(Êxodo, cap. 21,
v. 24)
por Geminiano Barboza
Reformador
(FEB) 1916
Eis um belo tema para estudo, esse dispositivo da lei mosaica.
Seja-nos permitido toma-lo por objeto da presente meditação.
“A letra mata, o espírito vivifica”, disse Jesus Cristo.
“Tirai da letra o espírito” – aconselham os mensageiros
do divino Mestre.
Ora, conhecida como está hoje a crassa ignorância que
dominava então o Senso humano; conhecido o alto grau de rebeldia que pesava
sobre os sentimentos do homem; conhecida a ferocidade turbulenta e pertinaz dos
povos daqueles tempos; concebe-se facilmente a razão de ser de um tal
dispositivo de lei. “Para os grandes males os grandes remédios” – diz Perez
Escrich.
Isto explica a repugnante dureza das leis temporárias
dadas a Moisés como garantia do seu domínio moral sobre o povo hebreu, confiado
à sua jurisdição; leis que destoam da Lei Magna, a Lei das leis, o Decálogo.
Consideremos, porém, que Moisés não legislava por conta
própria, mas por inspiração.
Médium em grau elevado que era, possuindo a intuição
clara como possuía vidência e audição, o preposto do Altíssimo via os anjos do
Senhor, ouvia a voz do Verbo de Deus e recebia inspiração dos mensageiros do
céu.
Daí dimanava a força moral de que dispunha e todo o seu
poder sobre aquele povo indomável.
Acresce a isso a circunstância de ser Moisés o iniciador
da doutrina posteriormente fundada pelo Cristo, que é a mesma que hoje
estudamos em espírito e verdade – a doutrina espírita.
Como sabeis, Moisés foi o primeiro profeta do
Cristianismo.
Estas ligeiras considerações sobre a pessoa de Moisés
visam apenas desviar a suposição de haver sido ele um pretencioso, um déspota,
um rancoroso, um violento. Em vez disso, devemos ver nele o homem providencial,
o restaurador do pacto de Israel especialmente escolhido pelo Soberano do Céu
para guiar o “seu povo” na Terra, começando por tirá-lo do cativeiro em que se
achava no Egito.
Depois desse ligeiro esboço, basta atentar para o caráter
corrupto e a índole rebelde daquele povo, pra nos convencermos da indeclinável
necessidade de rixas e austeras leis de repressão e punição.
Eis porque existe na legislação mosaica o aludido
dispositivo – “olho por olho”.
E porque se trata de legislação antiquíssima, de cuja época
nos separa uma montanha de séculos, supõem muitos que aquele dispositivo
caducou, é letra morta, é lei nula, sepultada pelos séculos. De fato, até certo
ponto, essa ordem de ideias é incontestavelmente verdadeira; não devemos,
porém, esquecer que o Cristo sancionou, se bem que veladamente, aquele
“preceito” com outro preceito, que ainda hoje prevalece e domina o senso
humano: “Quem com ferro fere com ferro será ferido.”
Decorrerá daí um direito outorgado ao homem para ferir
seu semelhante?
Se assim é, se Jesus concede ao homem o direito de ferir
seu irmão, não é muito que lhe conceda o de tirar-lhe o muito que lhe conceda o
de tirar-lhe o olho. Mas, o absurdo deste conceito é palpável e vossas
consciências sabê-lo-ão repelir com dignidade, porque vós bem o sentis que não
é assim, porque o Cristo pregava a fraternidade, o amor ao próximo, a caridade,
o perdão. Aí está a razão porque dizem muitos que a doutrina do Cristo é eivada
de contradições.
Fatalmente, meus amigos, sempre que a interpretação não
for além da expressão da letra, surgirão contradições, atropelando o
pensamento, transfigurando a verdade e estabelecendo a dúvida.
Mas, não mandou o próprio Cristo restabelecer a Verdade –
pela Revelação Espírita, pela Revelação Evangélica e sucessivas revelações que
trazem seus mensageiros?
Cumpre-nos abandonar a interpretação material, que já
venceu sua época e preencheu o seu fim, e ocuparmo-nos com a interpretação
espiritual, única que nos pode conduzir à Verdade e destruir as s contradições.
Dos textos tradicionais daqueles tempos, ressalta a
feição característica do regime moral dos povos de então; regime tumultuário e
desordenado, onde dominava a cegueira da ignorância e imperavam as paixões, os
vícios, os preconceitos e hábitos extravagantes; consequência natural da
voluntariosa rebeldia que avassalava aqueles obscuros espíritos inveterados no
erro.
Como conter um tal povo? Como chamá-lo à ordem e
incutir-lhe a ideia do respeito individual, da moral pública e privada,
princípios de civismo e regime doutrinário? Como?
Por meio de leis austeras, princípios terroristas,
preceitos atrozes, dispositivos assombrosos daquele povo e da imensa
responsabilidade que passava sobre seus ombros. Em compensação, recebia ele a
intuição dos meios coercitivos e regeneradores que devia pôr em prática para
garantir o êxito da sua árdua missão.
Foi assim que, moralmente sustentado pelos poderes
celestes, de quem se fizera dócil instrumento, conseguiu manter até ao fim sua
autoridade sobre aquele povo, através de inúmeras peripécias.
Mas aquela época passou; os séculos sucederam-se; a
humanidade progrediu e o senso humano melhorou, através de penosas existências.
Outro é o aspecto da humanidade em nossos dias; outras são as condições que nos
envolvem.
Ora, a humanidade nunca esteve esquecida ou abandonada,
antes esteve sempre sob a tutela dos poderes divinos, que lhe garantem a
“assistência espiritual”.
O Pai, porém, continua a ser indulgente e magnânimo. Por
isso, quando julgou oportuno, fez baixar à Terra arautos do Céu, mensageiros do
Cristo, a fim de despertarem a humanidade dessa letargia fatal que a vem
aniquilando através dos séculos e de inúmeras existências.
Assim, vieram as revelações e a Verdade foi
restabelecida, até onde devia ser, na hora presente.
O restabelecimento da Verdade, meus amigos, é, para nós,
uma forte projeção de luz sobre as sombras dos mistérios, permitindo ver longe,
através das escrituras, a fim de compreendermos a razão porque “a letra mata e
o espírito vivifica”.
Tentemos, pois, com o auxílio dos arautos da Verdade,
extrair da letra o espírito, a fim de gravar no presente estudo o cunho de
verdade, que deve ser a nota vibrante em todo e qualquer estudo espírita.
No versículo 24 do capítulo 21 do “Êxodo” está escrito: -
“olho por olho, dente por dente, mão em mão, pé por pé”.
Ora, o pensamento ali é claro e pode ser assim traduzido:
- mal por mal, violência por violência.” Mas, estes princípios, bem o sabemos,
são anticristãos.
Esta aparente contradição tem, naturalmente, sugerido a
muitos a ideia de que Moisés, em um momento de arrebatamento, indignado contra
a rebeldia do povo hebreu, cedendo à paixão humana, “tornara-se violento”,
formando princípios que tão desumanos nos parecem.
Mas quem nos disse que Moisés autorizou alguém a “utilizar”
aquele instrumento de justiça?!
Aquele formidável espantalho que figura no versículo 24,
é um simples “exemplo”, meus amigos, a propósito da pena indicada no versículo
23 para o homem que ferisse uma mulher pejada, “se daí lhe resultasse a morte”.
Pena: “vida por vida”.” Segue-se o exemplo – “olho por olho”, etc...
Naquele tempo, como hoje, não podia ser dado ao homem o
direito de trucidar o homem; porquanto já era vigente o Decálogo, o estatuto da
família humana, dada no Monte Sinai e sancionado pelo Verbo divino, para
garantia e uso de toda humanidade. O homem nunca foi autorizado à violência.
Entretanto, o homem sempre foi e continua a ser violento, em consequência dos
defeitos que motivaram a queda do Espírito e hoje o arrastaram ao jugo da
matéria, sob o influxo do nosso ambiente “violento por sua natureza.”
E como necessário se fizesse colocar junto ao homem
fortes motivos de terror, fora Moisés inspirado no sentido de conter, ao menos
em parte, a ferocidade do homem contra o homem.
Não esqueçamos, porém, que Moisés era também profeta e
iniciador da doutrina que veio a nós; Moisés pressentia em visão o futuro. Por
isso mesmo, não é curial interpretar hoje aquele preceito como sendo “letra
morta”, antes devemos tomá-lo por advertência permanente, traduzindo o modo por
que é executada a lei providencial da Justiça Suprema.
Se é verdade que Deus escreve o Direito por linhas
tortas, o dispositivo da lei mosaica um preceito de Deus, não do homem.
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