sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Profissão de Fé - Parte 5



Profissão de Fé – parte 5
por Gustavo Macedo
Fonte:  Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905

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                               Um surdo em meio de um concerto, um cego diante de uma paisagem nada percebem e todavia o concerto, a paisagem existem.  O mesmo se dá a respeito do mundo espiritual. 
O homem carnal nele está mergulhado, e não o suspeita.
('A Renovação Religiosa', Reformador nº 2, de 15 de janeiro de 1905).

            Vimos, em nosso artigo anterior, os méritos do ilustre educador Rivail. Vamos agora estudá-lo como missionário de Deus e apóstolo de Jesus; e assim como Pedro era Simão, antes de ser o apostolo, Rivail, que se constituiu a pedra angular da nova revelação, passou a ter perante a humanidade, e como tal universalmente conhecido, o nome de Allan Kardec.

            Foi de 1854 a 1856, que o nosso mestre aplicou o espírito ao estudo do fenômeno das mesas giratórias, que constituía uma das distrações da moda nos salões parisienses. Quanto à dança das mesas, procurava ele encontrar o efeito puramente material, mas, quanto a ‘mesas falantes’, achava-o inexplicável e até contrário às leis da natureza.

            Várias pessoas dignas de fé, entre as quais se contavam as Sras. Roger, Plainemaison e os Srs. Pâtier, o magnetizador Fortier e o seu velho amigo Carlotti, lhe tinham falado nos fenômenos referidos.

            Convocada uma reunião para essa ordem de trabalhos, em casa da Sra. Plainemaison, à rua Grange-Batelière nº 18, compareceu o nosso mestre, previamente convidado, tendo início a sessão em uma terça-feira de maio, às 8 horas da noite.

            Ouçamos o mestre:

            “Foi ali, pela primeira vez, que fui testemunha do fenômeno das mesas giratórias e que saltavam a corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era possível.

            Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. As minhas ideias estavam longe de se haver modificado, mas naquilo havia um fato que devia ter uma causa. Entrevi, sob essas aparentes futilidades e a espécie de divertimento que com esses fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como a revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi aprofundar.”

            Travando relações com a família Baudin, em um dos serões da Sra. Plainemaison, foi admitido às sessões hebdomadárias que aquela família realizava.

            Fez então os seus primeiros estudos sérios em Espiritismo, pela rigorosa observação e emprego do método experimental, entrevendo a chave do obscuro problema controvertido do passado e do futuro.

            Colhendo a prova positiva de que os espíritos eram a causa eficiente dos fenômenos observados, e que, sendo as almas dos homens, não possuíam a soberana sabedoria ou a ciência absoluta, sendo o saber de cada um limitado pelo grau de adiantamento, evitou assim a crença na infalibilidade das comunicações, o que o preservou de formular teorias prematuras sobre o dizer de alguns.

            Estava provada a existência de um mundo invisível ambiente, encontrada a chave de uma multidão de fenômenos inexplicados.

            Conhecido o mundo novo, era preciso conhecer o seu estado; foi o que fez o nosso mestre, interrogando, por meio de bons médiuns, que sempre teve a mão, os seus habitantes.

            Então diz ele:

            “Cedo eu vi que cada espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, dele me desvendara uma fase, exatamente como se chega a conhecer o estado de um país, interrogando os habitantes de todas as classes e de todas as condições, podendo cada um nos ensinar alguma coisa, e nenhum deles podendo, individualmente, nos ensinar tudo.” 

            Longe de ser um entusiasta dessas manifestações, a princípio esteve o mestre quase a abandonar esses estudos, absorvido como se achava por outra ordem de preocupações.

            Felizmente demoveram-no desse intento as solicitações reiteradas dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das ciências, Thiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que acompanhavam, havia cinco anos, o estudo desses fenômenos e haviam reunido cinqüenta cadernos de comunicações diversas, só conseguindo po-las em ordem o nosso mestre, dadas as suas aptidões de síntese.

            O leitor naturalmente há de ter feito esta interrogação: porque Rivail passou a chamar-se Allan Kardec?

            Certa noite, seu espírito protetor deu-lhe uma comunicação pessoal, revelando-lhe tê-lo conhecido e sido seu amigo nas Gálias, quando o mesmo tinha o nome de Allan Kardec, e acrescentando que o amor que lhe votava, crescera com o tempo, e vinha secundá-lo na obra importante, a que era chamado, e facilmente levaria a termo.

            Quando, pois, o mestre deu a lume, em 18 de abril de 1857, intitulado o Livro dos Espíritos, pensou em usar de um pseudônimo, em razão de ser muito conhecido no mundo científico por seus trabalhos anteriores, o que podia dar lugar a confusões, e adotou então o alvitre de assinalá-lo com o pseudônimo de Allan Kardec com que passou à posteridade.

            A obra alcançou um tal sucesso que a primeira edição foi logo esgotada, tendo-se feito outra em 1858, e daí para cá as edições não cessaram em todas as línguas.

                                                                                    *

            O espírito familiar de Allan Kardec nunca mais o abandonou: constantemente o advertia e o auxiliava em sua obra.

            Quando o nosso mestre preparava o Livro dos Espíritos, seu guia bateu repetidas vezes no tabique de seu gabinete. No dia imediato, na sessão em casa do Sr. Baudin, seu espírito familiar, que dava pelo nome ‘Verdade’, o advertiu sobre erros que existiam na parte de um capítulo de sua obra; por isso tinha-lhe chamado a atenção com os ruídos da véspera.

            O nosso mestre já tinha refeito o capítulo indicado por não lhe ter agradado. Havia-o melhorado, porém não estava ainda perfeito. O guia mandou que relesse atentamente da terceira à trigésima linha, e reconheceria grave erro, que com efeito foi emendado.

                                                                      *

            “Foi a 30 de abril de 1856, em casa do Sr. Roustan, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da missão que tinha a desempenhar. Esse aviso, a princípio muito vago, foi precisado no dia 12 de junho de 1856 por intermédio da Srta. Aline C., médium. A 6 de maio de 1857, a Sra. Cardone, pela inspeção das linhas da mão de Allan Kardec, confirmou as duas comunicações precedentes, que ela ignorava. Finalmente a 12 de abril de 1860, em casa do Sr. Dehan, sendo intermediário o Sr. Crozet, médium, essa missão foi novamente confirmada em uma comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec.
             Assim também se deu a respeito do seu pseudônimo. Numerosas comunicações, procedentes dos mais diversos pontos, vieram corroborar a comunicação obtida a esse respeito.” [1]

            O sucesso produzido pelo Livro dos Espíritos induziu o nosso mestre a fundar um jornal, para o que recorreu ao Sr. Tiedman, que lhe recusou o concurso pecuniário.

            Foi um bem.

Allan Kardec, confiante no auxílio do Alto, fez aparecer o primeiro número da sua revista - em 1º de janeiro de 1858, sem que ninguém soubesse, e conseguintemente sem ter assinantes, o que não impediu de alcançar o periódico um sucesso que dura até os nossos dias.

            Se tivesse um sócio, principalmente capitalista, é possível que não pudesse imprimir à revista a direção que imprimiu a revista.

            Todas as ideias tem seus apóstolos; todos os apóstolos têm seus mistérios:

            Allan Kardec antes de chegar ao Tabor da glória, tinha que ser pregado à cruz do sofrimento.

            Ouçamos o que lhe predizia um espírito familiar, respondendo a consulta do nosso mestre: se a insuficiência de suas aptidões seria a causa de fracassar em sua obra.

            “Não; mas a missão dos reformadores é cheia de escolhos e perigos; a tua é rude; previno-te, porque é o mundo inteiro que se trata de agitar e de transformar. Não creias que te seja suficiente publicares um livro, dois livros, dez livros, e ficares tranquilamente em tua casa, não; é preciso te mostrares no conflito: contra ti se açularão terríveis ódios; implacáveis inimigos tramarão a tua perda; estarás exposto a malevolência, à calúnia, à traição, mesmo daqueles que te parecerão os mais dedicados; tuas melhores instruções serão desconhecidas e desnaturadas; sucumbirás mais de uma vez ao peso da fadiga; em uma palavra, é uma luta quase constante que terás de sustentar, com o sacrifício do teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde e mesmo da tua vida - porque tu não viverás muito tempo. - Pois bem! Mais de um recua quando, em lugar de uma vereda florida, não encontra sob seus passos senão espinhos, agudas pedras e serpentes. Para tais missões, não basta a inteligência. É preciso antes de tudo, para agradar a Deus, humildade, modéstia, desinteresse, porque ele abate os orgulhosos e os presunçosos. Para lutar contra os homens, é necessário coragem, perseverança e uma firmeza inquebrantável; é preciso também ter prudência e tato para conduzir a propósito as coisas e não comprometer-lhes o sucesso por medidas ou palavras intempestivas; é preciso, enfim, devotamento, abnegação, e estar pronto para todos os sacrifícios.
             Vês que tua missão está subordinada à condições que dependem de ti.”

            Vamos agora entrar no Livro dos Espíritos, cuja notícia tem sido retardada pelas particularidades da vida do nosso mestre.

            Era necessário, porém, travar conhecimento com o obreiro, antes de admirar as luzes benditas da sua obra.

            Allan Kardec, apedrejado pelos espíritos das trevas, que lhe arrojavam as maiores calúnias e infâmias, traz na mão como palma da vitória o Livro dos Espíritos, que é a primeira estrofe do hino de amor com que responde aos ódios do fanatismo religioso.

[1]  Memória Histórica do Espiritismo págs. 19.
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               O espírito medíocre ocupa-se em ridicularizar, censurar e detrair; está sempre a escarnecer de tudo, exceto da impudência insolente ou do vício próspero.  Smiles, O Caráter, pág. 103.
           
            O Livro dos Espíritos é, como já dissemos a parte filosófica da doutrina. O espiritualismo não é privilégio dos espíritas; todas as religiões que têm por base a crença em Deus e na alma são espiritualistas. Espiritualista é, pois, aquele que acredita haver em si alguma coisa além da matéria. O espírita é, pois, espiritualista; mas este nem sempre é espírita.

            A doutrina espírita, ou o Espiritismo, tem por princípio as relações do mundo material com os espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos desta doutrina são, pois, os espíritas ou espiritistas.

            Como veem, o nosso mestre teve necessidade de um novo termo para significar uma coisa aparentemente nova. A definição dada pela academia de Paris à palavra espiritualista era vaga: - Espiritualista, aquele ou aquela pessoa cuja doutrina é oposta ao materialismo.

            Para novas descobertas novos termos.

*

            O maior número de incrédulos provém de maneira absurda pela qual lhes são apresentadas as verdades eternas. O homem quer crer no que é racional; em lugar disso apresentam-lhe o absurdo do dogma.

            No entanto, em meio de seus erros possuem as religiões partículas de verdade.

            Suficientes e precisas em épocas de atraso e barbaria, as religiões do passado bem merecem a nossa consideração pelos serviços provisórios prestados, e que ainda prestam aos retardatários e atrasados, mesmo em seu estado de agonia.

            Os homens, ainda os mais fanáticos, têm momentos de vacilações, quando refletem, mesmo que por instantes, nas desordens aparentes da sociedade e da vida humana.

            Líamos e meditávamos o Livro dos Espíritos; e quanto mais meditávamos e líamos, mais clara se fazia a luz em nosso espírito, por encontrarmos soluções anteriormente nunca encontradas para casos especiais, que frisaremos depois de transcrever o seguinte resumo da obra feita pelo nosso amado mestre Allan Kardec:

            “Deus é eterno, imutável, único, onipotente, soberanamente justo e bom.

            Criou o universo que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais.

            Os seres materiais constituem o mundo visível ou corporal, e os seres imateriais o mundo invisível ou espírita, isto é, dos espíritos.

            O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corpóreo é secundário, podendo cessar de existir ou nunca ter existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita.

            Os espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja destruição, pela morte, os restitui a liberdade.

            Entre as diferentes espécies de seres corporais, Deus destinou a espécie humana para a encarnação dos espíritos chegados a certo grau de desenvolvimento, que lhe dá a superioridade moral e intelectual sobre todas as outras.

            A alma é um espírito encarnado, de que o corpo é apenas o invólucro.

            Há no corpo três elementos:

1º O corpo material ou ser material, análogo ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital;
2º A alma, ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo 
3º O laço que liga a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.

            O homem tem, pois, duas naturezas: pelo corpo participa da natureza dos animais, da qual possui os instintos; pela alma participa da natureza dos espíritos; o laço, ou perispírito, que une o corpo ao Espírito é uma espécie de invólucro semi-material. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro; o espírito conserva o outro invólucro, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, mas que pode acidentalmente tornar-se visível, e mesmo tangível, como se observa nos fenômenos das aparições.

            Não é, portanto, o espírito um ser abstrato, indefinido, que só se possa conceber pelo pensamento, mas um ser real circunscrito e, em certos casos, apreciável pelos sentidos da vista, da audição e do tato.
            Os espíritos pertencem a diferentes classes e são desiguais em poder, inteligência, sabedoria e moralidade. Os da primeira ordem são espíritos superiores, que se distinguem dos outros por sua perfeição, conhecimentos, aproximação de Deus, pureza de sentimentos e amor ao bem: são os anjos ou Espíritos puros. As outras classes vão se afastando cada vez mais dessa perfeição; os das gradações inferiores são inclinados à maioria das nossas paixões: ódio, inveja, ciúme, orgulho, etc. Tendem para o mal.

            Entre os espíritos há alguns que nem são muito bons nem muito maus; mais turbulentos e travessos que perversos, a malícia e as inconsequências são os caracteres que os distinguem. São os espíritos frívolos ou levianos.           

            Os Espíritos não ficam perpetuamente adstritos a mesma ordem. Todos progridem, passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita.

            Este melhoramento se efetua pela encarnação, que é imposta a uns como expiação e a outros como missão.

            A vida material é uma prova que devem sofrer muitas vezes até que atinjam a máxima perfeição; é uma espécie de crisol, ou depurador, donde saem mais ou menos purificados.

            Abandonando o corpo, a alma volta ao mundo dos espíritos, donde saíra para recomeçar uma nova existência material, depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual se conserva no estado de espírito errante. Devendo o espírito passar por muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido muitas existências e havemos ainda de ter outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer nesta terra, quer noutros mundos.

            A encarnação dos espíritos efetua-se sempre na espécie humana; seria um erro acreditar-se que a alma ou o espírito possa encarnar-se no corpo de um animal.

            As diferentes existências corporais do espírito são sempre progressivas e nunca retrógradas; mas a rapidez do progresso depende dos esforços que fazemos para chegar à perfeição.

            As qualidades da alma são as do espírito que se encarnou; assim, o homem de bem é a encarnação de um bom espírito; o homem perverso a de um espírito impuro.

            A alma tinha a sua individualidade antes de se encarnar, e conserva-a depois de separar-se do corpo. Ao voltar ao mundo dos espíritos, a alma aí vai encontrar-se com todos aqueles que conheceu na terra, e todas as suas existências se lhe desenham na memória, com a lembrança do bem e do mal que fez.

            O espírito encarnado vive sob a influência da matéria, o homem que sobrepuja essa influência pela elevação e pureza da alma, aproxima-se dos bons espíritos, com os quais estará um dia. Aquele, porém, que se deixa dominar pelas más paixões e faz consistir a sua alegria na satisfação dos apetites grosseiros, avizinha-se dos Espíritos impuros, dando preponderância à natureza animal.

            Os espíritos encarnados habitam os diferentes globos do universo; os não encarnados, ou errantes, não ocupam uma região determinada e circunscrita; estão por toda a parte, no espaço e a nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos a todos os momentos. é uma população invisível agitando-se em torno de nós.

            Os espíritos exercem no mundo moral, e mesmo no mundo físico, uma ação incessante; têm influência sobre a matéria e sobre o pensamento, e constituem uma das potências da natureza, causa eficiente de grande número de fenômenos ainda inexplicados, ou mal explicados, e aos quais só o Espiritismo dá solução racional.

            As relações dos espíritos com os homens são constantes; os bons nos induzem a praticar o bem, sustentam-nos nas provações da vida e nos ajudam a suportá-las com coragem e resignação; os maus nos impelem para o mal e acham prazer ao ver-nos sucumbir e identificarmo-nos com eles.

            As comunicações dos espíritos são ocultas ou ostensivas. As primeiras consistem na influência, boa ou má, que aqueles exercem sobre nós, sem que o saibamos; neste caso, ao nosso juízo compete discernir as boas ou más inspirações. As comunicações ostensivas são as que se produzem pela escrita, pela palavra ou por manifestações materiais, o mais das vezes com auxílio de médiuns que lhes servem de instrumentos.

            Os espíritos manifestam-se espontaneamente ou por evocação. Podemos evocar todos os espíritos: os que animaram homens obscuros, como o dos personagens mais ilustres, qualquer que seja a época em que tenham vivido; os dos nossos parentes, amigos ou inimigos, e deles obter, por comunicações escritas ou verbais, conselhos, informações quanto à sua situação na vida de além túmulo, seus pensamentos a nosso respeito, assim como as revelações que lhes é permitido fazer-nos.

            Os Espíritos são atraídos na razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que os evoca: os superiores correm às reuniões sérias onde dominam o amor do bem e o desejo sincero de obter instrução e melhoramento. A sua presença afugenta os espíritos inferiores que, ao contrário, encontram livre acesso e operam em plena liberdade entre pessoas frívolas ou somente guiadas pela curiosidade, como em toda a parte onde dominem os maus instintos. Em vez de bons avisos e ensinos úteis, não devemos esperar deles senão futilidades, mentiras, graçolas pesadas, ou mistificações, porque muitas vezes adotam nomes venerados para melhor nos levarem ao erro.

            A distinção entre os bons e os maus espíritos é extremamente fácil: a linguagem daqueles é constantemente digna, nobre, respirando a mais elevada moral e isenta de baixas paixões; os seus conselhos são ditados pela sabedoria mais pura e visam sempre o melhoramento e o bem da humanidade.

            A dos espíritos inferiores, ao contrário, é inconsequente, ordinariamente trivial e muito grosseira; se, às vezes, dizem coisas boas e verdadeiras, na maioria dos casos só pregam falsidades e absurdos, por malícia ou ignorância; zombam da credulidade e divertem-se à custa dos que os interrogam, lisonjeado a vaidade desses e embalando lhes os desejos com mentidas esperanças. Em resumo, as comunicações sérias, em toda a acepção da palavra, só se dão nos centros sérios onde reine uma íntima comunhão de pensamentos no intuito do bem.

            A moral dos Espíritos superiores resume-se, como a do Cristo, na máxima evangélica:

            Proceder para com os outros como quereríamos que os outros procedessem para conosco, isto é: fazer sempre o bem e nunca o mal.

            Cada homem encontra nesse princípio uma regra universal para se conduzir, mesmo em suas menores ações.

            Os espíritos nos ensinam que o egoísmo, o orgulho, a sensualidade, são paixões que nos aproximam da natureza animal, tornando-nos escravos da matéria; a aquele que desde este mundo se desprende da matéria, desprezando as futilidades mundanas e amando o próximo, aproxima-se da natureza espiritual; cada um de nós deve buscar ser útil, segundo as faculdades e os meios que Deus nos confiou para experimentar-nos; o forte e o poderoso devem apoio e proteção ao fraco, e aquele que abusa da força e do poderio para oprimir o seu semelhante, viola a lei de Deus.

            Eles ensinam, finalmente, que no mundo dos espíritos, onde nada se pode ocultar, o hipócrita será desmascarado e todas as suas torpezas serão conhecidas; que a presença inevitável, a todos os instantes, daqueles a quem fizemos mal, é um dos castigos que nos estão reservados; que do estado de inferioridade ou de superioridade dos espíritos dependem sofrimentos ou gozos que não conhecemos na terra.

            Mas também nos dizem que não há faltas irremissíveis e que não possam ser apagadas pela expiação. O homem encontra meios para isso em suas diferentes existências, as quais lhe permitem avançar na senda do progresso, segundo o seu desejo e esforços, até alcançar a perfeição, que é o termo a que tem de chegar.
           
No próximo número daremos algumas particularidades interessantes.
            
25
E muito embora a vossa igreja se constrite
E a excomunhão papal nos abrase e destrua,
A análise é feroz como uma lança em riste,
E a verdade cruel como uma espada nua.
Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,
São como a cinza vã que sepultou Pompéia.
Exumemos a fé desse montão de escombros,
Desentulhemos Deus desse aluvião de areia.
E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,
Há de fazer, na mesma aspiração reunida,
Da razão e da fé os dois olhos da alma,
Da verdade e da crença os dois polos da vida.
(Guerra Junqueiro)


             Há no fundo do coração humano, embora em estado latente, o sentimento religioso.

            Quando o homem interroga o universo, e reflete sobre a mesquinhez da sua individualidade, é naturalmente forçado a procurar a existência de Deus, e nela encontrar solução para os problemas incompreendidos da vida.

          Às vezes a descrença provém da religião. Quantas e quantas pessoas não perderam a fé, por praticarem-na! As religiões têm sido as maiores causadoras de descrentes, pelo modo irracional com que a apresentam as partículas de verdade que todas, entretanto, possuem.

            Mostre-se ao homem uma doutrina racional, que satisfaça ao mesmo tempo ao seu coração e ao seu espírito, ele não tardará a abraça-la e a sentir-se feliz.

            A fé vai morrendo, e a igreja vai perdendo dia a dia, palmo a palmo, as vantagens conquistadas; é que o temor do diabo já não detém as criaturas na prática do crime, e do temor do diabo têm vivido as igrejas, e não do amor de Deus.

            A educação fanática não produziu crentes, fez descrentes e ateus. Condorcet, Diderot, Voltaire, Rousseau e muitos outros colaboradores da enciclopédia, outra coisa não foram que discípulos dos jesuítas.

            A obra desses vultos foi incompleta; apressaram a demolição dos velhos ideais religiosos, e deixaram a alma humana sem freio que a contivesse na fúria das paixões, visto como a moral que pregavam não tinha sanção.

            Daí a aberração do povo parisiense, nos dias da revolução de 89, de colocar uma mulher nua no trono do altar de Nossa Senhora de Paris, simbolizando a divindade.

            Augusto Comte procurou remediar esse mal com a criação da religião da humanidade, mas o infeliz filósofo claudicou, buscando, por assim dizer, se substituir ao próprio Deus, como vimos em artigos anteriores, quando tratamos do positivismo.

            A alma humana continuava sedenta de verdade e de amor; porque a verdade é a nutrição do espírito, e o amor é o alimento do coração.

            A grande comoção que agitava o povo (tão semelhante a que o agitou há vinte séculos) era o prelúdio de um formidável sucesso que seria a redenção da humanidade - O Espiritismo - de cujas doutrinas o leitor viu um resumo no número passado, feito pelo sublime e amado apóstolo Allan Kardec.

                                                                             *

            Deus existe? Por mais orgulhoso que o homem seja da sua razão, há momentos, há fatos na sua vida, que o obrigam a refletir seriamente no problema do além.

            Não, não existem homens ateus, o que há são seres que vacilam, que duvidam.
            A religião nos reduziu a um meio deísmo vago, até o bendito instante que já assinalamos, em que o nosso espírito encontrou a luz no código sublime de Kardec.

            Não desejamos exceder as proporções deste modesto trabalho; vamos resumir quanto possível alguns pontos interessantes do Livro dos Espíritos.

            A causa primária de todas os seres é Deus. Mas quem é Deus?

            “Deus é um puro espírito, eterno, infinitamente perfeito, Criador e Soberano Senhor de tudo quanto existe.”

            Esta definição que transcrevemos do catecismo católico, e que é a mesma de todas as seitas cristãs, é insuficiente.

            Entram logo no absurdo do dogma da trindade e fecham a porta da investigação com a velha tranca do mistério.

            Apontam a Bíblia como base da ciência, marcam o prazo de seis dias para a formação do mundo, fazem a humanidade provir de um casal, Adão e Eva, que legaram à sua descendência o pecado original, em virtude do qual os filhos pagam pelos pais, lhes reservam um céu, um inferno e um purgatório parcial que só reserva a salvação aos que forem lavados nas águas do batismo.

            Junte-se a isto um conjunto de práticas supersticiosas, das quais depende a salvação: acrescentem-se o trancamento da investigação pelos lacres do dogma, o desmentido formal da ciência e a tirania religiosa, e ter-se-á a religião como causa eficiente da descrença.

            O Espiritismo, além de doutrina racional, é experimental: convida todos ao estudo e á meditação, produz crentes e suprime os fanáticos.

            No livro dos Espíritos o nosso mestre formulava perguntas profundas, às quais responderam com precisão os espíritos superiores que sempre o assistiram.

            Perguntou, pois, entre outras coisas: “Pode dizer-se que Deus é infinito?”

            “Definição incompleta. Pobreza da linguagem humana, insuficiente para definir as coisas superiores à sua inteligência.”

            - O homem pode compreender a natureza íntima de Deus?

            “Não; falta-lhe o sentido para isso.”

            Será dado ao homem compreender um dia o mistério da Divindade?

            “Quando o seu espírito não mais estiver obscurecido pela matéria, e quando pela perfeição se houver aproximado de Deus, poderá então vê-lo e compreende-lo.”

            Diz o nosso mestre, em nota:

            “A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da Humanidade, o homem confunde muitas vezes o Criador com a criatura, julgando-o com iguais imperfeições; mas, à medida que nele se desenvolve o senso moral, o seu pensamento penetra melhor o fundo das coisas, e o homem forma então uma ideia de Deus mais justa e conforme a sã razão, ainda que sempre incompleta.”[1]         
  
            Tudo isso é conforme a razão; compare o leitor a humildade das respostas dos espíritos superiores, e a nota profunda do nosso mestre, com a ridícula e pretensiosa audácia com que infelizes criaturas, infladas de orgulho, pretendem conhecer a profunda ciência de Deus, dizendo-se Teólogos!

            Perguntou mais Allan Kardec:

            - É dado ao homem conhecer o princípio das coisas?

            “Não; Deus não permite que tudo lhe seja revelado na Terra.”

            O homem poderá um dia penetrar o mistério das coisas que lhe são ocultas?

            “O véu se lhe vai levantando à medida da sua depuração, mas para compreender certas coisas são-lhe precisas faculdades que ainda não possui.”

            - Não pode o homem pelas investigações da ciência penetrar alguns dos segredos da natureza?

            “A seqüência foi-lhe dada para o seu progresso em todas as coisas, as ele não pode ultrapassar os limites fixados por Deus.”

            Além das investigações da ciência, é dado ao homem receber comunicações de ordem mais elevada acerca daquilo que lhe escapa ao testemunho dos sentidos?

            Sim, quando Deus o julga útil, pode revelar o que a ciência não ensina.”

            Passa depois o mestre a tratar do espírito e matéria, das propriedades desta, até o espaço universal, e os espíritos respondem sobre a existência do vácuo absoluto o seguinte:

            “Não há vácuo; e o que é vazio para ti é ocupado por uma matéria que te escapa aos sentidos e instrumentos.”
                                                                                   
*

            Com relação à criação ou formação do mundo, explica o nosso mestre que: “o universo compreende a infinidade de mundos que vemos e que não vemos, todos os seres animados, todos os astros que se movem no espaço, bem como os fluidos que o enchem.”

            Perguntou o mestre:

            - Poderemos saber quanto tempo durou a formação dos mundos, a da Terra por exemplo?

            “Não podemos dizer, pois só Deus o sabe; e bem louco seria quem pretendesse sabe-lo ou conhecer o número de séculos que durou tal formação.”

            Os teólogos resolveram a questão em dois tempos: dividem a tarefa em seis parte, distribuindo uma para cada dia!
                                                                                     *

            Sobre a formação dos seres vivos, consultou o mestre:


            - Quando começou a Terra a ser povoada?

            “No começo tudo era o caos; os elementos estavam confundidos. Pouco a pouco, cada coisa foi tomando o seu lugar, e então apareceram os seres vivos, apropriados ao estado do globo.”

            - Donde vieram esses seres vivos para a Terra?

            “Já existiam nela, em gérmen, e só esperavam o momento favorável para se desenvolverem. Os princípios orgânicos reuniram-se, desde que cessou a força que os separava, e formaram os gérmens de todos os seres vivos, gérmens que se conservaram em estado latente e inerte, como a crisálida e as sementes das plantas, até o momento propício para o desabrochamento de cada espécie; então os seres de cada espécie reuniram-se e multiplicaram-se.”

            - A espécie humana achava-se também entre os elementos orgânicos contidos no globo?

            “Sim, e apareceu em seu devido tempo; foi o que fez dizer que o homem fora formado do limo da terra.”
                                                                                 *
            A pessoa de Adão e o povoamento da terra deu lugar à seguinte pergunta:

            - A espécie humana procede de um só homem?       

            “Não, aquele a quem chamais Adão nem foi o primeiro nem o único que povoou a Terra.”

            Podemos saber em que época viveu Adão?

            “Mais ou menos na que lhe assinalais: cerca de 4000 anos antes do Cristo.”

            Adão é racionalmente considerado um mito, uma alegoria, personificando as primeiras idades do mundo.

            Entra o mestre a tratar das raças humanas e da pluralidade dos mundos hoje provada com o testemunho da ciência, e com o peso da opinião do maior astrônomo do século - Camille Flammarion.[2]

            Aos leitores hóspedes na doutrina espírita, e que tenham sentimentos cristãos, parece-nos ouvir a seguinte objeção: então a Bíblia não vale nada?

            - Vale, porém é preciso po-la de acordo com a ciência, e reconhecer que muitas interpretações de um sentido alegórico, tomadas ao pé da letra, têm dado lugar às maiores aberrações.

            A Bíblia diz que o mundo foi criado 4000 anos antes de Cristo, e em seis dias, o que é terminantemente desmentido pela ciência.

            “A formação do globo acha-se escrita em caracteres indeléveis no mundo fóssil, e está provado que os seis dias da criação são outros tantos períodos, cada qual talvez de muitas centenas de milhares de anos.

            Isto não é um sistema, uma doutrina, uma opinião isolada, mas um fato tão real como o do movimento da terra, que a teologia não pode deixar de admitir; prova evidente do erro em que se pode cair, tomando ao pé da letra as expressões de uma linguagem muitas vezes figurada.”    

            Moisés dá o dilúvio universal como tendo lugar em 1650 a.C.; a geologia mostra o cataclismo parcial, anteriormente ao aparecimento do homem.

            Galileu foi denunciado em 1615, porque sustentava “que o sol é imóvel no centro do mundo, e que a terra tem um movimento diurno.”

            Foi condenado pela igreja por um tempo indeterminado, obrigando-se a rezar durante três anos, uma vez por semana, os sete salmos da penitência, por “sustentar como provável uma opinião que foi declarada contraria à Santa Escritura.”

            A obra desse astrônomo foi condenada em 25 de agosto de 1634 e só foi excluída do Index em 1835. Permaneceu excomungada 201 anos!

            Xisto V publicou uma edição da Bíblia, e em uma bula recomendou a sua leitura; e Pio VII excomungou a edição.[3]

            Cedamos a palavra ao grande Léon Denis, para fecharmos com chave de ouro esta parte da profissão de fé:

            “A Bíblia é obra dos homens, o testemunho da sua fé, das suas aspirações, do seu saber, e também das suas superstições e dos seus erros. Os profetas nela introduziram a palavra vibrante que lhes era inspiradavidentes, nela traçaram as imagens das realidades invisíveis que lhes apareciam; escritores, introduziram nela a descrição de cenas da vida social e dos costumes da época.

            Foi com o intuito de dar a esses ensinos tão diversos maior peso e mais autoridade, que foram eles apresentados como emanados da soberana Potência que rege os mundos.”

[1]  Vide obra citada, págs. de 1 a 6.
[2]  A última obra que conhecemos desse eminente cientista é o Dicionário Enciclopédico.
[3]  Pode-se verificar esta asserção, recorrendo-se ao célebre discurso do bispo Strosmeyer, no concílio do Vaticano que declarou infalível o papa Pio IX.
26
                                Ridicularizaram o Espiritismo os que, não tendo valor para investigar, 
preferem atacar o que por completo desconhecem.  (C. Vabley)

            Passa o mestre a tratar do princípio vital e dos seres orgânicos; da vida e da morte; da inteligência e do instinto, até o mundo espírita ou dos espíritos.

            Como já dissemos, apenas tocamos ao de leve em alguns pontos que nos parecem mais interessantes.

            Perguntou o mestre:

            - Que definição podeis dar dos espíritos?

            “Que são os seres inteligentes da criação. Povoam o universo além do mundo material.”

            - Os Espíritos constituem um mundo a parte, fora daquele que vemos?

            “Sim, o mundo dos espíritos ou das inteligências incorpóreas.”

            - Qual desse dois mundos, o espírita e o corporal, é o principal na ordem das coisas?

            “O mundo espírita, que preexiste e sobrevive ao outro.”

            - Os espíritos têm forma determinada, limitada e constante?

            “Aos vossos olhos, não; aos nossos, sim; podeis supô-los uma chama, uma claridade ou uma faísca etérea.”

            - Essa chama ou faísca tem alguma cor?

            “Para vós, varia do sombrio ao brilho do rubi, conforme o espírito é menos ou mais puro.”

            Trata o mestre do perispírito, que é o envoltório do espírito, e compara-o ao perisperma de um fruto.
            Vai até a forma do espírito, que pode se tornar visível e mesmo palpável.

            Trataremos desse assunto quando chegarmos ao Livro dos Médiuns.

            Entra na escala espírita até a sua progressão, e daí passa a tratar dos anjos e demônios.

                                                                                          *

            “São os anjos puros espíritos, que Deus criou em estado de graça para o adorarem e servirem.”

            De modo que, segundo a definição que acabamos de transcrever do catecismo, Deus não é justo como se diz: pois criou seres votados à felicidade completa e outros às misérias da vida, sujeitos a todas as dores para atingirem a felicidade suprema, ao passo que os anjos a obtiveram sem títulos especiais de merecimento próprio.

            Verdade é que nos falam em uns demônios travessos que nos entram pela boca e que, devido a uma tentativa de deposição de Deus, foram deportados para o inferno, onde ‘atormentam os réprobos, e tentam os homens sobre a terra, excitando-os ao pecado.’

            Perguntou o nosso mestre:

            - Os seres a que damos o nome de anjos, arcanjos e serafins formam uma categoria especial, de natureza diferente da dos outros espíritos?

            “Não; são espíritos puros, os mais altamente colocados na escala, os guias reúnem todas as perfeições.”

            - Os anjos percorreram todos os graus da escala?

            “Sim, mas, como já dissemos, uns aceitaram a missão sem murmurar e chegaram mais depressa à perfeição, ao passo que outros consumiram um tempo mais ou menos longo para a alcançarem.”

            - Se a opinião que admite seres criados perfeitos e superiores a todas as outras criaturas é errônea, como a encontramos na tradição de quase todos os povos?

            “Sabei que o vosso mundo não existe de toda a eternidade, e que, longo tempo antes de existir, já espíritos haviam atingido a perfeição; por isso os homens supuseram que esses espíritos tinham sido criados assim.”

            Há espíritos no sentido vulgarmente dado a esta palavra?

            “Se existissem, seriam obra de Deus: ora, Deus seria bom e justo se criasse seres infelizes, eternamente voltados para o mal? Se existissem demônios, é nesse planeta e em outros igualmente inferiores que eles residem; são os homens hipócritas que fazem de um Deus justo um Deus vingativo, e que supõem ser-lhe agradáveis com as abominações que cometem em seu nome.”

                                                                                      *

            Não temos à mão o livro de algum sábio teólogo, que descreve minuciosamente os detalhes da campanha celeste. Sabemos, no entanto, que o chefe da rebelião foi Lúcifer, por alcunha Satanás; o chefe das forças legais foi S. Miguel.

            O jesuíta Schouppe, em seu curso de religião (pág. 117) nos dá uma amostra do poder guerreiro dos anjos quando descreve: “Um só anjo exterminou 185000 homens do exército do rei de Sennacherib.”

            A palavra daimon, de que se formou a palavra demônio, significa gênio e inteligência dos seres incorpóreos, indistintamente, bons ou maus; na acepção vulgar é tomada como ser maléfico e votado eternamente ao mal, erro que proveio, como sempre, de se tomar a palavra ao pé da letra. Já vimos isto no nosso artigo passado e não é mais que ainda uma vez o lembremos: na Inglaterra, o descobrimento da vacina esbarrou na oposição do clero, que se fartou de lançar em rosto a Jenner os textos das Escrituras.

            A forma alegórica é característica na Bíblia, razão pela qual não se pode, sem cair no absurdo, tomar tudo ao pé da letra.

            Diz o mestre: “Satanás é evidentemente a personificação do mal sob forma alegórica, pois não se pode admitir um ente mau lutando como de potência a potência com a Divindade, e tendo como única preocupação contraverter os seus desígnios. Como o homem necessita de figuras e imagens que lhe impressionem a imaginação, fantasiou seres incorpóreos sob uma forma material com atributos que recordassem as suas qualidades e defeitos.

            Foi assim que os antigos, querendo personificar o tempo, o pintaram sob a forma de um velho com uma foice e uma ampulheta; representá-lo sob a figura de um jovem, seria um contra senso. Sucede o mesmo com as alegorias da fortuna, da verdade, etc. Os modernos representaram os anjos ou espíritos puros sob figuras radiantes, com asas brancas, emblema de pureza; Satanás com chifres, garras e os atributos da animalidade - emblema das paixões baixas. O vulgo, que toma as coisas ao pé da letra, viu nesses emblemas um indivíduo real, como outrora via Saturno na alegoria do tempo.”

                                                                                             *

            Depois de tratar do fim da encarnação, da alma, do materialismo, fez o nosso mestre a respeito da perturbação espírita, após a morte, a pergunta seguinte:

            - Quando a alma deixa o corpo, tem imediatamente consciência de si mesma?

            “Consciência imediata não é a expressão própria; fica por algum tempo em estado de perturbação.”

            A perturbação é mais ou menos longa, conforme o apego que a criatura tenha às coisas da terra ou o jugo da matéria sobre ela.

            Entra em seguida o mestre a tratar da reencarnação, justiça da reencarnação, encarnação nos diferentes mundos, transmigração progressiva, sorte das crianças depois da morte e sexo dos espíritos, o que dá lugar à consulta seguinte:

            - Os espíritos têm sexo?

            “Como vós o entendeis, não, pois os sexos dependem da organização. Há entre eles amor e simpatia, mas fundados na semelhança dos sentimentos.”

            - O Espírito que animou o corpo de um homem pode, em nova existência, animar o de uma mulher, e vice versa?

            “Sim, são os mesmos espíritos que animam os homens e as mulheres.”

            - Quando se está no estado de espírito prefere-se ser encarnado no corpo de um homem ou no de uma mulher?

            “Isto pouco importa ao espírito; é conforme as provações por que tem de passar.” 

            A circunstância da encarnação indistinta do espírito, no corpo masculino ou feminino, traz-nos à lembrança a opinião de antigos santos padres[1] que entendiam: as mulheres ou não tinham alma, ou reencarnavam em homens!

            O padre Schouppe é admirável quando descreve a cena teatral da ressurreição dos corpos; entra em todos os detalhes da mise-en-scène, e na parte das trombetas do juízo final deixa ficar longe, apesar da semelhança, os ecos das trombetas na marcha da Aída.

                                                                                     *

            Passa o Mestre a estudar as semelhanças físicas e morais, as ideias inatas e conclui essa parte com profundas considerações sobre a pluralidade das existências, onde entre outras coisas, escreve:

            “Os espíritos, ensinando o dogma da pluralidade das existências corporais, renovam, pois, uma doutrina que já existia nas primeiras idades do mundo, e que se conservou até aos nossos dias no pensamento íntimo de muitas gente, com a diferença de no-la apresentarem sob um ponto de vista mais racional, mais consoante às leis progressivas da natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador, despojando-a de todos os acessórios da superstição.”

            Passa depois à vida espírita, e sobre os espíritos errantes pergunta Allan Kardec:

            - A alma reencarna imediatamente depois de separar-se do corpo?

            “Algumas vezes imediatamente, mas quase sempre depois de intervalos mais ou menos longos. Nos mundos superiores a reencarnação é imediata; como nestes mundos a matéria corporal é menos grosseira, o espírito encarnado goza de quase todas as faculdades de espírito; o seu estado normal é como o dos sonâmbulos lúcidos.”

            Sobre a duração da erraticidade do espírito, que aspira a reencarnação, obteve o mestre a resposta seguinte:

            “Desde algumas horas a alguns milhares de séculos. Demais, rigorosamente falando, não há limite extremo marcado ao tempo de erraticidade, que pode prolongar-se muito, mas que entretanto nunca é perpétuo; o espírito vem sempre cedo ou tarde a reconhecer a necessidade de recomeçar uma existência que sirva para o depurar das faltas das existências precedentes.”

            Segue-se o estudo dos mundos transitórios; das percepções, sensações dos espíritos; ensaio teórico sobre a sensação, escolha das provas, relações de além-túmulo, relações simpáticas e antipáticas dos espíritos, metades eternas, recordação da existência corporal, até a comemoração dos finados e os funerais.

            A necessidade contudo nos obriga a resumir quanto possível a exposição dos princípios nestes artigos; conseguintemente, apenas procuramos dar uma ideia imperfeita da obra. Demais, temos pressa em passar a um resumo igualmente sintético dos outros livros do nosso amado mestre, sobretudo do Céu e o Inferno, onde teremos ocasião de conversar sobre o diabo e suas artimanhas.

[1]  Escritores clássicos da Igreja.
27
                Se o ensino teológico é perigoso, oponha-se-lhe o ensino científico. 
Esmaguem o padre com o filósofo.
(Eça de Queiroz, ‘Ecos de Paris’, págs. 29).

          Estuda o nosso mestre a volta à vida corporal e os prelúdios dessa volta; união da alma e do corpo, o aborto, faculdades morais e intelectuais do homem, a influência do organismo, o idiotismo e a loucura.

          Sobre a demência, chega à conclusão, de acordo com o ensino dos espíritos, de que a alma dos cretinos é muitas vezes intelectualmente superior, porém impossibilitada de se manifestar, por só dispor de órgãos sem desenvolvimento ou atrofiados. Compara-os o nosso mestre a um bom músico que disponha apenas de um instrumento imperfeito ou desafinado.

          Há criaturas que abusam do talento, transformam-se em verdadeiros flagelos da humanidade; são assim punidas, encarnando no corpo de um cretino. Do mesmo modo acontece com os mudos, cegos, etc, que sofrem a consequência de faltas passadas.

          Passa a tratar da infância, das simpatias e antipatias terrestres e do esquecimento do passado.
       Esta última parte fere mais particularmente a atenção do neófito, pois não pode ele compreender a vantagem desse esquecimento, que é, entretanto, uma misericórdia de Deus.

         O esquecimento é unicamente durante a encarnação, para que a lembrança do passado não acordasse ódios adormecidos, e os inimigos de ontem se perpetuassem, não havendo assim a aproximação necessária que destruísse as barreiras do ódio antigo, substituindo-o pelas ligações da amizade.

        Ao desencarnar, o espírito reata o fio das existências anteriores, e goza com o melhoramento moral. Demais pelas provas que sofremos nesta vida podemos avaliar os males que praticamos nas anteriores.

                                                                                     *

         Um problema muito interessante, e ainda não resolvido pela ciência, é o do sono e dos sonhos. Paulo Janet diz: “muito pouco se sabe do que respeita à filosofia do sono.”

         Jouffroy refere “que a alma não dorme e que o sono é apenas um fenômeno do corpo, em que a alma não toma parte alguma.”

          Quanto aos sonhos, certos autores, como Biron e Stewart, os classificam apenas.[1]

          O Espiritismo, porém, é luz completa, ao contrário da ciência humana, que é apenas meia luz, por isso que só estuda um lado do problema, e não o seu conjunto.
          Perguntou, pois, o nosso mestre aos espíritos reveladores:

          - A alma repousa durante o sono, como o corpo?

        “Não; o Espírito nunca está inativo. Durante o sono afrouxam-se os laços que o ligam ao corpo, e como este não tem então necessidade dele, percorre o espaço e entra em relação direta com os outros espíritos”.

        Quando dormimos, ou mesmo estamos em sonolência, o espírito desprende-se e vai ao espaço ou a outros planetas, confabular, rever afeições ou instruir-se para o seu progresso.

          Só assim se explicam sonhos de viagens a países estranhos, onde os hábitos, costumes e línguas nada têm de comum com os hábitos da nossa vida presente.

         Desde que não seja o efeito ou a reprodução de preocupações constantes, de fatos conhecidos, não vemos que outra explicação se possa dar.

                                                                                     *

       Passa o mestre a estudar as visitas espíritas entre pessoas vivas, até a transmissão oculta do pensamento, a qual dá lugar ao seguinte diálogo:

      Qual a razão por que uma mesma ideia - a de uma descoberta, por exemplo - aparece em vários pontos ao mesmo tempo?

       “Já dissemos que durante o sono os espíritos se comunicam entre si. Ora, se ao despertar o espírito se recorda do que aprendeu, o homem pode supor que o inventou. É deste modo que várias pessoas podem fazer a mesma descoberta simultaneamente. Quando dizeis que uma ideia anda no ar, usais de uma figura mais acertada que pensais, e todos concorrem mesmo inconscientemente para propagar essa ideia.”

            Segue-se o estudo da letargia, catalepsia e morte aparentes, até o sonambulismo, que é a faculdade do espírito se desprender em vigília, transportar-se a outras regiões, descrever o que vê, podendo fazê-lo até através dos corpos opacos. Vem depois o estudo da vista dupla, que é a faculdade da alma ver além dos limites dos órgãos visuais.

            Estuda o mestre a penetração do nosso pensamento pelos espíritos, que podem conhecer os mais secretos; a influência oculta que exercem em nosso pensar e ações, mostrando quantas vezes eles nos dirigem; trata dos possessos e convulsionários, da afeição dos espíritos por certas pessoas, o que é um efeito das afinidades morais; dos anjos da guarda, espíritos protetores, familiares e simpáticos, prepostos a nossa direção e adiantamento; do pressentimento, que é um conselho íntimo e oculto dos que nos querem bem, da ação dos espíritos nos atos da nossa vida, como nos fenômenos da natureza, etc.

            Passa a estudar os três reinos da natureza: os minerais e as plantas, os animais e o homem, e a metempsicose.

                                                                           *

            No estudo das leis morais, o nosso mestre analisa os caracteres da lei natural ou divina, única verdadeira e por isso capaz de fazer a felicidade do homem.

            A lei moral é universal: não há por isso necessidade de referências especiais aos seus capítulos; quando chegarmos ao Evangelho o faremos, tanto mais que aqui procuramos dar uma notícia resumida dos assuntos tratados no Livro dos Espíritos.

            Estuda o mestre a vida social, mostrando que Deus deu ao homem faculdades especiais, que sem o convívio da sociedade ficariam inutilizadas, consequência criminosa a que procura chegar a vida de isolamento e de silêncio.

            Quanto aos laços da família conclui: seu afrouxamento produz o recrudescimento do egoísmo.

            Para terminar está já longa notícia da parte filosófica da doutrina, vamos apenas mencionar os restantes assuntos de que trata, dos quais faremos ligeiros comentários nos subsequentes artigos.

            Ocupa-se o mestre da lei do progresso e sua marcha; povos degenerados, civilização, progresso da legislação humana e influência do Espiritismo no progresso, por não ser uma doutrina estagnada, mas constantemente progressiva.

        O resto da obra se ocupa da perfeição social e moral e suas consequências.

                                                                    *

       Jazíamos amortalhado na desolação da descrença: o veneno farisaico e bolorento do dogma nos arrancara uma a uma as ilusões religiosas, o clero estiolara conscientemente a flor das nossas esperanças, e tecera o véu negro da treva que nos havia momentaneamente cegado para a luz da verdade.

        Maior, porém, que a maldade do farisaísmo católico é a misericórdia de Deus. Ele nos afastou das tramoias teatrais dos vendilhões do templo, e na escola da dor e da agonia preparou o nosso espírito para contemplar, saborear e amar as deslumbradas belezas do divino Espiritismo.

       Compreendemos a vida, os problemas do Além, descortinamos maravilhas ignoradas, e entramos nesse edifício majestoso, onde o amor é a luz dos espíritos e a vida dos corações.

        Entramos no templo da verdade, e era suficiente a filosofia para nos convencer; bastava o encanto que nos causavam a perfeição das suas linhas, as belezas dos seus contornos esculpidos pelo amor, a solidez dos seus alicerces fundados sobre a razão e a fé subindo pela ara do seu altar, para soluçar a música dos agradecimentos à misericórdia de Deus.

        Não era, porém, tudo. Jesus pregara com os lábios e com os exemplos a bondade, mas quis rematar o poema com uma prova mais do seu amor - a imolação no Calvário. Deus nos deu além da doutrina racional o fenômeno experimental: -deu o amor, deu a prova, e tudo isso para vir sancionar, dezenove séculos depois, as sublimidades do Evangelho.

       Foi aí que a nossa alma encontrou a plena floração de suas esperanças, a confirmação de suas mais doces e secretas aspirações.

       A figura do frade, que não chegara a firmar-se, por mal ajeitado e refratário, nas asas do fanatismo para o sinistro voo, morrera definitivamente em nós, e em seu lugar começava a esboçar-se o espírita-cristão que desejávamos e desejamos ser, pela observação dos fatos, pelo raciocínio, pela convicção, em suma pela fé robusta nas verdades divinas da Revelação.

[1]  Vide Paulo Janet, “Tratado de Filosofia”.


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