sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

A brincadeira do copo

 


A brincadeira do copo

por Luciano dos Anjos   Reformador (FEB) Janeiro 1969

             Aquela senhora, de louvável boa vontade e minha companheira eventual em determinada sessão de materialização para a qual eu fora convidado, conta-me eufórica as suas incursões:

            - Imagine o senhor que começamos a fazer a experiência do copo que anda sozinho.  Há uma médium muito boa de efeitos físicos e as sessões lá em casa, têm sido maravilhosas.  

            Não tenho o vezo de me maravilhar com os fenômenos supranormais, que, se servissem apenas como motivo dum primeiro impacto junto aos excessivamente incrédulos, mais não serviriam senão para despertar deletéria curiosidade e perigoso divertimento. Por isso mesmo ponderei ante a informação que me era dada naquele instante:

            - Mas a senhora tem procurado dirigir essas reuniões no sentido do aprendizado puro, do aproveitamento moral indispensável?

            -Ah, sim, fazemos sempre uma prece antes, concentramo-nos com muita sinceridade e aí os Espíritos começam a manifestar-se. Tudo Espírito de muita luz, de muita elevação...

            O arremate bastou para forjar a minha preocupação. Aquela notícia de que tudo era Espírito de luz não chegou descansada em meu coração.  Ao contrário, o que se sabe é que, com raríssimas exceções, os Espíritos que se apresentam nesse tipo de reunião são sempre espíritos sempre bastante involuídos, sem nenhuma elevação espiritual. Em alguns, com excesso de tolerância podemos lobrigar no máximo o desejo que realmente possam revelar de não pretenderem ir além do entretenimento, sem objetivarem especificamente o mal e a amoralidade.

            Mas isto não é tudo num trabalho em que o perigo pode sobrevir até mesmo em clima de boa vontade. Ela adivinhou em meu olhar essa preocupação e, afinal, fez-me o convite:

            - Venha na próxima semana. O senhor vai conversar com eles e verá que beleza.

            Aceitei. Aceito sempre. Pelo menos os convites. Os resultados daquilo a que assisto é que nem sempre posso aceitar. No dia e hora aprazados eu estava em sua casa. Ambiente em silêncio, respeitoso. Ela me pede para fazer a prece de abertura. Não me furto. Segue-se a concentração. Em 10 minutos o copo estala, treme, bate e logo desliza sobre a mesa. O alfabeto está à vola. e sobre as letras o copo vai dando as suas paradas até formando frases inteiras. O método é primitivíssimo, cansativo e completamente superado.

            - Quem está aí? - perguntei a meio tom.

            Respondeu o copo:

            - Allan Kardec!..

            E com aquela gelou-me a espinha... Quem era eu - pensei com meus botões - para confabular com o Codificador, o Missionário da Doutrina Espírita...? Medrou a minha intranquilidade. Daqui a pouco, naquele ritmo, ia descer o Cristo e depois o próprio Deus e eu por certo não teria condições sequer de estar presente para receber o Criador! Escusado dizer ao leitor que, de frase em frase, fui conduzindo a conversação até pedir ao “Allan Kardec” que não se preocupasse com a gente, que estávamos muito bem, estudando frequentemente a sua obra, e ele não precisaria retornar àquela casa para gastar conosco o seu precioso tempo. Partiu, visivelmente jubiloso com o meu confete.

            Brincadeira, má-fé ou desequilíbrio? Não pude adentrar-me na análise, pois lá não voltei. Aconselhei a dona da casa, com muito cuidado para não magoá-la, a suspender temporariamente as reuniões até que todos fizessem preliminarmente uma espécie de curso intensivo sobre a Doutrina Espírita. A grande realidade é que as criaturas “descobrem” o fenômeno e se perdem no meio dele por absoluta carência da parte mais essencial: o estudo teórico das manifestações mediúnicas. Essa inópia, regra geral, leva a desastrosas consequências: Espíritos matreiros, ingênuos ou desabusados fazem-se passar por grandes personagens, deitam falação, pontificam lições esdrúxulas, transformam-se em pequenos semideuses e acabam fascinando ou até fanatizando completamente os que lhes rendem as homenagens da vaidade, da submissão, da subserviência e do endeusamento. Eis que Allan Kardec - o verdadeiro, não o do copo – com carradas de bom-senso e de inquestionável autoridade, sentenciou os dois principais mandamentos do Espiritismo: - 1º Amai-vos: 2º – Instruí-vos.

                                               (Ext. do “Diário de Notícias” de 22-9-68)


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