Kardec e
Roustaing
por Manoel Quintão
Reformador (FEB) 16 Maio
1917
(Carta aberta ao
estimável confrade Henrique Zamith)
Cego também sou e precatado daquele aviso contido em
Mateus C 23 – vv. 23-24.
Coerente, assim, com os ditames da consciência, não me
forro ao dever primacial de estabelecer que a crença, patrimônio intrínseco do
espírito, paralela ao seu progresso no tempo e no espaço, não pode formar-se de
alheias, mas das próprias convicções.
Por outras palavras: Se a Verdade Divina é íntegra e uma,
no mundo contingente que habitamos, ou ainda na esfera de gravitação da sua
humanidade desencarnada, os prismas dessa Verdade variam ao infinito.
E de molde vem a inserção para nos enquadrarmos em
recíproca tolerância, quando e sempre que abordamos tão magnos problemas.
Não me sobram competência e tempo para minudenciar a tese
de vossa consulta, tese velha, de resto, que a muitos, excelentes confrades
menos precavidos tem feito, quiçá, perder um tempo precioso em divagações eruditas,
mas, por igual, inúteis e até irritantes.
Assim esflorado o meu modo de ver o assunto, não me será permitido
insistir que a opinião a ler-se é minha,
bem pessoalmente minha e como tal não pode produzir regras nem cânones, colidindo
com um regime de bem estendida liberdade; que escalona as responsabilidades,
méritos e deméritos.
Para
mim, não há entre Kardec e Roustaing discrepâncias, que os incompatibilizem virtualmente
no conceito dos estudiosos.
Ao contrário, eles se completam.
Completam-se, vejamos hem, na parte revelada de suas obras,
que não em suas opiniões pessoais.
E assim, para sintetizar a resposta eu proporia modificar
a pergunta deste modo:
- Haverá entre as obras de Kardec e a revelação de Roustaing
antagonismos capazes de invalidar o Espiritismo no que ele apresenta de
essencial à humanidade planetária?
Penso que não. O que há, considerado de um ponto de vista
mais elevado, menos particularista e, de resto, perfeitamente ilativo da doutrina
espírita, é a lei de Providência e Previdência, que dá a cada mundo e a cada
geração a soma parcial de verdade, compatível com o seu progresso intelectual e
científico.
O confrade, por justificar as suas dúvidas, bate na tecla
da encarnação afirmada como imprescindível ao progresso do espirito na obra ele
Kardec, e subordinada como acidente expiatório na de Roustaing.
Admitido que não há verdade absoluta senão em Deus (o que
em Kardec também se encontra) poderíamos concluir
que o seu ensino completo em relação à humanidade terrena, pode ser precário em
relação à espiritualidade universal.
Esta conclusão que poderá parecer arbitrária, nada tem da
incongruente se considerarmos que, muitos
problemas postos ao tempo de sua tarefa não foram pelo Mestre definitivamente resolvidos,
bastando para exemplo o da evolução do princípio inteligente dos animais.
“Quanto às relações misteriosas existentes entre o homem e
os animais, é isto, repetimos, um segredo de Deus, como muitas outras coisas,
cujo conhecimento “atual” nada influiria em nosso adiantamento etc. (2)
(2) “Livro dos Espíritos”, Parte 2 – Cap. XI págs.
248.
Aqui temos como a Kardec não foi dito tudo, convindo a mais
notar que, a ele mesmo lhe foi predita uma breve reencarnação para ampliar a
sua obra.
Certo,
há em Roustaing afirmativas que nos atordoam...Mas, pergunto: temos o direito
de recusar um ensinamento global como esse da Revelação Evangélica só porque um
que outro ponto nos escapa à inteligência limitada?
Não será antes preferível, neste caso, decidir em consciência
e relegar a plano secundário as profissões
de fé “ex-cathedra”?
Ora, a nós nos parece que, subordinar a finalidade do espírito,
ser inteligente só para a felicidade criado,
a um sistema de progressão singular, seria amesquinhar a Inteligência Universal
e quiçá convergir para um materialismo panteísta assim definível: - sem matéria,
sem mundos, não haveria espírito perfeitos, porque não haveria meios de perfectibilidade.
Não vos parece, caro confrade, seja a concepção humaníssima,
presuntiva desse antropomorfismo que
levou Heckel a definir Deus - um invertebrado gasoso - antropomorfismo já agora
incompatível com a ideia do Criador à luz da Revelação Espírita no seu conjunto?
Depois, há uma consideração que aporta maciça, fatal nesta
ordem de ideias, legitimando-as: é que, estudando Kardec sem “partpris”, pode a
sua obra ser considerada uma tarefa preliminar destinada ao grande público cético
ou profano, e daí o seu cuidado evidente em chocar certas teorias, sempre que
as comentava pessoalmente.
Isto em nada diminui, antes avulta o seu valor moral de
missionário da primeira hora, que precisava não sacrificar o todo pelas partes.
Roustaing, ao contrário, preposto a uma tarefa complementar, viria tocar o
mundo religioso imanente, essencial de todos os tempos tudo dizendo sem ambiguidade
nem restrições, e ferindo a fundo escolas, domas, preconceitos e consciências.
Mas, obtemperam: Como puderam coetaneamente vir adstritos
à mesma tarefa, na revelação de uma só verdade dois missionários contraditórios?
Admitida a contradição, que para mim não existe no plano
geral da revelação, fora lícito perguntar aos dissidentes: como conciliar o
fato da coexistência na terra, num mesmo pais, de João, o Precursor e de Jesus,
o próprio Espírito da Verdade?
Aliás, são questões estas que em nada nos graduam no
plano de ação lídima e eficiente, que o conhecimento
da Doutrina impõe e a humanidade reclama.
Crente
ou não da corporeidade fluídica d'O Cristo, o que dele devemos reivindicar não é a
natureza do corpo mas a sublimidade do Espírito que, superior ao farisaísmo
meticuloso e do saduceismo arrogante de seu tempo, colocava o amor de Deus e do próximo acima de todas as coisas.
Quanto
a outras perguntas, importa dizer: o estudo do Evangelho integrais a luz da
Revelação de Roustaing foram adotados na Federação sem exclusividade do “Evangelho
segundo o Espiritismo”, de Kardec, por ocasião do centenário deste, conforme
consta da Memória Histórica então editada, comemorando o acontecimento.
Isto vale por dizer que a Federação não impõe mas procura
divulgar criteriosamente uma obra útil para o advento integral do Espiritismo,
no que ele tem de mais elevado - a moral cristã.
Essa iniciativa não foi fruto arbitrário, tendencioso,
humano - foi resultante da cooperação dos Bezerra, dos Sayão, dos Geminiano, dos
Bittencourt Sampaio, já como homens, no Grupo Ismael, já como espíritos desencarnados,
em confabulações persistentes com os dirigentes ostensivos daquela casa e nas
quais colaborou o próprio espírito de Kardec.
Agora, se quisermos, à luz do nosso critério humano
julgar da árvore pelo fruto, considerando a tarefa dessa instituição, a sua
existência impávida e coesa de 35 anos através de todas as vicissitudes e mercê
das fraquezas dos homens seus servidores, havemos de convir que a sua orientação
reflete algo de mais poderoso e menos efêmero que as nossas veleidades exegéticas.
Sobrara-nos autoridade para aconselhar e aos que dúvidas
e controvérsias tais suscitam, diríamos:
estudai, estudai sempre, mas lembrando-vos que sois espíritos encarnados, grilhetas de um mundo em que a luz
se coa através das malhas de uma inteligência limitada; em que a Verdade
Absoluta se dilata por etapas gradativas, não isentas de sombras e miragens
fantásticas; estudai, numa palavra, com humildade e com fé, mas sobretudo amai,
amai a tudo e a todos, porque o amor é a escada única que dá planos alcantilados do infinito, nos quais indefinida
embora, não deixa de existir a Verdade Absoluta – Deus.
Fraternalmente vosso,
M. Quintão
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