O homem que aprendeu a lição
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Novembro 1952
Azanir
Bamuride olhava para o mundo, sem amargor. Lutava muito para viver, mas sempre
encontrava em que demorar sua atenção com simpatia e boa vontade. Se chovia,
abençoava a chuva; se não chovia, encontrava meio de justificar seu diário
agradecimento à misericórdia de Alá. Olhava os animais com os olhos da fraternidade.
Enfim, sabia sempre descobrir beleza nas manifestações da Natureza.
*
Passava
Azanir por uma das ruas de Constantinopla quando teve a atenção despertada para
um homem que, armado de pau, perseguia um pobre cão esquelético. Azanir correu
também e protegeu o animal, que, humilde, mostrou seu reconhecimento pelo
abanar da cauda. O perseguidor, ao mesmo tempo que ameaçava Azanir, perguntou: - Então, és tu o dono desse cão vadio? Pagas por
ele!
E
desferiu duas pauladas. Azanir saltou para o lado e deteve o braço do agressor
dominando-o. Vendo o pau cair-lhe da mão, disse-lhe:
-
É errado o que estás fazendo. Que fez este pobre cão para justificar a tua cólera?
-
Roubou-me a carne que guardei para almoçar. E devia matá-lo - esbravejou,
furibundo.
Azanir
ponderou:
-
Não creio que isso te restituiria. O que perdeste. Por certo, não pretenderias
comer carne de cachorro. Cometerias uma ação má,
continuarias sem a carne e acabarias lamentando o momento de desespero que te
induzira ao ato violento. Vou largar-te, mas nada farás a este cão, cuja
miséria física sugere piedade. Em vez de pretenderes matá-lo, deverias ajudá-lo
a viver... Conquistarias um amigo fidelíssimo, acredita.
Vendo-se
livre, o desconhecido permaneceu quieto, mas olhava rancorosamente para o
animal, com ímpetos de surrá-lo. Foi quando Azanir voltou a falar:
-
Já experimentaste a tortura da fome? Certamente, não. Assim, ignoras o
sofrimento que forçou este cão a roubar o pedaço de carne
que tinhas para o almoço. Não penses assim, meu amigo. Os animais não se
orientam pelos nossos códigos de moral e sabes que o Alcorão desaconselha
violências contra eles. Guiam-se pelo instinto. Quando têm fome ou sede,
procuram o que comer ou beber. Não devem ser castigados por isso. Quando sentes
fome, que fazes? Pensa um pouco. Se nunca sentiste fome ou sede, ainda não
conheceste completamente a vida. Podemos prescindir de tudo, menos do alimento
sólido e liquido. que nos permite sustentar as energias do corpo. Se não
adubares a terra e não a regares periodicamente, as plantações morrerão
fatalmente. Batendo neste cão, porque ele, cedendo a injunções da natureza,
comeu a carne que pretendias comer, ofendes a misericórdia de Alá, porque te
insurges contra um dos mais simples princípios da vida.
O
desconhecido ouvia sem nada dizer. Não mantinha mais a fisionomia fechada. Estava
sério mas parecia medir bem cada palavra de Azanir Bamuride, que continuou a
falar:
-
Não me pareces um homem mau, porém pouco esclarecido. Olha o cão que se acolhe
temeroso, como que pedindo que eu lhe dê proteção. Vê. Em vez de magoá-lo,
chama-o, acarinha-o, ensina-o a fazer o que desejas e a não fazer o que não
queres. Tem paciência com ele e verás como sua inteligência te surpreenderá. Se
ele soubesse falar, não roubaria a carne: iria pedi-la humildemente. Como não
sabe, sente e age consoante as solicitações do instinto. Todavia, se o fizeres
teu amigo, será capaz de lutar contra o próprio instinto para não te desagradar.
Em
seguida, Azanir lhe entregou o pau, convidando-o a mudar de atitude.
-
Eu devia abrir-te a cabeça pelo que me fizeste... - resmungou o homem,
-
Pelo senhor da Kaaba ~ - exclamou Azanir. Nada fiz, senão impedir que
consumasses o castigo a um ser faminto. Quero que compreendas
minha atitude: não te quis fazer mal mas evitar que desagradasses o Todo-Poderoso. “Alá
abrirá o coração daquele que quiser" - está no Alcorão. E este fato. meu amigo, pode servir
para aclarar o teu entendimento. Peço-te que me perdoes a intromissão. Somos
criaturas dotadas da palavra, possuímos maior inteligência que os outros animais.
Graças ao recurso divino do raciocínio, podemos distinguir o bem do mal.
Achamo-nos, a esse respeito, num plano evolutivo mais elevado. Todavia, se
recorremos à violência, baixamos de nível, porque nada eleva mais o homem do
que a bondade e a resignação, a complacência e a tolerância. Gostarias que dissessem
na cidade que vales menos que um cão magro e faminto? Claramente, não, porque só
agiste assim por falta de adequada orientação. Desde, porém, que te resolvas a
adotar outro rumo, a falta estará reparada. Acredito mesmo que procederás de
outra maneira, se um fato igual ao de hoje se repetir em tua vida. Vamos, amigo,
estende-me teus braços. Toma--me como teu irmão, pois que o sou perante Alá.
Ajuda-me a fazer com que este pobre cão se torne, não só um fiel companheiro, mas outro
irmão nosso em face da Natureza, irmão humilde e fraco, que necessita de amparo
e de carinho.
*
O
homem ficara pensativo. Mas abraçou Azanir, mal este se calou. Procurou
desajeitadamente aproximar-se do animal, que, desconfiado, encolheu-se e
rosnou. Azanir sorriu e afagou o cão. E quando viu que este abanava a cauda,
disse ao desconhecido que lhe fizesse festas. Humilde e medroso, o animal as
aceitou, rabo entre pernas, encostando o focinho no chão.
-
Vês como é bom o coração deste pobre animal? Já esqueceu o que fizeste e te
prova sua humildade, lambendo-te os sapatos.
-
Tems razão. Como te chamas?
-
Azanir Bamuride...
-
Porque és bom?
-
Se há bondade em mim, ela provém de Alá, através da minha consciente submissão
à Sua vontade, amigo. Desde que sigas a rota do Alcorão, ficarás em salvamento,
porque nada é melhor para o homem do que a palavra do Senhor. Ela é luz que não
se extingue. É luz que aquece a alma e a aproxima da Verdade.
Os
dois se abraçaram de novo. O homem disse a Azanir com simplicidade:
-
Eu me chamo Elimar Baruti. Quero levar o cão comigo. Posso?
-
Como queiras. Ele não me pertence.
Então.
Elimar estalou os dedos, chamando o animal:
“Amigo”!
Vem, “Amigo”! ...
E
se retirou, satisfeito, com o inesperado amigo que ganhara...
Azanir
Bamuride ergueu os braços para o alto e exclamou, mais feliz do que nunca:
- Alá kibir! Alá kibir!...
Nessa
noite, parecia que as estrelas estavam mais bonitas em seus albornozes (roupões) de luz...
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