terça-feira, 13 de abril de 2021

O Cristo de Deus

 
                                                                           detalhe de uma das portas do Duomo em Milão, Itália

                

                “Dir-vos-ei uma coisa: podem eventualmente existir na terra espíritos que tenham revestido essa aparência, e que são tomados por homens...

                São casos raros. Deles tendes exemplos na Bíblia.”

                O Espírito de S. Luís

                (“Revue Spirite”, 1859 pág. 39)

                 Nota importante: S. Luís, autor desta comunicação que Allan Kardec aceitou e transcreveu em artigo da própria lavra, sobre os “agêneres”, era, por ele Kardec, tido como seu Guia Espiritual.


 Capítulo III do livro

“O Cristo de Deus”

por Manuel Quintão  (Ed. FEB – 1930)

             Dos varões nascidos de mulher, nenhum maior que João Batista

             Dizem os adversários da Revelação dada ao bastonário de Bordéus, que esta passagem atesta que Jesus quis apenas na sua magnânima simplicidade elevar a pessoa de João (sic).

            É curioso, realmente, esta exegética tendenciosa e sistemática!

            Toma-se um conceito desta profundeza, isolam-se lhe as premissas, calam-se os antecedentes que o provocaram e resolve-se de maneira simplista a questão: - era a modéstia que ditava aquelas palavras.

            Convém, contudo, ser menos perfunctório e, para bem aquilatar da modéstia d’Aquele que também se afirmara “A Verdade”, considerar o versículo 10 do Cap. XI de Mateus, do qual se originou a assertiva do Divino Mestre, a saber:

             “Porque este é aquele de quem está escrito: eis que diante de tua face envio o meu Anjo, que aparelhará teu caminho diante de ti.”

             E quem era, pois, esse Anjo senão aquele de quem Pedro dissera: tu és o Cristo, filho de Deus vivo?

            Não só diante de Pedro o Divino Mestre transigiu, tergiversou com essa presumida “modéstia”, deixando-se firmar-se na consciência dos que o ouviam a noção da sua hierarquia extra mundana, com vistas ao futuro.

            Nada obstante, ao invés de corrigir ali mesmo o provocado testemunho do apóstolo da Fé, que lhe disse o Mestre?

             “Abençoado tu, Cefas, porque não foram a carne nem o sangue quem isso te revelou, mas meu Pai que está nos céus.”

             Não foi o homem, não foi o discípulo num arroubo de entusiasmo, que consagrou o ascendente do Anjo, mas o médium iluminado, sobre o qual seria assentada a pedra fundamental da igreja, que tanto vale dizer – doutrina.

            Mas, reconsiderando a assertiva do Divino Mestre em relação à personalidade do Precursor, convém não perder igualmente de vista as palavras deste mesmo Batista, quando Aquele se lhe apresentou às margens do Jordão:

             “E eu o vi e testificado tenho que este é o Filho de Deus.” (João, capítulo I, v. 34)

             Os apologistas do corpo carnal do Messias de Deus, em sustentarem “quand même” (ainda) a sua tese, incidem no erro judiciosamente assinalado pelo abade René Kopp em seu magnífico estudo intitulado “O Problema Religioso”, quando diz:

             “Os críticos eliminaram do evangelho como mítico todo o elemento miraculoso. A esta eliminação radical falta discernimento. Importa, de fato, distinguir os fatos da sua interpretação.” – (Pág. 129)

             Ora, a interpretação desses fatos não pode ser tentada com o só criterium unilateral, a respigar nos textos aqueles que melhor convenham, e silenciando quantos, por sua configuração emblemática, contrariam, quando não infirmam, o ponto de vista preconcebido.

            Assim sendo, não se pode, sem eiva de parcialidade, excluir do problema o método sintético, para abranger o problema do conjunto.

            Ora, quem estuda os Evangelhos e pretende neles e por eles conhecer a origem, a vida e a finalidade do Cristo de Deus entre os homens, para logo sente perpassar naquelas páginas algo de grandioso e extraordinário, que seria contraditório e pueril, quando não inexpressivo, uma vez retirado o sentido oculto.

             “Minhas palavras são espírito e vida, a letra mata, o espírito vivifica; quem tiver olhos de ver, veja.”

             São conceitos e preceitos indicativos de que, para fora e para além da realidade concreta – concreta para os homens -, havia todo um mundo de realidades transcendente a desvendar.

            A Anunciação, a Visitação de Isabel, a Concepção, a Vida e Feitos, como a Morte e Ressureição de Jesus, são fenômenos que se não podem relegar para o domínio das fábulas, nem como fábulas resistiriam ao racionalismo de vinte séculos estruturando a evolução mental e consciencial da Humanidade até os nossos dias, a despeito de todos os erros e desvarios praticados à sua sombra.

            O Cristianismo decalcado no maravilhoso foi, é e será o pábulo da Humanidade, como para justificar que o legado era verdadeiramente divino para todos os tempos.

            A essa conformidade basilar pretende-se, agora, opor a opinião de um outro qualquer Espírito desencarnado, em plenários de restrita espiritualidade, a priori dispostos com fins particularistas, para resolver ou decretar a Verdade.

            Ora, a coisa mais sabida é que a afinidade mental é uma lei indefectível, à qual não escapam os Espíritos, que levam para o plano da vida etérea a sua mentalidade com todos os erros e prejuízos do nosso mundo.

            Dizer-se, por exemplo, que João, o Evangelista, ou João, o Precursor; veio pelo médium Hugo d’Alessi firmar doutrina incontroversa, é simplesmente insinuar que a Verdade, no caso e para o caso, não dependia de Kardec, que não sentenciou na lide, nem dos Espíritos que o assistiram, e não deram, no curso de toda a sua tarefa, opinião definida a respeito.       

            O critério de autenticidade que o divulgador da Boa Nova atribui a essa comunicação é interessante e merece transcrito e comentado:

             (Hugo d’Alessi, médium desenhista, viu-se com a mão tomada para fazer um desenho. Inconscientemente fez o retrato de João, o precursor. À noite, o médium ignorante do fato teve a incorporação do Espírito de João, o Precursor, que proferiu as seguintes palavras). (1)

                    (1) “Jesus de Nazaret” – Honório Rivereto

             De sorte que, para o ilustre panegirista da “carnalidade” específica de Jesus, o cunho da veracidade deve estar no fato do desenho antecipado do retrato...

            Outro Espírito, não diremos mistificador, mas imbuído das mesmas ideias do seu auditório, não poderia deliberadamente tracejar o retrato e dar em seguida aquela comunicação...

            De outra forma falasse ele, dissesse, por exemplo, que Jesus não veio em carne – porque nem toda carne é a mesma carne – e seria um intrujão sem honras de cita na galeria de “La Survie”.

            Perfilhado o critério das opiniões singulares, não uma, porém dezenas e até centenas de comunicados apontaríamos, confirmativos da teoria do corpo fluídico.

            E tomados, e recebidos, seja dito, em circunstâncias fortuitas, que são, in partibus, elementos de credibilidade.

            A esse recurso preferimos consignar a consagração de verdadeiras obras compactas e complexas, vazadas do plano espiritual, a indiciarem contexturas solidíssimas do postulado em equação.

            Leia-se, por exemplo, Bittencourt Sampaio (2), em obra mediúnica, que lhe ressumbra o estilo e a personalidade inconfundível:

                 (2) “Jesus perante a Cristandade”

             “Se não pela vontade do varão nem da carne que se forma o espírito, mas sim pela vontade de Deus; se o papel da mulher, na gestação, é unicamente guardar o corpo que tem de conter o espírito que vem apresentar-se no mundo, logicamente podemos afirmar que a Virgem Maria foi a N.S. Jesus Cristo, isto é, deu-lhe o corpo conservando sempre a sua virgindade, por influência do Espírito Santo, a falange dos bons Espíritos que foram buscar, no coração da própria natureza, o tênue véu de carne aparente que envolveu o Divino Mestre e do qual Ela se desprendia, por ação de sua vontade, quando ainda não era chegado a hora das suas angústias.”

             Quererão os ilustres opositores saber como foram lançadas ao mundo estas e outras rajadas de luz e quem as endossou e jamais as desmentiu do plano espiritual?

            Pois saibam que se trata de obra não esporádica mas predita em comunicação espontânea, inserta no livro “Trabalhos Espíritas” pelo Dr. Antônio Luiz Sayão.

            Eis como os signatários da apresentação da obra de Bittencourt Sampaio, todos confrades integérrimos, encabeçados pelo venerando Dr. Bezerra de Menezes, se referem ao fato:

             Nessa importantíssima peça, o alto Espírito que a ditou, faz sentir com veemência a necessidade de cerrarem fileiras os que desejam ser verdadeiros discípulos de Jesus, no intuito de restabelecer-se e firmar-se, em espírito e verdade, a puríssima doutrina do Evangelho. (3)

            E para a obtenção de tão auspicioso desideratum prometeu ditar um livro, em que se apresente aos olhos da Humanidade a Imagem de N. S. Jesus Cristo, perante a história do Cristianismo.”

             (3) O grifo é nosso.

          Não se trata, como vemos, de ligeira mensagem oportunista, dessas que, com foros de autenticidade, sem fundamentos lógicos, despidas de senso crítico-filosófico, dadas antes para lisonjear opiniões humanas preconcebidas, em estilo contencioso e autoritário, correm mundo a suscitar dissídios e prevenções à maioria dos crentes, desatentos ou simplesmente desapercebidos para a conspecção das finalidades superiores da Doutrina, que são de ordem divina e, como tais, transcendentes ao senso comum.

            Trata-se, ao contrário, de uma obra da cerrada exegese, decalcada, esmerilhada e sustentada com os próprios textos evangélicos. Do seu mérito, mais alto ainda que a idoneidade moral e intelectual dos que a receberam e aceitaram, falam dos óbices que suscitou, as lutas que desencadeou, porque verdade também é que os grandes princípios não se firmam nem se ampliam, que na Terra, quer no Espaço, sem hostilidades e sem atritos.

            O pensamento, o objetivo precípuo do seu autor ressalta, ali, de uma evidência meridiana quando se fala de restabelecer e firmar a puríssima doutrina evangélica.

            Sim, absolutamente. Quem não vê, quem não sente aí sintetizado todo um programa atinente à Terceira Revelação, vital por excelência?

            Sim, porque a verdade é que Allan Kardec, estruturando a doutrina codificada no Cristianismo, não nos deu dos Evangelhos, em suas obras, senão a parte moral, aquela que, já consignada e resumida no Decálogo, não pudera suscitar ataques e controvérsias.

            Ou porque os Espíritos prepostos não lho denunciassem, ou porque ele mesmo, no seu critério de homem, como todo homem sujeito a prejuízos contingentes de tempo e meio, julgasse inoportuno ou prematuro, a verdade é que não abordou nem solucionou as Escrituras no que elas têm de substancial e transcendente, isto é – as questões de origem e fins, aquelas mesmas que engendraram a divinização do Filho do Homem.

            Mas verdade é que ele, Kardec, se não afirmou, também não negou, de modo claro e absoluto, a hierarquia extraterrena do Filho de Deus.

            E o que fizesse, desautorizando-se a si próprio na afirmativa de que a Doutrina dos Espíritos é progressiva no tempo e no espaço, não fora isso motivo para violentarmos e a consciência e repelir sistematicamente as vozes que da outra margem nos chegam por aclarar o assunto.

            Isto de mutilar textos fazendo do Espiritismo colcha de retalhos com pontos de vista e tramas pessoais, é entregar a Humanidade ao arbítrio dos Espíritos, dando-lhe foros de juiz em causa própria. Abstrair da doutrina o seu ascendente religioso, divino, é o mesmo que estancar-lhe as fontes renovadoras, para dividi-la e subdividi-la em prismas escolásticos, estéreis quão dissolventes.

            Se o Evangelho é a bússola dos Espíritos, se ele é o paradigma incontroverso da Verdade para o nosso ciclo de evolução intelectual e moral, a obra de seu discernimento não pode e não deve ser fragmentária, facultativa, acomodatícia, aleatória.   

            Naturalmente, quereriam os adversários da teoria do corpo fluídico que os Espíritos lhes viessem de forma categórica explanar, senão demonstrar praticamente, materialmente, a formação desse corpo. Não lhes bastam as materializações específicas por outrem obtidas... Mas porque eles, que fazem tanta questão da matéria, a ponto de lhe subordinar de forma absoluta a existência e a evolução do Espírito, não nos dão de formação da célula, do plastídio, uma noção específica, concreta, capaz de timbrar os nossos sentidos corporais? Que é, que será a matéria em sua lídima expressão filosófica?

            Deus, onipotente, rege, conforma, materializa o Universo. É um postulado que os nossos sofômanos (os que tem mania de se passarem por sábios) não contestam.  Deus cria os Espíritos, atualiza a vida em cambiantes infinitos, mas Deus não pode, contudo, suscitar a vida num corpo terreno, fora das leis conhecidas da procriação sexual!

            Mas, em nome de que princípio científico, com que autoridade filosófica se pode garantir que a ontogênese dos nossos dias (referimo-nos à apreciável) fosse a mesma de todos os tempos e seja a mesma para todos os tempos?

            Então, não é claro, lógico, intuitivo, racional o que nos ensina a Paleontologia, que a modificação geológica é acompanhada da transformação zoológica? Quem poderia sentenciar que de milhares ou milhões de seres que antecederam ao nosso estágio mesológico, sem deixar traços de fossilização, muitos houvessem abrolhado por geração assexuada?

            E quem poderá, igualmente, garantir que amanhã, modificada ab-rupta (de forma repentina) ou lentamente as condições do ambiente, não possam prevalecer outros processos biogenéticos?

            É isto um sacrilégio, um absurdo? Se-lo-á para os que, encastelados no seu misoneísmo (repulsa a tudo que é novo), confinados no próprio orgulho, supõe reter a última expressão da Verdade infinita, de forma definitiva.

            Não o é, porém, para nós que, dentro da mesma ciência revelada, sabemos e estimamos indefinida a vida universal.

            Certo, estas elucubrações, estes postulados da Razão e da Consciência não são vulgares, não interessam à generalidade dos crentes, que prefere focalizar e se contenta com as soluções mais humanistas, mais imediatamente adstritas à vida planetária, mais rasteiras, por assim dizer, da Doutrina dos Espíritos.

            Para estes, a obra inicial e preliminar de Kardec tem caráter definitivo, satisfaz completamente, encontram nela a solução do todos os problemas que os afagam ou que os torturam.  

            Mas não foi para estes, certamente, que o insigne Codificador lançou a hipótese de uma breve reencarnação, a fim de completar a sua obra.

            Muito menos foi para eles que o Cristo de Deus, em rasgo de iluminação própria do seu ascendente dominador de tempo e espaço, assegurou:

             “Muitas outras coisas teria a dizer-vos se estivésseis em estado de as compreender, mas, eu vos enviarei o Consolador prometido, que vos ensinará todas as coisas e ficará eternamente convosco.”

            Eternamente convosco!  Será que a Eternidade seja este nosso presente fictício e atribulado? Será que já saibamos todas as coisas?

            Como conciliar estas declarações tão claras, tão categóricas, com a ideia primacial de progressividade indefinida, de onisciência e onipotência absolutas de Deus?

            São perguntas que deixamos à argúcia dos exegetas do kardecismo o encargo de responder.  


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