Olá meu
irmão!
Humberto
de Campos
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Novembro 1943
- A disposição antiga, acentuava Cipriano Neto - é verdadeiro tônico espiritual. Não raro, envenenamos o coração, a força de insistir na máscara sombria. Má catadura é moléstia perigosa, porquanto as enfermidades não se circunscrevem ao corpo físico. Quantos negócios de muletas, quantas atividades nobres interrompidas, em virtude do mal humor dos responsáveis! Claro que ninguém se deixe absorver por malandros de esquina, mas o respeito e a afabilidade para com as criaturas honestas, seja onde for, constituem alguma coisa de sagrado que não esqueceremos sem ferir a nós mesmos.
E, frente à pequena assembleia, toda
ouvidos, Cipriano, com a graça de sua privilegiada inteligência, continuou,
após longa pausa:
- Na Terra, o preconceito fala muito
alto, abafando vozes sublimes da verdade superior. Nesse capítulo, tenho minha
experiência pessoal, bastante significativa.
Meu amigo
vagueou o olhar muito lúcido, através do horizonte longínquo, como a vasculhar
o passado, calou-se por alguns momentos e prosseguiu:
- É quase inacreditável, mas o meu
fracasso em Espiritismo não teve outra causa. Não ignoram vocês que meu coração
de pai, dilacerado pela morte do filho querido, fora convocado à doutrina dos
Espíritos, ansioso de esclarecimento e consolação,
Banhado de conforto sublime, senti
que minhas lágrimas de desesperação se transformaram em orvalho de
agradecimento à bondade de Deus, Meu filho não morrera. Mais vivo que nunca,
endereçava-me carinhosas palavras de amor. Identificara-se de mil modos. Não
havia lugar a dúvidas. Inclinei-me, então, à doutrina renovadora. Saciado pela água
de santas consolações, não sabia como agradecer à fonte. Foi aí que recordei
minhas possibilidades intelectuais. Não seria justo servir ao Espiritismo,
através da palavra? Poderia escrever para os jornais ou falar em público,
Fundamente reconhecido à nova fé, atendi à primeira sugestão que um amigo me
ofereceu e dispus-me a fazer uma conferência. Anunciou-se
o feito e, no dia aprazado, compacta assistência esperou-me a confissão.
Seduzido pela beleza do Espiritismo cristão, falei longamente sobre a caridade.
Aplausos, abraços, sorrisos, felicitações. No círculo de meus companheiros de
literatura, porém, o assunto fizera-se obrigatório. Voltando à Avenida, no dia
imediato ao acontecimento, meu esforço foi árduo por convencer aos confrades de
letras que não me achava louco. Infelizmente, contudo, minha decisão não se falava
senão à vaidade. Pronunciara a conferência como se o Espiritismo necessitasse
de mim. Admitia, no fundo, que minha presença honrara, sobremaneira, o auditório,
que a codificação kardeciana encontrara em mim prestigioso protetor. Desse
modo, alardeava suma importância em minhas novas palestras, citava a
antiguidade clássica, recorria aos grandes filósofos, mencionava cientistas
modernos. Quando nos encontrávamos, meus colegas e eu, no ápice das discussões
afetuosas, eis que surge o Elpidio, velho conhecido meu e antigo tintureiro em
Jacarepaguá. Sapatos rotos, calças remendadas, cabelos despenteados, rosto
suarento, aproximou-se de mim e estendeu-me a destra, exclamando alegre:
Olá meu irmão! Meus parabéns!... Fiquei muito satisfeito
com a sua conferência!
Entreolharam-se
meus amigos, admirados. E confesso que respondi à saudação efusiva, secamente,
movimentando levemente a cabeça e sentindo-me profundamente humilhado. Face ao
meu silêncio, o tintureiro, despediu-se, mostrando enorme desapontamento. “É de
sua família?” - Indagou um companheiro mais irônico. “Estes senhores espiritistas
são os campeões da ingenuidade!”, exclamou outro circunstante , Enraiveci-me.
Não era desaforo de semelhante homem do povo chamar-me irmão ali em plena
Avenida, frente aos colegas de tertúlia literária? Estaria, então, obrigado a
relacionar-me com toda espécie de vagabundos? Não seria aquilo irmanar-me a rebotalhos
de gente, na via pública? O incidente criou em mim vasto complexo de inferioridade.
Cegavam-me, ainda, velhos preconceitos sociais, e a ironia dos companheiros
calou-me, fundo, no espírito. A ausência de afabilidade, a incompreensão grosseira
dominaram-me por completo, O fermento da negação trabalhou-me o íntimo, levedando
a massa de minhas disposições mentais. Resultado? Voltei à aspereza antiga e,
se cuidava de doutrina, confinava-me a reduzido círculo doméstico. Não estimava
a companhia ou a intimidade daqueles que considerava inferiores. Os anos, todavia,
correm metodicamente, alheios à nossa vaidade e ignorância, e impuseram-me a
restituição do organismo cansado ao seio acolhedor da terra. Sabem vocês por
experiência própria, o que nos acontece a essa altura da existência humana, Gritos
estentóricos de familiares, pavor de afeiçoados, ataúde rescendendo aromas de
flores das convenções sociais. Em meio da perturbação geral, senti que um sono
brando apoderava-se de mim. Nunca pude saber quantos mas gastei nesse repouso
compulsório. Despertando, porém, debalde clamei por meu filho bem amado. Sabia perfeitamente
que abandonara a esfera carnal e ansiava por encontrar-lhe o carinho. Deixei a
residência antiga, ferido de amargurosas preocupações, Atravessei ruas e
praças, de alma opressa. Atingi a Avenida, onde me dava ao luxo de palestrar
sobre ciência e literatura. E ali mesmo, junto ao café aristocrático, divisei
alguém que não me era estranho às relações individuais. Não tive dificuldades no
reconhecimento. Era o Elpídio, integralmente transformado, evidenciando nobre
posição espiritual, trocando ideias com outras entidades da vida superior. Não
mais os sapatos velhos, nem o rosto suarento, mas singular aprumo, aliado à
expressão simpática e bela, cheia de bondade e compreensão. Aproximei-me,
envergonhado. Quis dizer qualquer coisa
que revelasse minha angústia, mas obedecendo a impulso que jamais soube explicar,
apenas pude repetir as antigas palavras dele: "Olá meu irmão! Meus parabéns!"
Longe, todavia, de imitar-me o gesto, grosseiro e tolo
de outro tempo, o generoso tintureiro de Jacarepaguá abriu-me os braços,
contente, e exclamou com sincera alegria:
- Ó meu amigo! Que satisfação! Venha
daí, vou conduzi-lo ao seu filho!
Aquela bondade espontânea, aquele
fraternal esquecimento de minha falta eram por demais eloquentes e não pude
evitar as lágrimas copiosas...
Nossa pequena assembleia de
desencarnados estava igualmente comovida, Cipriano calou-se, enxugou os olhos úmidos
e terminou:
- A experiência parece demasiadamente
humilde, entretanto; para mim, representou lição das mais expressivas. Através
dela, fiquei sabendo que a afabilidade é mais que um dever social, é alguma coisa
de Deus que não subtrairemos ao próximo, sem prejudicar a nós mesmos.
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