1. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Esboço Exegético-evangélico
(Responde o Evangelho nas Lições do Bom Ladrão, de
Zaqueu e do Centurião Romano)
Aos bondosos amigos e confrades,
José Angelo PeIlegrino
Coronel Arlindo Ribeiro de Andrade
Antonio Baptista Lino
Carlos Inglez de Souza
José Peres Castelhano
Dr. Lino da Rocha Leão
Dr. Fernando Paes de Barros
Pedro de Camargo (Vinicius)
Olavo Augusto de Oliveira
Dr. Raul Soares,
a cujo apoio moral e material deve esta
obrinha o seu aparecimento
a profunda gratidão do AUTOR.
Índice
Só a Bíblia - População do mundo - Religiões -
Curiosidades da Bíblia - Traduções e tradutores - A palavra
"religião" - População e religiões nos EE. UU. - Em 1901, 11 milhões
de espíritas e 30 mil médiuns, nos USA.
Seremos salvos pela fé ou pelas obras? - Resposta do
católico e do protestante - A figura de Paulo - Os padres acima de Deus -
Victor Hugo e a instrução - Congressos Eucarísticos .
Superioridade do Protestantismo - Estatística impressionante
- A Reforma e a Salvação
Pela fé ou pelas obras? - Paulo e Tiago em plena
harmonia.
As cartas de Paulo e a de Tiago - Caráter e objeto
dessas cartas - Ideias universalistas desses apóstolos.
Caráter diferencial entre o Evangelho e as Epístolas.
Jesus é Salvador - Fala Paulo - "Deus é amor e “quer”
um só destino - Salvação pela “vida” de Jesus.
Paulo, o maior intérprete do Evangelho - Sua
emocionante defesa diante das altas autoridades – “Ó insensatos Gálatas!”.
Paulo prega: “Fora da caridade não há salvação”.
Porquê “Filho do Homem”? - A inspirada e encantadora
palavra de Mélinge.
As boas-obras do ladrão arrependido - O único advogado
de Jesus – “Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino!”
“Hoje serás comigo no paraíso" - Não a morada de
Deus - O que significa “Céu” ou “Reino de Deus” e “inferno”.
“O Evangelho das boas-obras - Lições do publicano
Zaqueu – Por que “Terceira Revelação?” – Por que “Espiritismo?” - Que significa
essa palavra e como nasceu? - E por que não “espiritualismo?” - O Consolador
ficará “eternamente” conosco - A pecadora samaritana.
Fé - Catolicismo ou Universalismo - Como entendia
Paulo o verbo “crer” e o substantivo “salvação” - A fé do Centurião romano.
“Suplício eterno”, “cárcere”, “prisão”, “bicho que rói”,
“trevas exteriores”, “Geena” - Evolucionismo e penalismo, dentro da Bíblia - O
que é o Mal - O Bem - É real a condenação....
“O que não crê já está condenado” - A lei de
causalidade - Quem esqueceu a fraternidade, por ela será esquecido - Quem ferir
à espada, a espada será ferido - ou, “quem com ferro fere, com ferro será
ferido”.
A palavra final do Mestre - O Evangelho das boas obras
- O Juízo Final - Base para o julgamento .
Jesus e a Medicina - Não sendo médicos nem operadores,
porquê se metem os espíritas a curar?
A ordem imperativa do Mestre, escudada no seu próprio
exemplo - "Aquele" que crê em mim, fará as obras que eu faço, e fará
outras “ainda maiores”.
No Juízo do último dia - A Justiça e o seu critério.
Só a Bíblia
Sim, só a Bíblia é invocada neste trabalho, como
autoridade, como informante, como conselheira e como julgadora. É que estas
páginas vão ser lidas por católicos, por protestantes e por espiritas. Três
pontos de vista, três escolas, três correntes de pensamento dentro da Bíblia.
Explicada está a interferência do Livro dos livros como autoridade única em
toda a extensão desta obrinha. Ao demais, “a Bíblia é o alicerce da Revelação
Divina; o Evangelho é o edifício da redenção das almas." (Emmanuel, em
"O Consolador").
Iniciamos e terminamos o nosso trabalho, nos dias da
horrorosa luta fratricida na Europa. Horrorosa e escandalizante, Entredevoram-se
as quatro maiores, mais ricas e mais civilizadas nações cristãs do civilizadíssimo
continente europeu. Falência do Cristianismo? Não, que este ainda não foi
praticado; se os homens o praticassem, a guerra não existiria. Falência, sim, e
completa, da cristandade. Por faltar o Evangelho, não nos lábios e nas
estantes, mas nos corações, é que aí vão submergindo as maravilhosas conquistas
de uma civilização vinte vezes secular e pomposamente batizada com o adjetivo
"cristã". Uma guerra! horrorosa e escandalizante, dissemos. Sim,
escândalo para os outros povos que não estão sob a mesma bandeira do “Amai-vos uns
aos outros.” A palavra grega skandalon:
- diz o rev. João Beatty Howell - significa um obstáculo no caminho, coisa que
leva o homem a tropeçar e cair; as perseguições serviriam de pedra de tropeço
para que muitos caíssem na apostasia, e se separassem da Igreja de Cristo.
(Comentário ao Evang. segundo S. Mateus).
Eis a população do globo e as principais religiões; segundo
os ilustres professores, Dr. Aroldo de Azevedo e Miguel Milano, em seus
compêndios, respectivamente: Geografia, 1ª Série Secundária; Geografia Geral.
Curso Secundário:
População: Europa, 500 milhões de almas; Ásia, 1.100
milhões; América, 250 milhões, América, 150 milhões; Oceania, 10 milhões.
Religiões: Católica Romana, 260 milhões; Protestante,
180 milhões; Grega-Cismática ou Ortodoxa Oriental, 120 milhões.
Fora do Cristianismo: Budismo, 450 milhões;
Confucionismo, 270 milhões; Islamismo ou Maometismo, 230 milhões; Bramanismo,
220 milhões; Fetichismo, 120 milhões; Judaísmo, 20 milhões.
Curiosidades
da Bíblia
3.566.480 LETRAS - 773.746 PALAVRAS
Livro sem par e sem rival na história dos povos, é
tido e reverenciado como o maior reservatório de espiritualidade. "Nenhum
outro livro fala tão direta e universalmente aos homens das diversas raças e
civilizações. Escrito originariamente nas línguas hebraica (Velho Testamento) e
grega (Novo Testamento), este grande livro ultrapassou os limites em que estas
línguas se falavam, para apresentar-se aos corações de todo o mundo. Desde a
civilização europeia e a americana, até à cultura rudimentar dos povos da África,
da Ásia continental e de remotas ilhas, homens têm ouvido ou lido as suas
páginas, declarando maravilhados: “Como este
livro conhece o meu caráter! Como esquadrinha os pensamentos e sentimentos de
minha alma!”
“A Bíblia é bem o
livro da humanidade. É, porém, mais do que isso: é o livro de Deus para a
humanidade. Quando se leem as suas páginas, quando se medita sobre o que a Bíblia
diz ao coração humano, conhece-se que ela é mais do que uma simples narração de
experiências individuais, relatadas viva e claramente. É um registo da
experiência humana em relação com Deus e, através de suas páginas, o homem ouve
a voz divina que lhe fala. Estadistas, heróis, mártires, santos, pessoas
humildes cercadas das angústias e dificuldades da vida - todos tem achado nela
a voz de Deus aconselhando, confortando, repreendendo, ordenando, dando
esperança e coragem. A Bíblia, pois, tem sido tão repetidamente traduzida,
porque é o livro de Deus para a humanidade.”
* * *
Livro sagrado de toda a cristandade, a Bíblia encerra,
entre duas capas, verdadeira biblioteca, formada de 66 livros, sendo 39 no
Antigo ou Velho Testamento e 27 no Novo Testamento.
O Velho Testamento é o livro sagrado de um povo - o
povo hebreu ou povo israelita; o Novo Testamento, ou mais particularmente, o
Evangelho, é o livro sagrado da humanidade.
A Bíblia contém 3.566.480 letras, 773.746 palavras,
31.173 versículos, 1.189 capítulos, sendo 929 no Velho e 260 no Novo
Testamento.
A letra "E" é repetida 46.277 vezes no
volume sagrado. A palavra "Deus" é empregada 1.855 vezes. O versículo
que ocupa o meio da obra é o 8° do Salmo 118. O versículo mais longo é o 9° do
8° capítulo de Ester, que contém mais de 80 palavras; o mais curto é o 35° do capítulo II do quarto Evangelho, que contém
apenas 3 palavras: “Então chorou Jesus”.
O Sermão da Montanha, que encerra a doutrina completa
de Jesus, numa síntese admirável e encantadora, constituindo a perfeita
estruturação do edifício moral do Cristianismo, abrange III versículos, nos
capítulos V, VI e VII do primeiro Evangelho.
Razões de ordem eclesiástica, de par com a necessidade
de diretrizes para o pensamento religioso, revelavam a falta que fazia uma
tradução do Velho e do Novo Testamento. “Afim de pôr termo às divergências de
opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca
da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa
Dâmaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina
do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí em diante, a única
reputada ortodoxa (isto é, de conformidade com a sã e verdadeira doutrina) e
tornar-se-á a norma das doutrinas da igreja: foi o que se denominou a Vulgata."
O primeiro Novo Testamento publicado em português foi
impresso em Amsterdam, em 1681, traduzido do grego por João Ferreira de
Almeida, pregador do Evangelho na Batávia, capital da ilha de Java, uma do
arquipélago da Sonda (Oceania), possessão holandesa (Índias Holandesas,
conquistadas aos portugueses).
Entre os anos de 1748 e 1753, ainda na capital
javanesa, saiu impressa a primeira edição completa do Velho Testamento, segundo
a tradução desse ilustre pregador, em dois volumes.
Depois dessa tradução, a primeira tradução da Bíblia,
em português, foi a do ilustre latinista e famoso gramático português, padre
Antônio Pereira de Figueiredo, em 1790. Foi esta a primeira versão completa, em
língua portuguesa, da Vulgata Latina. “No ano de 1902, a Sociedade Bíblica Americana e a
Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira acordaram fazer uma nova tradução “segundo
os originais hebraico e grego”, com o auxílio das versões de Figueiredo e de
Almeida. A primeira edição desse novo trabalho, pela Sociedade Bíblica Americana,
apareceu em 1917, conhecida pelo nome de “Tradução ou Versão Brasileira.”
- Em muitas e muitas passagens, esta tradução brasileira
difere da tradução do padre Figueiredo e da de Almeida. Basta citar um exemplo,
onde ressalta o vulto da divergência. Veja-se o primeiro cap. do quarto
Evangelho, versículo 18. Aqueles dois eminentes tradutores escreveram: “o Filho
unigênito, que está no seio do Pai”. Na versão brasileira lê-se: “o Deus
unigênito, que está no seio do Pai.” Os leigos, ou estranhos aos estudos
exegéticos, não deixam de mostrar o seu espanto, diante dessa vultosa
discrepância, tendo em vista a comprovada, a comprovadíssima competência do
padre Antônio Pereira de Figueiredo, como vernaculista e latinista, ao lado da
reconhecida competência do pastor João Ferreira de Almeida, igualmente
latinista e profundo helenista. A propósito deste ministro do Evangelho,
seja-nos lícito transcrever duas palavras apenas, devidas à pena brilhante do
eminente teólogo evangélico português, Eduardo Moreira, em “A Madeira Nova”:
“A história deste português ilustre (o pastor Almeida),
a quem os holandeses deram o título de “Defensor da Verdade”, é rica de
ensinamentos. Pena é que até hoje nenhum crítico ou historiador literário, a
não ser Antônio Ribeiro dos Santos e Teófilo Braga, tenha procurado pagar a
dívida de gratidão da Pátria a tão insigne filho. Teófilo chama à sua tradução “o
maior e mais interessante documento para se estudar a língua portuguesa no
século XVII”, e considera-o por isso um magnifico monumento literário. E nestas
afirmações mais não faz do que seguir o padre Ribeiro dos Santos."
("O Estandarte", órgão presbiteriano, São Paulo, n.º 21; de 24 de
Maio de 1928).
São duas as maiores organizações divulgadoras das Escrituras
Sagradas em todo o mundo: a Sociedade Bíblica Americana, fundada em 1816, e a
Sociedade Britânica e Estrangeira, fundada alguns anos antes.
Dados históricos e estatísticos, encontramo-los no
interessante relatório publicado pelo rev. H. C. Tucker, secretário da Agencia
da Sociedade Bíblica Americana no Rio de Janeiro, em comemoração do primeiro
centenário da independência do Brasil, relatório intitulado “Ligeiros Traços da
Origem, História e Ação da Sociedade Bíblica Americana”.
A Bíblia toda, acha-se traduzida em mais de 175 línguas,
e o Novo Testamento em mais de 208. No todo ou em parte, a Bíblia está traduzida
em 972 línguas e dialetos, incluindo o Esperanto, língua internacional.
A tradução é obra muito difícil e dispendiosa; a
publicação, só em parte é paga pela venda dos livros, porque são vendidos sem
lucro, e a distribuição é feita principalmente pelas agências e pelos
colpoltôres (distribuidores), que precisam de seus ordenados para suas despesas.
Na sua obra mundial, que estende sobre os cinco continentes
e as ilhas dos sete mares, a Sociedade Bíblica Americana gasta anualmente mais
de um milhão de dólares, ou 7.000:000$000 ao câmbio atual (em 1922; hoje tais
cifras vão muito além, talvez três vezes mais).
Para a execução do seu programa mundial, a Sociedade Bíblica
Americana depende em grande parte de ofertas e donativos de seus amigos e dos
leitores da Bíblia. Contando com o trabalho feito pelas duas Sociedades, a
Britânica e a Americana, e por mais de 30 outras Sociedades Bíblicas e algumas empresas publicadoras
particulares -, calcula-se que atualmente (1922) não menos de 32.000.000 de
exemplares das Escrituras Sagradas, em nada menos de 500 diferentes idiomas, se
distribuem anualmente em todos os países do mundo. Em pouco mais de 100 anos,
as duas Sociedades, a Americana e a Britânica, distribuíram pelo mundo: a
primeira, 146.590.521 exemplares, e a segunda, 319.470.000, num total de
466.060.521 exemplares, até o ano de 1922. Não há no mundo outro livro que
apresente tiragem e circulação semelhantes.
2. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
A PALAVRA "RELIGIÃO", NA BíBLIA
Será, talvez, a maior das curiosidades que apresenta o
maravilhoso livro, dada a natureza do seu conteúdo. Ninguém ignora que a Bíblia
não é propriedade exclusiva desta ou daquela religião, desta ou daquela seita. É
patrimônio comum, e o que é comum não é de nenhum, porque é de todos.
Não há, nessas mil e muitas páginas, uma só, onde se
descubra uma dedicatória, uma referência mesmo, pela qual se conclua que o
Livro pertence “exclusivamente” a esta ou aquela denominação religiosa, a este
ou àquele povo. No Velho Testamento, particularmente nos cinco primeiros livros
ou Pentateuco -, descobre-se que o
grande legislador hebreu, Moisés, dirige-se ao povo de Israel, com o qual foi
feito o pacto da Antiga Aliança. E é por isso que os judeus ou israelitas, nestes
dias, ainda não aceitam o Novo Testamento, que para eles não tem valor, mas só
o Velho Testamento, e isso mesmo em parte... É sabido que eles não aceitaram e
não aceitam a realeza espiritual de Jesus, o filho do carpinteiro. Dizia o
ardoroso pregador dos Gentios: “Pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para
os judeus e loucura para os gentios". (I Cor., 1,23).
Na Bíblia encontram fundamento para suas convicções
religiosas, muitas, muitíssimas religiões, além das inúmeras seitas existentes
na face da terra. Dentre os povos protestantes, o norte-americano é o que mais
propaga a leitura do volume sagrado. Das nações cristãs, a União Norte
Americana é a mais populosa e a mais rica. Segundo noticiou o consulado
americano desta capital, no "O Estado de S. Paulo", de 3-XIl.1940,
pag. 3, coluna 2ª, a população dos Estados-Unidos, suas possessões e
territórios, se eleva a 150.362.326 almas. Só na parte continental, a população
é de 131.409.881.
Quanto ao sentimento religioso, é ainda a prodigiosa
União Norte-Americana que ocupa o primeiro lugar. As estatísticas de 1936, que
acabam de ser completadas, revelam a existência de 256 religiões e seitas
distintas, em um total de 56.807.366 membros. Veja-se o mesmo órgão da imprensa
paulistana, de 11-VIlI.1940, 1ª pág., 5ª coluna. Eis a distribuição desse
total:
Catolicismo, 19.114.937 membros; Judaísmo, 4.641.184;
Igreja Batista, 3.782.462; Igreja Metodista Episcopal, 3.609.763; Convenção
Batista do Sul, 2.700.155; Igreja Metodista Episcopal do Sul, 2.071.783; Igreja
Presbiteriana, 1.797.927; Igreja Protestante Episcopal, 1.735.335; Convenção
Batista do Norte, 1.329.044; Igreja Luterana, 1.286.612; Discípulos de Cristo,
1.196.315. A seita com menos adeptos é a dos “Friends”, com uma igreja e 14 membros apenas. No Brasil há mais de
trinta denominações evangélicas com suas igrejas organizadas (“O Mundo Cristão”,
Abril de 1940; diretor, Ernesto Thenn de Barros, prof. do Ginásio Estadual de
Tatuí, Estado de S. Paulo).
(Um parêntese. Segundo essas estatísticas de 1936,
completadas agora, como afirma o comunicado norte-americano, numa população
global de 131.409.881 pessoas, declararam-se ligados a religiões, 56.807.366. É
este o total, reza a notícia. Falta, pois, classificar o modo de crer ou de não
crer do restante, isto é, de 74.602.215 pessoas, ou seja a maioria da população. Para auxiliar o espírito de quem nos lê,
diremos: haverá muitos materialistas, muitos descrentes, muitos céticos. Seja o
número desses, aí por uns 20 milhões, o - que já representa muito materialismo,
muita descrença, muita dúvida. Pois ainda restam 54 milhões e meio de pessoas,
sem classificação... O comunicado, nessa lista discriminativa dos crentes, não
faz a mais leve referência aos outros espiritualistas, como seja o teosofista,
o espiritista, que representam duas escolas com avultado número de adeptos.
Eis que se aclara o caso, de modo indireto. Em uma de
nossas estantes, pouquíssimas estantes, entre os poucos alfarrábios que ali
fazem número, topamos com um livro de grande formato, encadernado, com 384
páginas. Nada mais que 24 fascículos enfeixados entre duas capas. Uma revista
ilustrada, editada na Capital Federal. Esses fascículos são de Janeiro de 1901
a Dezembro de 1902, da revista "O Arauto da Verdade", publicação
oficial da denominação religiosa Adventismo do Sétimo Dia ou Sabatismo. Na
capital paulista, Rua Taguá, distrito da Liberdade, ergue-se o majestoso templo
dos Adventistas do Sétimo Dia.
Trata-se de uma revista mensal, muito bem escrita, com
escolhido corpo de colaboradores. Assuntos variados enchem as colunas, sobre
exegese bíblica, história, geografia, economia política, questões de política
internacional, estatísticas, etc., com ilustrações fotográficas, desenhos e
gravuras. Continuando nesta digressão, dentro ainda do parêntese, queremos dar
ao leitor uma notícia, colhida ali, nas páginas do volume do ano de 1901, nº 4,
mês de Abril.
Como é sabido, os Adventistas ou Sabatistas são
adversários implacáveis do Espiritismo, por estar este basificado no princípio
da imortalidade da alma, ao passo que o Adventismo não admite a alma imortal
senão para eles... Fora desse grêmio, não há imortalismo. Pois então, vai falar
sobre o Espiritismo o Sr. Willi, no citado volume, pag. 56. Diz ele:
“...Religião
ou ciência, como quer que se lhe chame, desde que os seus ensinos implicam a
origem, natureza e destino da humanidade, inculcando-se com verdades únicas na
matéria, o seu estudo não pode nem deve ser desprezado, tanto menos quanto é
crescido o número dos que a ele aderem, pois só nos Estados Unidos o número de
seus adeptos é taxado em onze milhões". (O grifo é nosso). À pag. 39 do
mesmo volume lê-se isto: “Estas manifestações, porém, manifestações espiríticas,
como então lhes chamavam e ainda hoje lhes chamam, não ficaram por muito tempo
restringidas à família Fox. Com efeito, este movimento adquiriu um impulso tal,
que, no curto espaço de 2 a 3 anos o número dos médiuns, reconhecidos tais, nos
diversos Estados (USA), era avaliado em mais de trinta mil." Assinado: R. M. Devens, no ‘Our First Century’.
Essas palavras e esses dados numéricos dispensam
qualquer comentário, maximamente considerados como testemunho insuspeito.
Qualquer um de nós, ou todos nós estamos habilitados a olhar com outros olhos
aquele hiato, aquele espaço em branco na citada relação dos crentes recenseados
recentemente nos Estados Unidos da América do Norte. Há quarenta anos,
precisamente, - disseram os inconciliáveis adversários do Espiritismo que este
contava nos Estados-Unidos 11.000.000 de adeptos, e, há noventa anos - ou três
anos após os fenômenos prodrômicos (iniciais) das manifestações espiríticas, na família Fox, os
médiuns eram em número superior a 30.000. Fechemos o parêntese).
Pois bem. Sendo a Bíblia, como é, a base de tantas,
tantíssimas religiões e seitas cristãs, eis que no seu conteúdo, em toda a sua
contextura, nessas centenas de milhares de palavras, nesses três milhões e meio
de letras, a palavra “religião” aparece apenas duas vezes, e com significação
que não é a corrente entre as diversificadas denominações da terra. Nem Moisés,
guia do povo israelita e receptor da Lei Divina, nem Elias, nem os demais
profetas da Antiga Aliança, nem mesmo o Mestre dos Apóstolos empregaram essa
palavra ...
É que Jesus não veio trazer teorias, e “religião” não
é teoria. Mestre único, veio ensinar a sua doutrina, que se baseia no exemplo,
nas boas-obras; que se torna conhecida pelos “atos” e não pelas palavras. É
sabido que Ele nada escreveu, ou antes, escreveu uma única vez, e essa mesma na
areia ou no chão, sede das sujidades calcadas por nossos pés, e por isso a
única página que merecia o registo da perversa hipocrisia dos chefes da “religião”
judaica, que queriam ver condenada à morte, por lapidação - mas condenada por
sentença de Jesus - aquela pobre mulher por eles mesmos feita adúltera, quando eles,
acusadores, não podiam atirar a primeira pedra (como mandava a lei), por serem
mais pecadores e mais culpados do que aquela pobre vítima da sua falseada “religiosidade”.
(João, cap. VIII).
Jamais disse Jesus que viera pregar “religião”, no
sentido de “corpo de doutrinas e de dogmas”, de “coisa sobrenatural”, “ritualismo”,
“forma de culto”, “mistérios”, “exterioridades”. Isso tudo já estava ali, no
Judaísmo, não por obra de Moisés, mas dos fariseus. “Em vão me honram, ensinando doutrinas e mandamentos que vêm dos
homens. Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de
mim". (Mt., XV 8,9)
Fora da “igreja” de Jerusalém, pensavam os judeus, não
era possível adorar a Deus. Uma religião regionalista, rigidamente i-gre-ji-fi-ca-da.
Com espanto e indignação, notavam os doutores da lei
que o Mestre não predicava no templo, e o primeiro discurso que proferiu, o
mais importante porque o em que resumiu o seu ensino, toda a sua doutrina -, esse,
denominado o Sermão da Montanha, foi proferido ao ar livre, como a significar
que suas palavras não podiam caber no espaço confinado por quatro paredes, mas
deviam voar pelo infinito, nas asas de luz do seu verbo divino...
A essência desse discurso amorável é esta: “Deus é o pai de todos os homens e todos os
homens devem amar-se uns aos outros.” Eis a religião, tal como a entendia
Jesus, tal como a estabeleceu na terra. “Somente
isto é religião, porque só isto religa os homens entre si.”
Eis explicado o silêncio da Bíblia, do Evangelho,
sobre a palavra “religião”.
Em português - como sabemos - existem duas traduções
autorizadas do Livro Sagrado: a católica, do Padre Antônio Pereira de
Figueiredo, e a protestante, do pastor João Ferreira de Almeida. E esses
ilustres tradutores encontraram a palavra "religião" apenas duas vezes!
Empregaram-na os dois apóstolos do universalismo: Paulo e Tiago. Eis Os textos:
“...porque eu
- diz Paulo no seu admirável discurso perante o rei Agripa - segundo a seita mais segura da nossa
religião, vivi fariseu." (Atos do Apóst., XXVI,5).
“Se algum
pois cuida que tem religião, não refreando a sua língua, mas seduzindo o seu
coração, a sua religião é vã. A religião pura, e sem mácula aos olhos de Deus e
nosso Pai, consiste nisto: em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições,
e em se conservar cada um a si isento da corrupção deste século” (ou deste mundo). (Tiago, I, 26, 27).
Este apóstolo era companheiro inseparável de seu
Mestre. Com a “mente” esclarecida pela palavra e pelo exemplo de Jesus, revela
neste texto a ideia que formava de “religião”, ou melhor, “da” religião do
Mestre.
“Há na terra duas religiões... igualmente necessárias
- diz Latino Coelho -, a religião da fé e a religião do entendimento.”
Ensina o Mestre, em Mat., XXII, 37: - “Amarás o Senhor
teu Deus de todo o “teu” entendimento” - e não de todo o teu credo... (*)
(*) A palavra credo é latina e quer dizer eu creio.
3. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Seremos
salvos pela fé ou pelas obras?
Não é filho de Deus quem não
está filiado à Igreja de Roma. PIO XI.
Qual a resposta do católico? E a do protestante? E o
que diz a Bíblia, base doutrinária de ambos?
É o que vamos ver. O próprio título deste opúsculo já
indica a importância do assunto para esses crentes, por se referir ao destino
da alma após a morte do corpo. Acompanhe-nos o leitor nesse inquérito, que é
interessante e instrutivo; interessante, pela própria natureza do assunto, que
diz respeito à vida futura, vida espiritual, que é vida imortal, e isto nos
interessa; instrutivo, porque em toda investigação, em toda inquirição, em toda
análise, nosso espírito ganha sempre algum ensino por nós ignorado, alguma
informação que nos instrui. Da infância à velhice, não perde a criatura humana
a curiosidade investigadora.
Acompanhe-nos o leitor na caminhada que vamos fazer e
que não será longa, porque procuramos seguir a linha reta, deixando de lado as
curvas traçadas pelas controvérsias religiosas. Para chegarmos ao fim desejado
é bastante ouvirmos o ensino principal da Igreja Romana e da Igreja Reformada
ou Protestante. Conhecida a voz dessas duas comunidades cristãs, escutaremos as
Sagradas Escrituras, através da palavra dos representantes do profetismo do
Velho Testamento, de par com a doutrina clara e sem ambiguidades de Jesus, no
seu Evangelho, e divulgada por seus discípulos, notadamente os apóstolos Mateus,
João, Paulo, Tiago e Pedro.
Uma pequena circunstância assinalada na vida da Igreja
Cristã, mas de grande significação, e que não deve ficar esquecida, é esta: o
apóstolo Paulo não fez parte do colégio apostólico durante os três anos em que
o Mestre andou pela Palestina, no exercício do seu messianato.
Conseguintemente, não lhe acompanhou os passos, não lhe ouviu a palavra como os
outros apóstolos, nem testemunhou aqueles feitos maravilhosos narrados pelos
evangelistas. Foi chamado à atividade, na Seara do Senhor, como "vaso escolhido" (Atos, 9:15),
dois anos depois do drama do Calvário. Foi um embaixador “extraordinário”, um
apóstolo especial, extranumeral, escolhido precisamente no momento em que se
acumpliciava com os seus colegas de farisaísmo na cruel perseguição ao primeiro
agrupamento de crentes.
A crueldade dessa perseguição culminou na morte de
Estevão, que foi lapidado ou morto a pedradas, pelo fato de seguir as pegadas
do Mestre, amando os seus semelhantes e obrando grandes prodígios. Culminara a
exasperação dos perseguidores (entre os quais figurava Saulo ou Paulo), quando
viram que não podiam resistir à sabedoria e ao espírito que falava em Estevão,
e Saulo era consentidor na sua morte (2). Contudo, o ardoroso Paulo foi diretamente
inspirado por Jesus, de quem recebeu a missão de pregar a Verdade fora do campo
judaico, “diante das gentes, e dos reis, e dos filhos de Israel" ou judeus
cristãos da congregação de Roma.
Tornou-se o maior e mais ativo dos pregoeiros do
Evangelho, e foi, dentre os neo testamentários, o que mais escreveu. O Novo
Testamento compõe-se de 27 livros: 4 evangelhos, 1 livro histórico (Atos dos
Apóstolos), 1 livro profético (Apocalipse ou Revelação) e 21 epístolas ou
cartas. Destas 21 epístolas, 14 foram escritas por Paulo, e encerram verdadeiro
compêndio da doutrina cristã. (Na Vulgata Latina ou Bíblia Sacra Latina, que é
a tradução do Antigo e do Novo Testamento, do hebraico e do grego, por São Jerônimo,
no séc. IV, por ordem do papa Dâmaso, dada no ano 384, nessa tradução a
Epístola aos Hebreus é atribuída a Paulo, e os protestantes adotam essa
tradução, conforme se vê nas livrarias evangélicas. Possuímos um exemplar da Bíblia
Sacra Latina ex Biblia Sacra Vulgata Editionis, Sixti V et Clementis VIII;
London, Samuel Bagster and Sons Limited - 15 Paternoster Row, edição
protestante da tradução católica. Não esqueçamos este ponto essencial: os
Evangelhos, as Epístolas e o resto da Bíblia foram traduzidos no séc. IV, e o
Protestantismo apareceu no seco XVI; no ano de 1517).
(2)
Ler o livro histórico do Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, caps. 6 e 7. A
tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo (do latim, de São Jerônimo)
deve merecer preferência sobre todas as outras traduções, pela uniformidade da
linguagem em todas as edições católicas e edições protestantes.
4. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa Gráfica
da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Igreja Romana - O católico, a rigor, não afirma nem nega
a salvação, se pela fé ou pelas obras. A razão é simples: ele se atém ao ensino
de sua Igreja, e, sendo ela a única verdadeira e depositária única da verdade
religiosa -, força é convir que a salvação de seus profitentes está garantida,
desde que sejam obedientes aos mandamentos da Santa Madre. Não ignora o
católico que a Igreja se encarrega de salvar as almas de seus adeptos, por meio
das missas que os parentes destes mandam rezar, as quais são pagas
adiantadamente, segundo a tabela de preços e a classificação delas (missa
simples ou missa acompanhada de música sacra, missa com ornamentação do templo
ou missa sem ornamentação, missa celebrada pelo vigário ou pelo coadjutor ou
ainda por um bispo; quando encomendada por pessoas muito ricas ou pertencentes à
alta sociedade ou às esferas governamentais, então a missa, de caráter
especial, será rezada pela mais alta dignidade da Igreja, na província eclesiástica,
com direito a uma solene alocução).
Essas cerimônias, é sabido, obedecem a preços
tabelados, de acordo com a categoria do templo (na Igreja de S. Bento, por
exemplo, aqui na Pauliceia, cujo templo é riquíssimo porque riquíssima é a
Ordem dos Beneditinos, os preços não são os mesmos da tabela de outros templos
menos ricos).
Quanto, porém, ao estágio ou permanência nas chamas
purificadoras do purgatório, é coisa ainda não sabida. Os próprios sacerdotes
lá do Vaticano não sabem o tempo que as almas levam a penar. Todavia, dizem
todos, no caso de dúvida, é sempre bom o sufrágio pelos mortos, como prova de
devoção e de caridade. Assim, pode-se e deve-se mandar rezar missas por
intenção da alma de pessoa falecida há muitíssimos anos. Talvez não seja impedida
uma missa pela alma de Caim, de Pilatos ou de Torquemada.
Parece, mesmo, que não há razão nem conveniência para
que a Igreja diga se a salvação é pela fé ou pelas obras; se é pelo poder da
missa que ela tira as almas do purgatório, então não é nem pela fé, nem pelas
obras... O que interessa, e muito, é a obediência passiva dos fiéis à palavra
do sacerdote que é a palavra da Igreja (e, sendo a palavra da Igreja a mesma de
Jesus, segue-se que a palavra do sacerdote é a palavra de Jesus). Consequentemente,
não é da conta dos crentes saber se a salvação é por este ou por aquele meio.
Cumpra cada qual os mandamentos da Igreja, faça o que ela manda e impõe, ainda
que não compreenda o que vai fazer. Pouco importa. Não procure saber qual o
destino da alma depois que o corpo baixar à sepultura. Na obediência absoluta
está a chave da salvação. Nem mesmo uma consulta ao Evangelho deverá ser feita,
porque acima da palavra de Jesus está, agora, a palavra do sacerdote, que é seu
único representante, assim como os membros do clero, em geral. E no seio da Igreja
já se anunciou que os sacerdotes estão, num certo ponto, acima do próprio Deus.
Escute o leitor a palavra de um grande mestre:
“Estamos os
eclesiásticos tanto acima dos governos, imperadores, reis e príncipes deste
mundo, quanto o Céu acima da terra. Os reis e príncipes mundanos diferenciam-se
tanto dos padres, quanto o chumbo do ouro mais fino e mais puro. Muito abaixo
do padre estão os anjos e arcanjos; porque ele pode em nome de Deus perdoar os
pecados, ao passo que os anjos nunca o puderam. Nós somos superiores à mãe de
Deus; porquanto ela não deu à luz o Cristo senão uma só vez, e nós o criamos
todo o dia. Sim, os sacerdotes estão, até certo modo, acima de Deus; visto que
Ele deve achar-se a todo tempo e em toda parte, à nossa disposição, e por ordem
nossa baixar do Céu para a consagração da missa.
Deus criou, é
certo, o mundo, com a simples palavra “seja”; mas nós, padres, criamos o
próprio Deus com três palavrinhas. Confessamos que todo e qualquer padre é
maior que a mãe de Deus, Maria mesma, que apenas deu à luz Nosso Senhor uma vez
só, enquanto um padre romano sacrifica e cria Jesus Cristo, não só em intenção,
mas na realidade, onde quer que lhe parece, e, depois de cria-lo, ingere-o
completo.” (Consulte-se Ruy Barbosa em O Papa e o Concilio, págs.
112 e 113, nova edição, Saraiva & Comp., editores, Livraria Acadêmica, S.
Paulo).
E se os católicos não devem saber nada mais, além do
que lhes ensina o sacerdote, claro é que não devem mesmo procurar ouvir a voz
de Jesus no Evangelho. É essa a razão por que raríssimo é o católico que lê o Evangelho,
base fundamental da sua crença, raríssimo o que se preocupa com questões
doutrinais ou com a salvação de sua alma. Assim foram orientados e educados
pela Igreja. Generalizou-se aquele ensino da Ordem dos Jesuítas, quanto à
obediência cega devida à Igreja:
“Se nossos
olhos virem que uma coisa é branca e a Igreja disser que é preta, devemos dizer
que é preta, porque assim o diz a Santa Madre” Alguns dicionaristas registram certas locuções e
frases peregrinas ou estrangeiras, entre as quais esta: Perinde ac cadaver, isto é, como um cadáver. E lá explicam: “locução que exprime a obediência passiva e
absoluta, e que dizem ser a divisa dos jesuítas".
É a realidade. Entre os católicos não pode haver
liberdade de consciência, muito menos a liberdade de examinar ou o livre-exame,
como entre os protestantes. Nem mesmo o simples exame de um só ponto de fé.
Basta crer: Nada de examinar! Cada crente, por assim dizer, passa procuração ao
sacerdote para pensar por ele. E como bom procurador, o padre poderá dizer: feche
os olhos, que eu olharei por você.
Assim educados, não possuem os católicos o hábito da
reflexão, de pensar por si mesmos, em matéria de religião. Daí essa fria
indiferença que lavra na massa inteira dos católicos, pelas coisas da religião.
Procuram fazer uso da “razão” quando tenham de emitir um juízo, uma opinião, fora
desses limites, ou praticar um ato que acarrete responsabilidade. Aí, sim, a
coisa é diferente, e não há procurador, porque o cantar é outro: aparece bem
nítido o raciocínio ou trabalho operado pela razão. Seriam capazes até de
subscrever aquela expressão de Garrett e registrada por Aulete: “Razão” que és
d'alma o sol, gira em nossa alma, dá-nos dia e clarão ao pensamento.” Mas, em
se tratando dos interesses da alma ou da vida imortal, a coisa muda de rumo:
isso é lá com o seu guia espiritual, e este não aceita a autoridade da razão...
Nesses casos figurados, o bom católico não confia em nenhum
estranho: ele mesmo é que raciocina, ele mesmo é que resolve, da mesma maneira
que come com a sua boca; não é capaz de pôr sua assinatura num papel sem
primeiro examinar o que ali está escrito; sua razão, nesse caso, é uma
sentinela fiel e vigilante; em matéria de religião ou de coisas espirituais,
prefere falar por outra boca e olhar com olhos que não sejam os seus. Em suma:
elaboração própria, isto é, uma conquista mental que seja sua, não pode haver,
em assunto religioso, porque não há conquista mental onde o cérebro é dirigido
-por outro cérebro. Com justeza e com ironia mordente, assim se expressa o
grande idealista e filósofo argentino, José Ingenieros, acerca dos homens que
pensam e agem por essa forma: “Astrônomos
houve que se negaram olhar para o céu, através do telescópio, temendo ver
desbaratados os seus erros mais firmes. Pressentem um perigo em toda ideia
nova; se alguém lhes dissesse que os seus erros são ideias novas, chegariam a julgá-los
perigosos. Preferem o silêncio e a inércia; não pensar é a sua maneira de não
errar. Seus cérebros são casas de hospedagem, mas sem dono; os outros pensam
por eles que, no íntimo, agradecem esse favor.”
5. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Cristão não é, pois, aquele que segue a Cristo na
prática da solidariedade e da fraternidade, mas sim o que obedece cegamente à
Igreja da cidade de Roma. E o chefe dessa Igreja já o disse ao mundo inteiro:
Não terá Deus como Pai quem se tiver recusado a ter a Igreja como Mãe. (Carta
Encíclica de Pio XI, acerca da Educação Cristã da Juventude, pag. 7 - Empresa
Gráfica da "Revista dos Tribunais", 1930 - S. Paulo).
Com o cérebro cheio de ideias afinadas por esse
diapasão papal -, é claro que o católico não pode mesmo pensar na salvação, se
pela fé ou pelas obras; e se não pode pensar, quanto mais opinar! ...
Uma coisa os católicos não ignoram e é esta: que eles
se grupam em duas categorias bem definidas: católicos práticos e católicos
teóricos. Os primeiros, aceitam sem relutância todos os dogmas, todo ensino,
todos os mandamentos da Igreja. Os segundos, que constituem a maioria absoluta,
não admitem a infalibilidade papal; não toleram a existência do confessionário
onde um pecador vai pedir perdão a outro pecador por haver pecado contra outro
pecador; não acreditam na existência de um inferno - lugar, arquitetado e construído pelo Pai da humanidade; não podem
crer, seja a Igreja da cidade de Roma a única depositária da verdade religiosa,
como se Deus, não podendo suportar o peso dessa verdade, se achasse na
necessidade de reparti-la com uma única comunidade, privilegiadamente italiana;
não acreditam que Os sacerdotes possam criar tantos Cristos quantas missas, diariamente;
não acreditam que os sacerdotes façam descer Jesus do Céu, nos altares, o mesmo
Jesus que andou na terra, para ser ingerido inteiro pelos sacerdotes no
mistério da transubstanciação, como ainda o afirma hoje a Igreja; não admitem
seja o padre mais poderoso que Deus.
Em se tratando de assunto merecedor de todo respeito, esse,
que se refere ao destino da alma após a morte do invólucro material, não nos
esqueçamos, leitor amigo, de que o papa Pio XI escreveu essa encíclica não para
a mentalidade da Idade Média, mas para os dias desta geração, para a juventude
destes dias. Acaso nutrirá esperança a Igreja de Roma, de que a juventude acolha
com seriedade e com convicção tal sentença judicial do Sumo Pontífice?
Ora, se a Igreja está realmente praticando e
exemplificando o ensino de Jesus; ai ela está pregando a doutrina confraternizadora
do Mestre, doutrina segundo a qual todos os homens são irmãos, sejam quais forem
suas raças ou crenças -, se ela está cumprindo assim a sua missão de fiel
condutora e de iluminadora de almas, como explicar que os homens se afastem
mais e mais, em vez de se chegarem a ela?.. Se os seus sacerdotes são realmente
os sucessores dos apóstolos e são um exemplo vivo de fé e de santidade -, como
explicar a incredulidade assustadoramente avassalante em todas as camadas
sociais? Como explicar, então, o fato de irem os homens buscar, fora da Igreja,
conhecimentos que lhes saciem a sede de luz? Como isso?
Essas interrogativas merecem atenção. Após alguns
minutos de reflexão, o leitor mesmo responderá, dizendo: “Estamos no século das
análises. A Física e a Química, aliadas à Matemática e à Astronomia, governam o
mundo. O homem de hoje quer estudar para conhecer, quer analisar para
compreender, quer compreender para crer porque a fé - se de fato exprime
convicção - não pode ter outra base que não seja a compreensão. Ninguém se
convence de uma verdade que não seja entendida. Cada dogma - raciocinam hoje -
deve encerrar uma verdade, e a verdade jamais temeu confrontos, porque uma
verdade não pôde ir contra outra verdade. No entanto, os dogmas exigem e impõem
o silêncio, e, pela voz da Igreja ensinam que os crentes devem crer neles sem
indagar, obedecer sem discutir, caminhar sem olhar para o alto mas só para
baixo, porque a palavra do... sacerdote é sagrada, é a palavra do próprio
Deus".
Essa juventude que o papa Pio XI quis instruir com
aquele espírito exclusivista, ardente de vida e sacudida pelas vibrações do bem
e do belo, sem temor das ondas do pensamento contemporâneo; essa geração que
surge amparada pelo influxo da verdadeira concepção da liberdade, da justiça, da verdade -, sim, essa gente nova que sabe
pensar por si, concebe a religião não mais como um conjunto de ritos e
símbolos, de dogmas indevassáveis e de mistérios amedrontadores, mas como adoração,
justiça e amor, expressões espontâneas do sentimento e não mais da memória;
entende essa geração nova que igreja é a assembleia das adorações, dos justos e
dos que amam; compreende a religião como uma ciência, a ciência do amor e das
ações. Sabe essa mocidade que a religiosidade de um indivíduo ou de um povo,
não se mede pelas palavras nem pelo número, mas pelo sentimento de fraternidade
corporizado na conduta, pelo nível moral das criaturas, pelo amor à verdade e à
justiça, pela prática do bem.
E, caminhando nessa direção do pensamento, a juventude
de nossos dias sabe pensar com o eminente economista belga, Emílio de Laveleye,
afirmando que “a instrução é a base da liberdade
e da prosperidade dos povos; afirmando, também, que em relação à instrução
elementar, os povos protestantes estão mais adiantados que os povos católicos,
visto que o culto protestante repousa sobre um livro: a Bíblia; O protestante
deve, pois, saber ler, ao passo que o culto católico, pelo contrário, repousa
sobre certas práticas, como a confissão, a missa, o sermão, que não exigem a
leitura. Saber ler não é, pois, necessário; é antes um perigo, porque abala
necessariamente o princípio da obediência passiva, sobre a qual se apoia todo o
edifício católico."
Essa juventude que o papa Pio XI desejou ver envolvida
pela ideia segundo a qual só a igreja italiana merece o amor de Deus, sim, essa
juventude estuante, fervente de vida e de aspirações, sabe reflexionar com
Victor Hugo, o maior cérebro francês de todos os tempos: "Para fazer um
cidadão, principiemos por educar um homem. Abramos escolas por toda parte: Não
é homem o que não tem a luz íntima que a instrução dá: é uma cabeça do grande
rebanho, sem ação, que o dono guia, ora para a pastagem, ora para o matadouro.
Aquilo que resiste à escravidão, na criatura humana, não a matéria, é a
inteligência. Começa a liberdade onde
acaba a ignorância.”
- É claro porque é lógico porque é racional, que a
juventude contemporânea não representa cabeças do grande rebanho. Eis a razão por
que os jovens de hoje não podem tolerar, não podem suportar o ensino que repele
a luz da razão, que não admite o raciocínio dentro da religião. Se os dogmas
não resistem a luz da razão num simples exame mental, é para duvidar-se, então,
da sua solidez. Se não suportam o sopro da lógica, é que não encerram senão
partículas da verdade, pois que a lógica é a ciência do raciocínio ou arte de
chegar à verdade. E assim, a juventude, que já tem “olhos de ver”, vai logo
raciocinando: dogmas significam “estática” ou “imobilidade”, mas o nosso século
é da dinâmica, do movimento, da análise, do exame. E chega facilmente à
conclusão fatal porque inevitável de que não é possível afinidade entre a
inércia e o movimento, pois que a luz também é movimento, e movimento vibratório
rapidíssimo...
Difícil, muito difícil, para os jovens, a resposta
solicitada no frontispício deste opúsculo... Essa dificuldade jamais será
diminuída, visto que a Igreja afasta-se mais e mais do ensino do Evangelho, o
que vale dizer: afasta-se da palavra de Jesus. É que ela não quer deixar aquele
dogmatismo da Idade Média, a escolástica, um misto de filosofia e teologia
ensinado nas escolas, cujos professores ventilavam problemas de ginástica
mental como estes: "Que cor tinha a barba de Judas? A mulher terá alma?
Quantos anjos poderão caber na ponta de um alfinete?" - Isso tudo enricava
o nome da Igreja, e essa riqueza era o Dogmatismo que, segundo os mestres, é o “sistema
dos que admitem os dogmas; sistema dos que não aceitam discussão do que afirmam
ou alegam.” E para dar vida a esse passadismo, muito artifício malabarístico se
faz preciso. Aos olhos dessa juventude inteligente e indagadora, aos olhos
dessa brilhante geração que surge com espírito já emancipado, não escapa a
observação do movimento desenvolvido pela Igreja, de uns anos para cá, no
sentido de tornar a religião cada vez mais externa, mais materializada, mais
rica em exterioridades, para mostrar a sua pujança, o seu poder. A prova desse
retrogradismo aí está nesses Congressos Eucarísticos, que reúnem os elementos
da alta sociedade, a elite, o escol, a flor do intelectualismo. Para quê? Tal a
interrogativa de toda gente que pensa, que raciocina; tal a interrogativa dos
jovens destes dias. Por que não havia antes? Verdadeira novidade ou mais uma
das mil inovações da Igreja de Roma -, os católicos das camadas mais baixas da
sociedade ainda estão por saber o que significam esses congressos e o que valem
para o povo que sente fome de pão espiritual; querem saber o que valem esses
congressos dos letrados, se a grande massa dos iletrados, se a maioria da
população jaz na escuridão do analfabetismo e na mais penosa ignorância dos
ensinos de Jesus. Sim, querem saber qual o benefício colhido nessas reuniões
aristocráticas pelo povo que trabalha e que faz toda a civilização; que se lhes
aponte um só benefício para a grande massa que sofre, mas sofrimento que os Srs.
congressistas ignoram, porque as grandes dores e as grandes deformidades morais
se abafam no recesso das choupanas e dos escuros porões, cujo solo poderia
manchar a sola dos ilustres membros desses banquetes intelectuais.
E, passados esses dias de fausto, de luminárias e de
oratória, o povo continua na sua escuridão religiosa. Todavia, como ficha
consolatória, lá no seu íntimo vai comparando esse espetáculo moderníssimo de
Retórica Aristocrática Católica com aquela vida simples, sublime e edificadora
de Quem não tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça, mas que lançou aos
quatro ventos este bálsamo para lenir as grandes chagas morais: “...aos pobres
é anunciado o Evangelho. Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o reino
e Deus.” (Lucas, caps. 6 e 7).
“Serei salvo pela fé ou pelas obras?” - indagara na
simpleza de sua bondade e de sua ignorância espiritual algum dos mais pobres dentre
esses pobres que formam o povo.
Antes, porém, que o leitor adivinhe a resposta, faça
uma experiência, que vamos lembrar. Provavelmente o amigo já conhece, como nós,
os efeitos interessantes e engenhosos de uma câmara lenta dos estúdios
cinematográficos. Pois bem, lembramos-lhe uma como imitação. Fechando os olhos,
pelo espaço de meio minuto apenas, converta a sua mente em uma câmara lenta e
faça desfilar por ela, um a um, todos os que habitam o seu lar e os demais
parentes, e também todos os seus amigos, cada qual com a sua respectiva crença
religiosa estampada na fronte. Para completar o número, o amigo encabeçará essa
longa fila. Passados esses trinta segundos, reabra os olhos, escute a
consciência e responda-nos: acha possível essa unanimidade de crença exigida pela
Igreja Romana e confirmada solenemente pela fulminativa asserção de Pio XI?
Seria possível esse unanimismo compacto, sem frinchas nem poros? Acha o leitor possível levar todos esses
parentes e amigos ao confessionário?
Com os olhos abertos, e agora, fora da sua câmara lenta,
responda o leitor pelo católico: pela fé ou pelas obras?
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