertinaz dos povos daqueles tempos; concebe-se facilmente a razão de ser de um tal dispositivo de lei. “Para os grandes males os grandes remédios” – diz Perez Escrich.

            Isto explica a repugnante dureza das leis temporárias dadas a Moisés como garantia do seu domínio moral sobre o povo hebreu, confiado à sua jurisdição; leis que destoam da Lei Magna, a Lei das leis, o Decálogo.

            Consideremos, porém, que Moisés não legislava por conta própria, mas por inspiração.

            Médium em grau elevado que era, possuindo a intuição clara como possuía vidência e audição, o preposto do Altíssimo via os anjos do Senhor, ouvia a voz do Verbo de Deus e recebia inspiração dos mensageiros do céu.

            Daí dimanava a força moral de que dispunha e todo o seu poder sobre aquele povo indomável.

            Acresce a isso a circunstância de ser Moisés o iniciador da doutrina posteriormente fundada pelo Cristo, que é a mesma que hoje estudamos em espírito e verdade – a doutrina espírita.

            Como sabeis, Moisés foi o primeiro profeta do Cristianismo.

            Estas ligeiras considerações sobre a pessoa de Moisés visam apenas desviar a suposição de haver sido ele um pretencioso, um déspota, um rancoroso, um violento. Em vez disso, devemos ver nele o homem providencial, o restaurador do pacto de Israel especialmente escolhido pelo Soberano do Céu para guiar o “seu povo” na Terra, começando por tirá-lo do cativeiro em que se achava no Egito.

            Depois desse ligeiro esboço, basta atentar para o caráter corrupto e a índole rebelde daquele povo, pra nos convencermos da indeclinável necessidade de rixas e austeras leis de repressão e punição.

            Eis porque existe na legislação mosaica o aludido dispositivo – “olho por olho”.

            E porque se trata de legislação antiquíssima, de cuja época nos separa uma montanha de séculos, supõem muitos que aquele dispositivo caducou, é letra morta, é lei nula, sepultada pelos séculos. De fato, até certo ponto, essa ordem de ideias é incontestavelmente verdadeira; não devemos, porém, esquecer que o Cristo sancionou, se bem que veladamente, aquele “preceito” com outro preceito, que ainda hoje prevalece e domina o senso humano: “Quem com ferro fere com ferro será ferido.”

            Decorrerá daí um direito outorgado ao homem para ferir seu semelhante?

            Se assim é, se Jesus concede ao homem o direito de ferir seu irmão, não é muito que lhe conceda o de tirar-lhe o muito que lhe conceda o de tirar-lhe o olho. Mas, o absurdo deste conceito é palpável e vossas consciências sabê-lo-ão repelir com dignidade, porque vós bem o sentis que não é assim, porque o Cristo pregava a fraternidade, o amor ao próximo, a caridade, o perdão. Aí está a razão porque dizem muitos que a doutrina do Cristo é eivada de contradições.

            Fatalmente, meus amigos, sempre que a interpretação não for além da expressão da letra, surgirão contradições, atropelando o pensamento, transfigurando a verdade e estabelecendo a dúvida.

            Mas, não mandou o próprio Cristo restabelecer a Verdade – pela Revelação Espírita, pela Revelação Evangélica e sucessivas revelações que trazem seus mensageiros?

            Cumpre-nos abandonar a interpretação material, que já venceu sua época e preencheu o seu fim, e ocuparmo-nos com a interpretação espiritual, única que nos pode conduzir à Verdade e destruir as s contradições.

            Dos textos tradicionais daqueles tempos, ressalta a feição característica do regime moral dos povos de então; regime tumultuário e desordenado, onde dominava a cegueira da ignorância e imperavam as paixões, os vícios, os preconceitos e hábitos extravagantes; consequência natural da voluntariosa rebeldia que avassalava aqueles obscuros espíritos inveterados no erro.

            Como conter um tal povo? Como chamá-lo à ordem e incutir-lhe a ideia do respeito individual, da moral pública e privada, princípios de civismo e regime doutrinário? Como?

            Por meio de leis austeras, princípios terroristas, preceitos atrozes, dispositivos assombrosos daquele povo e da imensa responsabilidade que passava sobre seus ombros. Em compensação, recebia ele a intuição dos meios coercitivos e regeneradores que devia pôr em prática para garantir o êxito da sua árdua missão.

            Foi assim que, moralmente sustentado pelos poderes celestes, de quem se fizera dócil instrumento, conseguiu manter até ao fim sua autoridade sobre aquele povo, através de inúmeras peripécias.

            Mas aquela época passou; os séculos sucederam-se; a humanidade progrediu e o senso humano melhorou, através de penosas existências. Outro é o aspecto da humanidade em nossos dias; outras são as condições que nos envolvem. 

            Ora, a humanidade nunca esteve esquecida ou abandonada, antes esteve sempre sob a tutela dos poderes divinos, que lhe garantem a “assistência espiritual”.

            O Pai, porém, continua a ser indulgente e magnânimo. Por isso, quando julgou oportuno, fez baixar à Terra arautos do Céu, mensageiros do Cristo, a fim de despertarem a humanidade dessa letargia fatal que a vem aniquilando através dos séculos e de inúmeras existências.

            Assim, vieram as revelações e a Verdade foi restabelecida, até onde devia ser, na hora presente.

            O restabelecimento da Verdade, meus amigos, é, para nós, uma forte projeção de luz sobre as sombras dos mistérios, permitindo ver longe, através das escrituras, a fim de compreendermos a razão porque “a letra mata e o espírito vivifica”.

            Tentemos, pois, com o auxílio dos arautos da Verdade, extrair da letra o espírito, a fim de gravar no presente estudo o cunho de verdade, que deve ser a nota vibrante em todo e qualquer estudo espírita.

            No versículo 24 do capítulo 21 do “Êxodo” está escrito: - “olho por olho, dente por dente, mão em mão, pé por pé”.

            Ora, o pensamento ali é claro e pode ser assim traduzido: - mal por mal, violência por violência.” Mas, estes princípios, bem o sabemos, são anticristãos.

            Esta aparente contradição tem, naturalmente, sugerido a muitos a ideia de que Moisés, em um momento de arrebatamento, indignado contra a rebeldia do povo hebreu, cedendo à paixão humana, “tornara-se violento”, formando princípios que tão desumanos nos parecem.

            Mas quem nos disse que Moisés autorizou alguém a “utilizar” aquele instrumento de justiça?!

            Aquele formidável espantalho que figura no versículo 24, é um simples “exemplo”, meus amigos, a propósito da pena indicada no versículo 23 para o homem que ferisse uma mulher pejada, “se daí lhe resultasse a morte”. Pena: “vida por vida”.” Segue-se o exemplo – “olho por olho”, etc...

            Naquele tempo, como hoje, não podia ser dado ao homem o direito de trucidar o homem; porquanto já era vigente o Decálogo, o estatuto da família humana, dada no Monte Sinai e sancionado pelo Verbo divino, para garantia e uso de toda humanidade. O homem nunca foi autorizado à violência. Entretanto, o homem sempre foi e continua a ser violento, em consequência dos defeitos que motivaram a queda do Espírito e hoje o arrastaram ao jugo da matéria, sob o influxo do nosso ambiente “violento por sua natureza.”

            E como necessário se fizesse colocar junto ao homem fortes motivos de terror, fora Moisés inspirado no sentido de conter, ao menos em parte, a ferocidade do homem contra o homem.

            Não esqueçamos, porém, que Moisés era também profeta e iniciador da doutrina que veio a nós; Moisés pressentia em visão o futuro. Por isso mesmo, não é curial interpretar hoje aquele preceito como sendo “letra morta”, antes devemos tomá-lo por advertência permanente, traduzindo o modo por que é executada a lei providencial da Justiça Suprema.

            Se é verdade que Deus escreve o Direito por linhas tortas, o dispositivo da lei mosaica um preceito de Deus, não do homem.

                                                                                                                                                                                                                                                                                 

 

 

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