sábado, 19 de dezembro de 2020

A partir de agora...

 

A partir de agora ...

José Brígido (Indalício Mendes)   Reformador (FEB) Novembro 1963

             Eles se encontravam na vida terrena e por qualquer coisa se desentenderam. Eram quase amigos quando influências alheias cortaram o vínculo de fraternidade que começava a crescer. No entanto, ambos de algum modo se respeitavam, embora não soubessem conter os efeitos da dissociação afetiva que se ia consumando. Acabaram por atritar-se e daí nasceu uma separação isenta de ódio, é verdade, mas com suficiente fermento de inimizade. Acontece, entretanto, que a vida humana se projeta também no plano espiritual. E dai...

             Certa vez, quando se achavam estremecidas as relações entre os dois homens, os mentores espirituais fizeram que seus Espíritos se encontrassem, durante o sono, no mundo invisível. Foi, então, fixado o seguinte diálogo:

             - Temos tanta necessidade de ser humildes quanto de respirar para sobreviver. Talvez até necessitemos mais da humildade... No entanto, ainda somos manejados por hábitos e preconceitos seculares, fortalecidos por uma educação moral defeituosa e mal dirigida. A verdade é que eu e você somos iguais: temos vaidade e orgulho, não gostamos que nos mostrem falhas, principalmente nos assuntos em que nos consideramos seguros.

            - Pensando bem, é isso mesmo. Mas você...

            - Sim, eu ... Sei o que você está pensando.

            Não diga mais “você”: diga “nós”... Compreendo ser também assim, embora às vezes pense estar liberto dessas imperfeições.

            - Curioso: Já em baixo o orgulho não nos deixa ficar juntos e conversar assim, com sinceridade, como estamos conversando aqui. Você me evita, eu evito você... Como as coisas mudam, não é?

            - Sem dúvida. Ainda somos felizes por poder verificar essa diferença. Tudo também pode depender, até certo ponto, do ambiente em que vivemos. Na realidade, todos somos excessivamente individualistas. Egoístas, diria melhor. Julgamos sempre valer mais do que realmente valemos. Aí está o mal.

            - Agrada-me que você pense assim, tão superiormente. Se disto nos lembrarmos quando regressarmos ao corpo que nos espera, poderemos fazer as pazes e voltar a ser amigos.

            - Se não nos lembrarmos de tudo, haveremos de guardar alguma coisa e esse nada nos ajudará a desbastar as arestas dessa desafeição idiota em que nos achamos na Terra. Se somos compreensivos agora, poderemos ser compreensivos também na Terra. Sabemos que nos falta humildade. Sabemos aqui, mas lá não nos lembramos de socalcar (comprimir bem) a nossa vaidade e dominá-la.

            Nessa ocasião, uma luminosa entidade se aproximou de ambos e entrou na conversa... A voz mansa, mas firme, denotava experiência:

            - Você tem maior responsabilidade - disse para o primeiro dos Interlocutores - porque está no Espiritismo, conhece a Doutrina Espírita e o Evangelho. Não deveria incorrer nos erros em que, às vezes, se afunda como um nadador desatento.

            Voltando-se para o outro, ajuntou:

            - Mas nem por isso você é menos responsável, embora não aceite o Espiritismo e não conheça a Doutrina Espirita. Já possui uma preparação mental capaz de lhe dar a medida. da responsabilidade de cada ser humano em face de um seu semelhante. A sua experiência já lhe permite distinguir o bem e o mal. Portanto, não se considere isento de culpa, mesmo porque o seu passado espiritual lhe aconselha mais vigilância nos atos e nas palavras. Os deveres que cada uma das criaturas humanas traz ao encarnar não são diferentes só porque um professa esta religião e outro professa religião diferente. Nada disso. Todo homem tem um programa a cumprir, uma obrigação a realizar, quando deixa o mundo espiritual e penetra no mundo terreno. Todos carregam o seu fardo cármico, com as suas responsabilidades, as suas aflições, as suas dores. Todos são devidamente instruídos ao deixarem o plano espacial e nenhum pode alegar ter sido lançado à Terra sem prévia advertência dos mentores que trabalham pela redenção de cada um. Além disso, nenhum anda SÓ. Todos têm um acompanhante fiel, que procura alertá-lo, ajuda-lo nos momentos cruciais da vida. Mas nenhum acompanhante pode agir em detrimento do livre-arbítrio daquele que lhe cumpre seguir. Se a sua responsabilidade é menor em face deste seu companheiro de jornada terrena, nem por isso lhe isenta de culpa. Todos os que quebram ou favorecem a quebra dos laços de fraternidade, sejam quais forem os pretextos, são corresponsáveis pela desarmonia. Quem o diz não sou eu, mas o espelho cármico que todos possuímos, no qual se refletem as nossas virtudes e as nossas imperfeições morais.

            Depois de observar o efeito de suas palavras sobre os dois Espíritos que, temporariamente divorciados da Terra, aquiesciam em trocar ideias no Espaço, a entidade recomeçou a falar:

            - Vocês estão vendo esses dois amigos que lhes estão próximos? Não? E agora, conseguem vê-los? Bem. São os seus Espíritos-guias. Os seus “anjos da guarda”, como costumam dizer lá em baixo. A neblina materialista impede que vocês os vejam, mas eles estão sempre presentes em sua vida, na hora alegre e na hora triste. Exercem a fidelidade como um sacerdócio sacrossanto. Têm muito trabalho para evitar que vocês se desviem do bom caminho e sofrem extraordinariamente quando falham, menos por eles do que pela impertinência de vocês. Felizmente, dizem-me eles, vocês não são muito rebeldes. Isto já representa alguma coisa.

            Num tom ainda mais amistoso, a entidade prosseguiu:

            - Vamos conversar um pouco mais intimamente, porque o raiar do dia se aproxima e vocês terão de iniciar suas tarefas terrenas logo que regressarem à Terra. Não pensem que sou um santo. Já fui também como vocês. Até bem pior. Não gostava de ser contrariado, procurava fazer valer as minhas opiniões, ainda que absurdas. Irritava-me por qualquer coisa, não admitia discordâncias. Como sofri! Eu mesmo criava em torno de mim uma atmosfera desfavorável, fluidos que impressionavam desagradavelmente a quantos de mim se acercavam. Em lugar de compreender que eu era o causador desse ambiente inferior, queixava-me de todos. Ninguém servia para mim, todos, por melhor que fossem, tinham um defeitozinho... A questão era observar. Em vez de me contentar com as qualidades das pessoas, eu procurava, com a tenacidade de um garimpeiro, descobrir lhes as deficiências. E, ao apontá-las, nunca me ocorria que eu as tinha duplicadamente... Sofri muito!

            Suspirou com certa tristeza, recomeçando logo:

            - O sofrimento exerceu sobre mim, paulatinamente, uma ação retificadora. Foi dando polimento ao meu estado moral. Reencarnei diversas vezes sem melhorar muito até que, numa dessas reencarnações, apesar da descrença que me dominava a respeito de religiões, encontrei no Espiritismo a bússola que me irá fazer reencontrar o rumo perdido, o caminho da minha educação. Não foi fácil. Os princípios da Doutrina Espírita nos ensinam a arte do bem viver na Terra e os meios de cultivar a amizade e a simpatia dos nossos semelhantes, a fim de que, ao voltarmos ao mundo espiritual, achemos a subida menos difícil. Mas, tudo custou muito. Eu lia muito, frequentava muitos Centros, ouvia palestras, porém não conseguia reter os belos ensinamentos para cumpri-los sem defecção. Falhei muito, vendo malogradas inúmeras tentativas de exemplificação, porque o meu Espiritismo era para uso externo. Eu aconselhava a Doutrina a outros irmãos, mas não a seguia. Citava passagens do Evangelho, sem, contudo, delas me recordar quando precisava dar o exemplo. Semelhante procedimento fez que eu sofresse ainda mais. Lutei, perseverei, vendo magníficas oportunidades perdidas. Sinto-me agora menos inseguro e mais animado para continuar o meu trabalho de auto aperfeiçoamento. A dor causada pela falta de exemplificação, pela oportunidade que nos é oferecida e não a aproveitamos, é indescritível. É uma dor moral profunda, meus amigos. Mais vale sofrer por fidelidade à Doutrina do que por apego a hábitos e costumes que a contrariam. Ninguém pode exemplificar bem a Doutrina sem exercer a humildade legitima.

            Ouvimos em silêncio todas as palavras do mentor esclarecido. Que poderíamos dizer, se o nosso nível espiritual não nos permitia sequer sentir sem abalo a forte vibração fluídica desse amigo? É fácil conquistar a humildade? Ele sentiu a nossa pergunta e respondeu:

            - Não, é difícil, muito difícil. Ela tem de ser conseguida através da renúncia diária ao que presumimos ser indispensável à importância da nossa vida terrena, moralmente falando. A sua conquista pode ser fácil quando o passado cármico não é demasiadamente denso. Caso contrário, não será trabalho de um dia. Pode levar anos. Para ser sólida, precisa de cultivo permanente, de todos os instantes, cotidianamente. É fruto de ação pertinaz e indefectível. Não é humildade o sentimento que se exerce esporadicamente. Exige a reforma do sentimento íntimo. Não é tarefa difícil de realizar, mas a sua conquista constituí a maior vitória do Espírito. Mas não confundam humildade com subserviência. A humildade dignifica o Espírito; a subserviência o rebaixa. Ninguém deve renunciar ao esforço reconstrutivo quando fracassar. A cada queda, nova tentativa, novo esforço para não cair, até que consiga manter-se de pé e, com alegria, verificar a vitória obtida sobre si mesmo. A reeducação espiritual é trabalho tão precioso na Terra quanto o da alimentação cotidiana a que vocês estão sujeitos na vida material. Mas cuida-se pouco do Espírito. Não é só frequentar Centros Espíritas e igrejas que promove o apuramento da alma. É mister seguir o itinerário espiritual com coragem e persistência para obter benefícios. Esses benefícios serão tanto maiores quanto maior for o interesse que tomarmos pelos nossos semelhantes. Há muitas formas de ajudar, muitas maneiras de fazer o bem. O exercício da caridade é o caminho mais curto da salvação, diz “O Evangelho segundo o Espiritismo”.

            Ditas essas palavras, a entidade espiritual se despediu, deixando nos dois ouvintes inefável sensação de paz. Eles, então, se abraçaram e se desculparam mutuamente dos agravos que haviam trocado.

            - A partir de agora, seremos mesmo amigos. Os laços da amizade que tecíamos estavam fracos. Os incidentes em que nos vimos envolvidos serviram para nos tornar mais lúcidos em relação aos deveres que temos com os outros, na vida de relação. Portanto, a partir de agora ...

            A verdade é que os dois homens despertaram mais humanos, mais fraternos. Não se lembraram do que havia ocorrido durante o sono do corpo, mas sentiam estar predispostos a olhar os semelhantes com maior boa-vontade e tolerância. E quando se encontraram, em vez de passarem silenciosamente, cumprimentaram-se, a princípio discretamente e mais tarde com menor reserva. Até que o dia de conversarem amistosamente chegou e se abraçaram.

            Esta é uma lição verídica e demonstra quanto podem fazer os Espíritos esclarecidos acerca do cultivo da fraternidade na Terra.

            Vocês que leram esta história, se tiverem algum caso a resolver, tomem uma decisão, prefiram ter a iniciativa da reconciliação, porque isso será importante para o futuro espiritual de cada um, encarnado ou desencarnado. Portanto, decida, pondo de lado preconceitos e temores, vaidade e orgulho. Diga como aqueles dois amigos o fizeram:

            - A partir de agora...


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