terça-feira, 29 de setembro de 2020

A obra da salvação e obra da perdição


 Obra de salvação e obra de perdição

A Redação Reformador (FEB) Março 1943

             Quando já se aproximava o termo da sua missão, dirigindo-se para Jerusalém, onde se entregaria em holocausto pela redenção dos homens, mandou o divino Mestre que dois de seus discípulos se adiantassem, a fim de lhe prepararem uma pousada, distantes que ainda se achavam das portas da cidade santa. Esses discípulos, segundo refere Marcos, passando por uma aldeia, procuraram aí a pousada de que iam em busca. A aldeia, porém, era de Samaritanos e estes, percebendo tratar-se de gente que demandava Jerusalém, negaram-lhes agasalho. Voltando, indignados, a ter com Jesus, perguntaram-lhe aqueles discípulos: “Senhor, queres digamos que o fogo desça do céu e os consuma?" - Repreendendo-os, respondeu-lhes o Mestre: "Não sabeis de que espírito sois? O filho do homem não veio para perder os homens e sim para salvar os homens.”

             Porque não quiseram os Samaritanos dar acolhida ao filho do homem e à sua comitiva? Tão só por motivo da divergência que existia entre eles e os Judeus, no tocante às ordenações de Moisés. No interpretarem as Escrituras, dissentiam aqueles das ideias destes últimos e não admitiam que o templo de Jerusalém tivesse o prestígio que os Judeus lhe atribuíam. Por outro lado, foram esses mesmos dissídios que inspiraram aos discípulos a lembrança de obterem que os Samaritanos da aldeia em questão fossem destruídos, aniquilados por fogo vindo do céu.

             Temos assim divergências de ordem secundária colocando em presença um do outro, em atitude de séria e grave hostilidade, fazendo-os pensar até numa reciproca destruição, dois grupos de criaturas que, entretanto, se encontravam submetidas a uma mesma corrente religiosa que derivava da legislação mosaica; que adotavam o mesmo código de moral - o Decálogo.

             Transpostos dois milênios, já depois do advento do Consolador prometido pelo Cristo, dentro das fileiras dos adeptos da doutrina que esse Consolador baixou a restaurar no seu primitivo esplendor, a dentro, pois, não mais da doutrina resultante de uma legislação dura e violenta, que consagrava o olho por olho e dente por dente, porém de uma doutrina que se resume no preceito único do “amai-vos uns aos outros”, eis que muitos dos novos Samaritanos, já desejosos de integrar-se nesse preceito para poderem imitar o Samaritano da parábola, defrontam com outros israelitas belicosos, a quererem reduzi-las a cinzas pelo fogo de palavras candentes, embora lhes não ajam os primeiros negado lugar ao sol do Evangelho, saneador de almas, purificador de corações.

             E porque de novo se passam assim os fatos, reproduzindo, de certo modo, o episódio que recordamos acima? Ainda por simples divergências de opiniões em torno de questões somenos, de discordâncias na maneira de ver e compreender pontos mais ou menos insignificantes da doutrina ou da revelação acerca de cujos princípios ou postulados essenciais todos se acham ou se dizem inteiramente concordes.

             A primeira vista, parecerá de difícil explicação semelhante estado de coisas, que aberra desses mesmos princípios e postulados e, mais que tudo, daquele preceito em que o Cristo de Deus sintetizou os seus ensinamentos, para todos quantos se dispusessem a abraça-las, a fim de o seguirem, aspirando a participar da sua glória. Todavia, assim não é. A explicação e a lição corretiva lá estão nas palavras com que Ele retrucou à sugestão que lhe apresentaram João e Tiago: “Não sabeis de que espírito sois?” Preferindo para a sua resposta imediata a forma interrogativa, fê-lo naturalmente porque a afirmativa implicaria a declaração peremptória de que eles ainda ignoravam completamente “de que espírito eram.”, apesar de lhe viveram na companhia desde longo tempo, enquanto que o emprego da outra forma dava a perceber que apenas haviam esquecido momentaneamente “de que espírito eram”.

             Com efeito, esse esquecimento passageiro se produziu neles por influxo das ideias nacionalistas de que os dois ainda se não tinham emancipado integralmente, ideias que os induziam a supor, como depois ocorreu e ainda agora ocorre com respeito às questões que apaixonam os homens, que a ruína daquela aldeia e de seus habitantes encheria de espanto a toda gente e, pelo terror que inspirasse, aumentada o prestígio do Mestre, Este, no entanto, que não cogitava de conquistar prestigio e glória segundo a maneira de entender dos homens, que cuidava exclusivamente de glorificar ao Pai que o enviara, logo retificou o pensamento errôneo e falso dos dois discípulos, dando-lhes um ensinamento que, como os demais que espalhou seria para todos os tempos, para os dias de hoje como para os do futuro, até que não reste por cumprir-se, um til sequer da lei de que Ele se fez, no seio da humanidade, o mais eminente e glorioso arauto, a do amor a Deus e ao próximo.

             Lembrou-lhes então de que espírito era preciso fossem eles inteiramente, dizendo: “O Filho do Homem não veio para perder, mas para salvar os homens”. Com essas palavras, claramente significou que aquele espírito era o da doutrina que Ele personificava e em que os instruía, doutrina que, de puro amor, era e será sempre exclusivamente construtiva, de edificação moral, de união, portanto, de confraternização, de alçamento de todas as virtudes que nascem da virtude excelsa, a da humildade, por Ele exemplificada ininterruptamente, a partir do momento em que apareceu na Terra, até ao que a deixou, ascendendo aos páramos celestiais de onde, em comunhão com o Pai, governa o planeta terreno e dirige a humanidade que o habita.

             Incompatível, pois, com o espírito dessa doutrina é tudo o que tenda a demolir e destruir, a separar os homens, a os inimizar ou desunir, a impedir que eles se demonstrem verdadeiros seguidores do Evangelho e revelem o sinal por que serão reconhecidos como legítimos discípulos d'Aquele que é, e somente Ele o é, caminho, verdade e vida, visto que tudo isso conduz o homem à perdição, porque o induz a pecar e a reincidir no pecado, transgredindo a lei das leis, a lei do amor.

             Dar-se-á que os neo-cristãos, ou que como tais se qualificam pelo haverem, nos modernos tempos, abraçado o Cristianismo em espírito e verdade, isto é, à luz da Terceira Revelação, possam ser de outro espírito, que não daquele de que já deviam mostrar-se possuídos os discípulos a quem Jesus repreendeu pela animosidade que manifestavam para com os Samaritanos da aldeia em que penetraram? Conquanto a resposta a esta pergunta só à consciência de cada um caiba dar com segurança, não se nos afigura ousadia opinarmos que apenas pela negativa pode ela formular-se, tanto mais que, do ponto de vista da inteligência humana, lícito talvez lhes pareça considerar-se em grau mais avançado de desenvolvimento, baseando-se porventura, em haver Jesus dito, aos que lhe pediam explicasse a parábola do semeador: “Pois que! Vós outros não entendeis esta parábola? Como podereis entender todas as parábolas?” ou, seja, todos os meus ensinos?

             Mas, neste caso, como no outro acima, como nos demais em que o divino Mestre estranhou a incompreensão dos discípulos, tratar-se-ia de pouquidade (pequenez) intelectual? Cremos que não, pois, se assim fora, não houvera Ele rendido graças ao Pai por ter ocultado aos doutos e prudentes as verdades de que era portador ao mundo, ao passo que facultava o entendimento delas aos pequeninos e humildes. Menos, portanto, se tratava de compreender através da inteligência, por fruto de raciocínio, pelo emprego da razão, do que de sentir com o coração, mediante as vibrações que neste produzissem as palavras divinas que lhe eram dirigidas, partindo da fonte de todas as vibrações dos mais puros sentimentos.

             Assim, quer quando os discípulos mostravam incompreensão daquela parábola, quer quando revelavam não saber de que espírito eram, os reparos do Senhor tinham a fundamenta-los a deficiência de sentimentos em suas almas, o não se acharem ainda penetrados da essência dos ensinos que lhes Ele tão copiosamente prodigalizava, o não as apresentarem dominadas pela quintessência doe exemplos em que lhes propiciava as múltiplas maneiras de aplicarem aqueles ensinos. Estes, com efeito, e, conseguintemente, a doutrina que Ele pregava, resumindo-se num único mandamento, o do amor, o sentimento do amor constituía, como constitui e constituirá sempre, o espírito daquela doutrina e só a posse desse sentimento, embora dentro da relatividade, maior ou menor, de tudo o que diz respeito ao homem, lhe permite afirmar em consciência que pertence ao espirito a que aludia Jesus: ao espírito do puro Cristianismo, do Cristianismo ora reflorescente na doutrina do Consolador, que outra coisa não faz senão restituir-lhe o esplendor magnífico que lhe imprimiu a palavra do Espírito excelso e sublime que, por delegação do Pai, o trouxe aos que morreram no pecado, a fim de lhes tornar possível a ressurreição para a vida eterna.

             Ora, se, por se denunciarem algo carecidos do sentimento que forma o alicerce da doutrina que o Salvador lhes pregava e exemplificava a todos os instantes, é que os discípulos mostravam não saber de que espírito eram, desde que se atenda à complexidade daquele sentimento, dado que o entramam as virtudes ou dotes morais que impulsionam para o bem a criatura, quais, por somente citar alguns, os da benignidade, da benevolência, da equanimidade, da tolerância, do perdão, da magnanimidade, da bondade, em suma, pode-se deduzir que onde não existam, predominantes, ou em escala apreciável essas características do sentimento do amor, não há o espírito do Cristianismo do Cristo, não há, pois, cristão. Iludem-se funestamente a si próprios os que tais se suponham ou se considerem, pretendendo demonstra-lo apenas por meio de palavras e atitudes que julguem glorificadoras do Filho de Deus, ou exaltadora da sua posição espiritual, olvidados de que uma só glorificação lhe é admissível e grata, segundo Ele mesmo o disse, a que se expressa pelo fazerem os Espíritos que lhe estão confiados a vontade do Pai celestial. E essa vontade é que todos reciprocamente se amem, não fazendo nenhum aos outros o que não queira que lhe façam e procedendo para com os outros como, por amor de si próprio, deseja que para consigo procedam os demais.

             Enfim, havendo rematado sua observação aos discípulos com o declarar que não viera para perder mas para salvar os homens, ou, então, que outro objetivo, diverso do da salvação dos homens, não colimava a doutrina que Ele personificava; que, sem a posse do espírito dessa doutrina, não se realiza obra de salvação e sim de perdição, não há como fugir há conclusão de que, sem esse espírito, ou, o que vem a dar no mesmo, sem o sentimento do amor a traduzir-se pela exteriorização das virtudes ou sentimentos outros que atrás enumeramos, também não há obra ou labor espirita uma vez que Espiritismo é Cristianismo e que idêntica a deste é a finalidade da obra atribuída àquele, na atualidade.

             Mas, onde não haja obra de salvação, conforme a definiu o Cristo de Deus, isto é, de aproximação, de união, de confraternização, de unificação de vontades, de identificação de objetivos elevados, de entrelaçamento de espíritos, de amor afinal, somente haverá obra de perdição, que outra não pode ser a que tenda a desunir, a separar, a inimizar as criaturas, como o é a que se assinala pela intolerância, pela injustiça, pela animadversão, pela violência de qualquer espécie; a que, em lugar do amor, exalça e preconiza o desamor. Obra anticristã esta, porque contrária ao espírito do Cristianismo, é igualmente antiespírita, não sendo lícito, portanto, aos que a empreendam ou executem, esperar que Jesus, o meigo Pastor, que de todos os modos a profligou sempre, os confesse perante o Pai, pois que não o confessam perante os homens os que a levam a efeito.

             Desde que sem caridade não há salvação, toda obra que se não ateste obra de amor, por manifesto cunho de caridade moral, é obra de perdição, porque carente daquele espírito cuja ausência o divino Mestre, que a estranhava em seus discípulos de então, certamente não relevará aos que hoje por seus discípulos se têm.

             Praza ao Senhor que, para remediarem à carência, em seus corações, do espírito de que todos devem ser, estes ultimas cada vez mais cuidadosamente atentem no que dos seus seguidores reclama o Consolador e na finalidade real e verdadeira da obra essencialmente construtiva para que ele foi vindo ao mundo, obra essa inconciliável, sob todos os aspectos, com qualquer outra que vise a destruir seja o que for, a demolir, a constranger, a violar, debaixo de qualquer pretexto, a lei de liberdade sobre que repousa toda a estrutura do Cristianismo espírita ou Espiritismo-cristão, porquanto obra de destruição, de demolição, ou de constrangimento da consciência é obra de perdição, perdição dos que a ela se entregam e dos que por ela se deixam empolgar.

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