Obra de
salvação e obra de perdição
A
Redação Reformador (FEB) Março
1943
Quando já se aproximava o termo da sua missão,
dirigindo-se para Jerusalém, onde se entregaria em holocausto pela redenção dos
homens, mandou o divino Mestre que dois de seus discípulos se adiantassem, a fim
de lhe prepararem uma pousada, distantes que ainda se achavam das portas da
cidade santa. Esses discípulos, segundo refere Marcos, passando por uma aldeia,
procuraram aí a pousada de que iam em busca. A aldeia, porém, era de
Samaritanos e estes, percebendo tratar-se de gente que demandava Jerusalém,
negaram-lhes agasalho. Voltando, indignados, a ter com Jesus, perguntaram-lhe
aqueles discípulos: “Senhor, queres digamos que o fogo desça do céu e os
consuma?" - Repreendendo-os, respondeu-lhes o Mestre: "Não sabeis de
que espírito sois? O filho do homem não veio para perder os homens e sim para
salvar os homens.”
Porque não quiseram os Samaritanos dar acolhida ao filho
do homem e à sua comitiva? Tão só por motivo da divergência que existia entre
eles e os Judeus, no tocante às ordenações de Moisés. No interpretarem as
Escrituras, dissentiam aqueles das ideias destes últimos e não admitiam que o
templo de Jerusalém tivesse o prestígio que os Judeus lhe atribuíam. Por outro
lado, foram esses mesmos dissídios que inspiraram aos discípulos a lembrança de
obterem que os Samaritanos da aldeia em questão fossem destruídos, aniquilados
por fogo vindo do céu.
Temos assim divergências de ordem secundária colocando em
presença um do outro, em atitude de séria e grave hostilidade, fazendo-os
pensar até numa reciproca destruição, dois grupos de criaturas que, entretanto,
se encontravam submetidas a uma mesma corrente religiosa que derivava da
legislação mosaica; que adotavam o mesmo código de moral - o Decálogo.
Transpostos dois milênios, já depois do advento do
Consolador prometido pelo Cristo, dentro das fileiras dos adeptos da doutrina
que esse Consolador baixou a restaurar no seu primitivo esplendor, a dentro,
pois, não mais da doutrina resultante de uma legislação dura e violenta, que
consagrava o olho por olho e dente por dente, porém de uma doutrina que se
resume no preceito único do “amai-vos uns aos outros”, eis que muitos dos novos
Samaritanos, já desejosos de integrar-se nesse preceito para poderem imitar o
Samaritano da parábola, defrontam com outros israelitas belicosos, a quererem
reduzi-las a cinzas pelo fogo de palavras candentes, embora lhes não ajam os
primeiros negado lugar ao sol do Evangelho, saneador de almas, purificador de
corações.
E porque de novo se passam assim os fatos, reproduzindo,
de certo modo, o episódio que recordamos acima? Ainda por simples divergências
de opiniões em torno de questões somenos, de discordâncias na maneira de ver e
compreender pontos mais ou menos insignificantes da doutrina ou da revelação
acerca de cujos princípios ou postulados essenciais todos se acham ou se dizem
inteiramente concordes.
A primeira vista, parecerá de difícil explicação
semelhante estado de coisas, que aberra desses mesmos princípios e postulados
e, mais que tudo, daquele preceito em que o Cristo de Deus sintetizou os seus
ensinamentos, para todos quantos se dispusessem a abraça-las, a fim de o
seguirem, aspirando a participar da sua glória. Todavia, assim não é. A
explicação e a lição corretiva lá estão nas palavras com que Ele retrucou à
sugestão que lhe apresentaram João e Tiago: “Não sabeis de que espírito sois?” Preferindo
para a sua resposta imediata a forma interrogativa, fê-lo naturalmente porque a
afirmativa implicaria a declaração peremptória de que eles ainda ignoravam
completamente “de que espírito eram.”, apesar de lhe viveram na companhia desde
longo tempo, enquanto que o emprego da outra forma dava a perceber que apenas
haviam esquecido momentaneamente “de que espírito eram”.
Com efeito, esse
esquecimento passageiro se produziu neles por influxo das ideias nacionalistas
de que os dois ainda se não tinham emancipado integralmente, ideias que os
induziam a supor, como depois ocorreu e ainda agora ocorre com respeito às
questões que apaixonam os homens, que a ruína daquela aldeia e de seus
habitantes encheria de espanto a toda gente e, pelo terror que inspirasse,
aumentada o prestígio do Mestre, Este, no entanto, que não cogitava de
conquistar prestigio e glória segundo a maneira de entender dos homens, que cuidava
exclusivamente de glorificar ao Pai que o enviara, logo retificou o pensamento
errôneo e falso dos dois discípulos, dando-lhes um ensinamento que, como os
demais que espalhou seria para todos os tempos, para os dias de hoje como para
os do futuro, até que não reste por cumprir-se, um til sequer da lei de que Ele
se fez, no seio da humanidade, o mais eminente e glorioso arauto, a do amor a
Deus e ao próximo.
Lembrou-lhes então de que espírito era preciso fossem
eles inteiramente, dizendo: “O Filho do Homem não veio para perder, mas para salvar
os homens”. Com essas palavras, claramente significou que aquele espírito era o
da doutrina que Ele personificava e em que os instruía, doutrina que, de puro
amor, era e será sempre exclusivamente construtiva, de edificação moral, de
união, portanto, de confraternização, de alçamento de todas as virtudes que
nascem da virtude excelsa, a da humildade, por Ele exemplificada
ininterruptamente, a partir do momento em que apareceu na Terra, até ao que a
deixou, ascendendo aos páramos celestiais de onde, em comunhão com o Pai,
governa o planeta terreno e dirige a humanidade que o habita.
Incompatível, pois, com o espírito dessa doutrina é tudo
o que tenda a demolir e destruir, a separar os homens, a os inimizar ou
desunir, a impedir que eles se demonstrem verdadeiros seguidores do Evangelho e
revelem o sinal por que serão reconhecidos como legítimos discípulos d'Aquele
que é, e somente Ele o é, caminho, verdade e vida, visto que tudo isso conduz o
homem à perdição, porque o induz a pecar e a reincidir no pecado, transgredindo
a lei das leis, a lei do amor.
Dar-se-á que os neo-cristãos, ou que como tais se
qualificam pelo haverem, nos modernos tempos, abraçado o Cristianismo em
espírito e verdade, isto é, à luz da Terceira Revelação, possam ser de outro
espírito, que não daquele de que já deviam mostrar-se possuídos os discípulos a
quem Jesus repreendeu pela animosidade que manifestavam para com os Samaritanos
da aldeia em que penetraram? Conquanto a resposta a esta pergunta só à consciência
de cada um caiba dar com segurança, não se nos afigura ousadia opinarmos que
apenas pela negativa pode ela formular-se, tanto mais que, do ponto de vista da
inteligência humana, lícito talvez lhes pareça considerar-se em grau mais
avançado de desenvolvimento, baseando-se porventura, em haver Jesus dito, aos que
lhe pediam explicasse a parábola do semeador: “Pois que! Vós outros não
entendeis esta parábola? Como podereis entender todas as parábolas?” ou, seja,
todos os meus ensinos?
Mas, neste caso, como no outro acima, como nos demais em
que o divino Mestre estranhou a incompreensão dos discípulos, tratar-se-ia de pouquidade
(pequenez) intelectual? Cremos que não, pois, se assim fora, não houvera Ele
rendido graças ao Pai por ter ocultado aos doutos e prudentes as verdades de
que era portador ao mundo, ao passo que facultava o entendimento delas aos
pequeninos e humildes. Menos, portanto, se tratava de compreender através da
inteligência, por fruto de raciocínio, pelo emprego da razão, do que de sentir
com o coração, mediante as vibrações que neste produzissem as palavras divinas
que lhe eram dirigidas, partindo da fonte de todas as vibrações dos mais puros
sentimentos.
Assim, quer quando os
discípulos mostravam incompreensão daquela parábola, quer quando revelavam não
saber de que espírito eram, os reparos do Senhor tinham a fundamenta-los a
deficiência de sentimentos em suas almas, o não se acharem ainda penetrados da
essência dos ensinos que lhes Ele tão copiosamente prodigalizava, o não as
apresentarem dominadas pela quintessência doe exemplos em que lhes propiciava
as múltiplas maneiras de aplicarem aqueles ensinos. Estes, com efeito, e, conseguintemente,
a doutrina que Ele pregava, resumindo-se num único mandamento, o do amor, o
sentimento do amor constituía, como constitui e constituirá sempre, o espírito
daquela doutrina e só a posse desse sentimento, embora dentro da relatividade,
maior ou menor, de tudo o que diz respeito ao homem, lhe permite afirmar em consciência
que pertence ao espirito a que aludia Jesus: ao espírito do puro Cristianismo,
do Cristianismo ora reflorescente na doutrina do Consolador, que outra coisa
não faz senão restituir-lhe o esplendor magnífico que lhe imprimiu a palavra do
Espírito excelso e sublime que, por delegação do Pai, o trouxe aos que morreram
no pecado, a fim de lhes tornar possível a ressurreição para a vida eterna.
Ora, se, por se denunciarem algo carecidos do sentimento
que forma o alicerce da doutrina que o Salvador lhes pregava e exemplificava a
todos os instantes, é que os discípulos mostravam não saber de que espírito
eram, desde que se atenda à complexidade daquele sentimento, dado que o
entramam as virtudes ou dotes morais que impulsionam para o bem a criatura, quais,
por somente citar alguns, os da benignidade, da benevolência, da equanimidade,
da tolerância, do perdão, da magnanimidade, da bondade, em suma, pode-se
deduzir que onde não existam, predominantes, ou em escala apreciável essas
características do sentimento do amor, não há o espírito do Cristianismo do
Cristo, não há, pois, cristão. Iludem-se funestamente a si próprios os que tais
se suponham ou se considerem, pretendendo demonstra-lo apenas por meio de
palavras e atitudes que julguem glorificadoras do Filho de Deus, ou exaltadora
da sua posição espiritual, olvidados de que uma só glorificação lhe é admissível
e grata, segundo Ele mesmo o disse, a que se expressa pelo fazerem os Espíritos
que lhe estão confiados a vontade do Pai celestial. E essa vontade é que todos
reciprocamente se amem, não fazendo nenhum aos outros o que não queira que lhe
façam e procedendo para com os outros como, por amor de si próprio, deseja que
para consigo procedam os demais.
Enfim, havendo rematado sua observação aos discípulos com
o declarar que não viera para perder mas para salvar os homens, ou, então, que
outro objetivo, diverso do da salvação dos homens, não colimava a doutrina que
Ele personificava; que, sem a posse do espírito dessa doutrina, não se realiza
obra de salvação e sim de perdição, não há como fugir há conclusão de que, sem
esse espírito, ou, o que vem a dar no mesmo, sem o sentimento do amor a
traduzir-se pela exteriorização das virtudes ou sentimentos outros que atrás
enumeramos, também não há obra ou labor espirita uma vez que Espiritismo é
Cristianismo e que idêntica a deste é a finalidade da obra atribuída àquele, na
atualidade.
Mas, onde não haja obra de salvação, conforme a definiu o
Cristo de Deus, isto é, de aproximação, de união, de confraternização, de
unificação de vontades, de identificação de objetivos elevados, de
entrelaçamento de espíritos, de amor afinal, somente haverá obra de perdição,
que outra não pode ser a que tenda a desunir, a separar, a inimizar as criaturas,
como o é a que se assinala pela intolerância, pela injustiça, pela
animadversão, pela violência de qualquer espécie; a que, em lugar do amor,
exalça e preconiza o desamor. Obra anticristã esta, porque contrária ao espírito
do Cristianismo, é igualmente antiespírita, não sendo lícito, portanto, aos que
a empreendam ou executem, esperar que Jesus, o meigo Pastor, que de todos os
modos a profligou sempre, os confesse perante o Pai, pois que não o confessam
perante os homens os que a levam a efeito.
Desde que sem
caridade não há salvação, toda obra que se não ateste obra de amor, por
manifesto cunho de caridade moral, é obra de perdição, porque carente daquele
espírito cuja ausência o divino Mestre, que a estranhava em seus discípulos de
então, certamente não relevará aos que hoje por seus discípulos se têm.
Praza ao Senhor que, para remediarem à carência, em seus
corações, do espírito de que todos devem ser, estes ultimas cada vez mais
cuidadosamente atentem no que dos seus seguidores reclama o Consolador e na
finalidade real e verdadeira da obra essencialmente construtiva para que ele
foi vindo ao mundo, obra essa inconciliável, sob todos os aspectos, com
qualquer outra que vise a destruir seja o que for, a demolir, a constranger, a
violar, debaixo de qualquer pretexto, a lei de liberdade sobre que repousa toda
a estrutura do Cristianismo espírita ou Espiritismo-cristão, porquanto obra de
destruição, de demolição, ou de constrangimento da consciência é obra de
perdição, perdição dos que a ela se entregam e dos que por ela se deixam
empolgar.
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