Kardec e
Roustaing
por M. Quintão Reformador (FEB) 1º Julho 1917
Por agora, uma vez lançado aos domínios da publicidade o controvertido problema, não há como fugir aos óbices que suscita, um pouco por toda a parte, a sua configuração filosófica, contendendo com a interpretação de muitos, estudiosos confrades, a quem, no perquiri-lo, gostosamente atribuímos o desejo de acertar.
Aliás, esse prurido de dúvidas e objeções que a outrem
poderia parecer intempestivo e irritante, para nós serve de realçar a sua
oportunidade, como premissa frutuosa de maturadas convicções.
E uma vez colocada a lide no terreno elevado dos
princípios, revestida desse cunho de serenidade que a Doutrina só por só
preceitua, motivo de satisfação é também, para nós, respigar no assunto.
Já
o Diretor desta revista acudiu a tempo com a transcrição textual (1) do próprio
Allan Kardec, respeito à tarefa evangélica do próprio Roustaing.
Foi justamente o
que nos fez dizer que ele, Kardec, missionário fiel da primeira hora, não quisera
sacrificar o todo às partes.
Esta só consideração é de molde a nos fazer precavidos no
rastrear o mestre, cuja envergadura moral e intelectual de missionário, além de
uma assistência excepcional do mundo dos espíritos, de antemão lhe assegurava
uma previsão, uma sutileza, uma penetração intelectual que estamos longe de
atingir.
Mas daí, dessa precaução e comedimento a uma abstenção sistemática
de exegese e comentário, vai um abismo que só grosseiros sofismas não deixariam
transpor, uma vez que é da essência mesma da Doutrina a evolução da consciência
cimentada no raciocínio.
Façamos, pois, o nosso estudo consoante o cabedal de que
dispomos, mas façamo-lo com humildade, não como quem pretende tudo resolver e a
todos convencer, mas como quem sabe, e de sobejo, que a Verdade Absoluta, só pode
existir para Deus.
*
Antes
de o fazer, porém, permita o nosso irmão baiano lhe estranhemos o anonimato.
Nós
outros, espiritistas e estudantes do Evangelho em espírito e verdade, somos
chamados - e agora mais que nunca - a estabelecer uma nova ordem de relação entre
os homens; precisamos aproximar-nos para nos compreendermos, e precisamos compreender-nos
para nos amarmos. Nem se diga, na espécie, que a personalidade é um acidente,
quando a ideia prepondera. Não.
A personalidade,
na Doutrina, é a responsabilidade definida, é o fator consciente do coletivismo.
Se não há anonimato
entre os espíritos, se o personismo é inconfundível entre eles, como admiti-lo
entre os encarnados apercebidos dessa lei?
Isto posto, abordemos a primeira objeção do nosso
missivista:
Ele nos pergunta se os prismas da Verdade Divina, que
afirmamos una e íntegra quanto variável ao infinito, podem contradizer-se tão salientemente como no caso da reencarnação.
Subsiste, por conseguinte, para o interlocutor, a contradição
que ab
initio infirmamos.
Entretanto, nos parece que a, para nós, aparente contradição,
não incide na reencarnação e, sim, na encarnação.
Aquele, é uma lei imprescritível para a humanidade
terrena, tanto em Kardec como em Roustaing.
Para este, a encarnação é a consequência de uma falta (simbolismo
presumível do pecado original) e essa falta pode ocorrer em qualquer grau da
escala espiritual, no ascenso do espírito para Deus e daí, a encarnação em
mundos correspondentes, mais ou menos expiatórios.
Para aquele, a encarnação é consubstancial a todo o
espírito criado.
Sê-lo-á?
Nós cremos ter
deixado patente o nosso pensamento no artigo anterior: a revelação de Roustaing
abrange, a nosso ver, um plano universal, que alteia a onipotência Divina; já a
revelação de Kardec adstringe-se à esfera planetária e nela é integra e
completa, também.
Contradição haveria, sim, se em Kardec apreendêssemos que
a biogênese terrena era extensiva a todo o universo, que a co-materialidade do
ser era uma lei universal.
E, no entanto, o que do seu ensino se infere é que há mundos
materiais, mundos fluídicos, mundo etéreos, por gradações de uma gama infinita.
Acha Um adepto que
Roustaing deveria ter explicado e desenvolvido o que Kardec deixou de aclarar.
A parte a gratuidade da exigência, ou exigência por exigência,
fora lícito lamentar que Kardec não recebesse formal explicação da origem e
fins da existência dos animais.
Aliás, bem ao contrário do que supõe o nosso missivista,
em Roustaing muito se alhana (aclara) esse problema.
É até um ponto,
esse, magistralmente tratado nessa obra, que, repetimos, se por vezes nos
parece sibilina (misteriosa), não deixa de, no seu conjunto majestoso, iluminar a
nossa inteligência e afeiçoa-la a mais altos descortinos.
A ilação (conclusão) de responsabilidade
concomitante à encarnação dos animais não se nos afigura colher no caso:
primo – porque,
não havendo consciência definida, não pode haver responsabilidade;
secundo –
porque Roustaing não inculca a encarnação animal, como penalidade do “princípio
inteligente”.
A corporeidade fluídica do Cristo, problema que Um adepto considera simplesmente formidável, está para nós abimo
pectore (do fundo do meu coração) resolvido, considerando a noção
possível de materialidade, de rosto com os fenômenos mediúnicos.
Para nós, a agregação molecular não é fenômeno arbitrário:
da simples maneira ao homo sapiens dos
naturalistas materialistas, ela obedece a uma inteligência extrínseca, e a sua
morfologia não significa mais que evolução do princípio que a manipula e vitaliza.
(2)
Não é com isto dizer que tenhamos resolvido o assunto,
mas que o não julgarmos contrário à ordem natura, partindo por indução das leis
conhecidas para as desconhecidas.
Não há, de fato, na corporeidade fluídica, ab-rogação de
leis da natureza; não há milagre: o que há é fenômeno, cuja natureza intrínseca
desconhecemos, como, de resto, desconhecemos substancialmente a eletricidade; a
luz, o calor, o éter, o átomo, tudo.
Aos estudiosos de boa vontade, portanto, sem exorbitância
daquela zona peculiar de cada qual, a que Paul Gibier denominava zona
lúcida, recomendamos o tema, subordinado às considerações seguintes:
Os Evangelhos são ou não são verdadeiros: se são verdadeiros
o Cristo não podia, agrilhoado a um corpo material, como o nosso, realizar os
prodígios do seu apostolado.
Nenhum homem,
nenhum espírito encarnado, nenhum mago, nenhum faquir, deu, jamais, testemunho de
um tal poder.
Se os Evangelhos são apócrifos; se o Cristo foi um
simples filósofo milenarmente distanciado do seu tempo, então, não há porque os
estudarmos, em flagrante contradição com a Revelação e o subsidiário ensino dos
espíritos, que nele apresentam como DIVINO MODELO e recomendam a sua palavra como
a palavra de salvação em todos e para todos os tempos.
Entre a divinização dogmática e absurda da teologia católica
que a Doutrina Espírita infirma e combate e a humanização pura e simples que a
Razão não explica, ficamos no meio termo da Revelação Roustainguista, que nos
inculca o Salvador investido de prerrogativas excepcionais em relação à humanidade
terrena, como espírito puro e não falido, mas, em todo caso dentro da lei geral
do mérito e esforço próprios, não relativamente ao mundículo Terra, mas
relativamente à Cosmogonia Universal.
Nem Deus, nem homem, portanto, mas espírito que atingiu a
perfeição moral absoluta e, como tal, reflete o pensamento divino, preposto à
criação do nosso mundo e à graduação de sua humanidade no plano geral do
progresso indefinido.
É forte a asserção? Convimos. Mas, sobre o ser tem a vantagem
de estar de acordo com a tradição, que não é coisa de somenos no cômputo da nossa
crença.
“E muitas outras
coisas eu vos diria se estivésseis em estado de as compreender” (3) Essas coisas aí estão, hoje, avivadas por seus
mensageiros.
Estudá-las é um dever. E, quando as não compreendamos, nem por isso devemos desesperar delas, porque para nós outros, espíritos em prova, chumbados a um mundo de obscuridades, o seu rumor nos chega com a convicção de que Eternidade e Providência são termos equivalentes.
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