Profissão de Fé – parte 5
por Gustavo Macedo
Fonte: Reformador (FEB)
a partir de
15 de Abril de
1905
23
Um surdo em meio de um concerto, um cego diante de uma
paisagem nada percebem e todavia o concerto, a paisagem existem. O
mesmo se dá a respeito do mundo espiritual.
O homem carnal nele está mergulhado, e não o suspeita.
('A Renovação Religiosa', Reformador nº 2, de 15 de
janeiro de 1905).
Vimos, em nosso artigo anterior, os méritos do ilustre educador Rivail. Vamos
agora estudá-lo como missionário de Deus e apóstolo de Jesus; e assim como
Pedro era Simão, antes de ser o apostolo, Rivail, que se constituiu a pedra
angular da nova revelação, passou a ter perante a humanidade, e como tal
universalmente conhecido, o nome de Allan Kardec.
Foi de 1854 a 1856, que o nosso mestre aplicou o espírito ao estudo do fenômeno
das mesas giratórias, que constituía uma das distrações da moda nos salões
parisienses. Quanto à dança das mesas, procurava ele encontrar o efeito
puramente material, mas, quanto a ‘mesas falantes’, achava-o inexplicável e até
contrário às leis da natureza.
Várias pessoas dignas de fé, entre as quais se contavam as Sras. Roger,
Plainemaison e os Srs. Pâtier, o magnetizador Fortier e o seu velho amigo
Carlotti, lhe tinham falado nos fenômenos referidos.
Convocada uma reunião para essa ordem de trabalhos, em casa da Sra.
Plainemaison, à rua Grange-Batelière nº 18, compareceu o nosso mestre,
previamente convidado, tendo início a sessão em uma terça-feira de maio, às 8
horas da noite.
Ouçamos o mestre:
“Foi ali, pela primeira vez, que fui testemunha do fenômeno das mesas giratórias
e que saltavam a corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era
possível.
Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma
ardósia com o auxílio de uma cesta. As minhas ideias estavam longe de se haver
modificado, mas naquilo havia um fato que devia ter uma causa. Entrevi, sob
essas aparentes futilidades e a espécie de
divertimento que com esses fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como a
revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi aprofundar.”
Travando relações com a família Baudin, em um dos serões da Sra. Plainemaison,
foi admitido às sessões hebdomadárias que aquela família realizava.
Fez então os seus primeiros estudos sérios em Espiritismo, pela rigorosa
observação e emprego do método experimental, entrevendo a chave do obscuro
problema controvertido do passado e do futuro.
Colhendo a prova positiva de que os espíritos eram a causa eficiente dos
fenômenos observados, e que, sendo as almas dos homens, não possuíam a soberana
sabedoria ou a ciência absoluta, sendo o saber de cada um limitado pelo grau de
adiantamento, evitou assim a crença na infalibilidade das comunicações, o que o
preservou de formular teorias prematuras sobre o dizer de alguns.
Estava provada a existência de um mundo invisível ambiente, encontrada a chave
de uma multidão de fenômenos inexplicados.
Conhecido o mundo novo, era preciso conhecer o seu estado; foi o que fez o
nosso mestre, interrogando, por meio de bons médiuns, que sempre teve a mão, os
seus habitantes.
Então diz ele:
“Cedo eu vi que cada espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus
conhecimentos, dele me desvendara uma fase, exatamente como se chega a conhecer
o estado de um país, interrogando os habitantes de todas as classes e de todas
as condições, podendo cada um nos ensinar alguma coisa, e nenhum deles podendo,
individualmente, nos ensinar tudo.”
Longe de ser um entusiasta dessas manifestações, a princípio esteve o mestre
quase a abandonar esses estudos, absorvido como se achava por outra ordem de
preocupações.
Felizmente demoveram-no desse intento as solicitações reiteradas dos Srs.
Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das ciências,
Thiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que acompanhavam,
havia cinco anos, o estudo desses fenômenos e haviam reunido cinqüenta cadernos
de comunicações diversas, só conseguindo po-las em ordem o nosso mestre, dadas
as suas aptidões de síntese.
O leitor naturalmente há de ter feito esta interrogação: porque Rivail passou a
chamar-se Allan Kardec?
Certa noite, seu espírito protetor deu-lhe uma comunicação pessoal,
revelando-lhe tê-lo conhecido e sido seu amigo nas Gálias, quando o mesmo tinha
o nome de Allan Kardec, e acrescentando que o amor que lhe votava, crescera com
o tempo, e vinha secundá-lo na obra importante, a que era chamado, e facilmente
levaria a termo.
Quando, pois, o mestre deu a lume, em 18 de abril de 1857, intitulado o Livro
dos Espíritos, pensou em usar de um pseudônimo, em razão de ser muito
conhecido no mundo científico por seus trabalhos anteriores, o que podia dar
lugar a confusões, e adotou então o alvitre de assinalá-lo com o pseudônimo de
Allan Kardec com que passou à posteridade.
A obra alcançou um tal sucesso que a primeira edição foi logo esgotada,
tendo-se feito outra em 1858, e daí para cá as edições não cessaram em todas as
línguas.
*
O espírito familiar de Allan Kardec nunca mais o abandonou: constantemente o
advertia e o auxiliava em sua obra.
Quando o nosso mestre preparava o Livro dos Espíritos,
seu guia bateu repetidas vezes no tabique de seu gabinete. No dia imediato, na
sessão em casa do Sr. Baudin, seu espírito familiar, que dava pelo nome
‘Verdade’, o advertiu sobre erros que existiam na parte de um capítulo de sua
obra; por isso tinha-lhe chamado a atenção com os ruídos da véspera.
O nosso mestre já tinha refeito o capítulo indicado por não lhe ter agradado.
Havia-o melhorado, porém não estava ainda perfeito. O guia mandou que relesse
atentamente da terceira à trigésima linha, e reconheceria grave erro, que com
efeito foi emendado.
*
“Foi a 30 de abril de 1856, em casa do Sr. Roustan, que Allan Kardec recebeu
a primeira revelação da missão que tinha a desempenhar. Esse aviso, a princípio
muito vago, foi precisado no dia 12 de junho de 1856 por intermédio da Srta.
Aline C., médium. A 6 de maio de 1857, a Sra. Cardone, pela inspeção das linhas
da mão de Allan Kardec, confirmou as duas comunicações precedentes, que ela
ignorava. Finalmente a 12 de abril de 1860, em casa do Sr. Dehan, sendo
intermediário o Sr. Crozet, médium, essa missão foi novamente confirmada em uma
comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec.
O sucesso produzido pelo Livro dos Espíritos induziu
o nosso mestre a fundar um jornal, para o que recorreu ao Sr. Tiedman, que lhe
recusou o concurso pecuniário.
Foi um bem.
Allan Kardec, confiante no auxílio do Alto, fez aparecer o
primeiro número da sua revista - em 1º de janeiro de 1858, sem que ninguém
soubesse, e conseguintemente sem ter assinantes, o que não impediu de alcançar
o periódico um sucesso que dura até os nossos dias.
Se tivesse um sócio, principalmente capitalista, é possível que não pudesse
imprimir à revista a direção que imprimiu a revista.
Todas as ideias tem seus apóstolos; todos os apóstolos têm seus mistérios:
Allan Kardec antes de chegar ao Tabor da glória, tinha que ser pregado à cruz
do sofrimento.
Ouçamos o que lhe predizia um espírito familiar, respondendo a consulta do
nosso mestre: se a insuficiência de suas aptidões seria a causa de fracassar em
sua obra.
“Não; mas a missão dos reformadores é cheia de escolhos e perigos; a tua é
rude; previno-te, porque é o mundo inteiro que se trata de agitar e de
transformar. Não creias que te seja suficiente publicares um livro, dois
livros, dez livros, e ficares tranquilamente em tua casa, não; é preciso te
mostrares no conflito: contra ti se açularão terríveis ódios; implacáveis
inimigos tramarão a tua perda; estarás exposto a malevolência, à calúnia, à
traição, mesmo daqueles que te parecerão os mais dedicados; tuas melhores
instruções serão desconhecidas e desnaturadas; sucumbirás mais de uma vez ao
peso da fadiga; em uma palavra, é uma luta quase constante que terás de
sustentar, com o sacrifício do teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde
e mesmo da tua vida - porque tu não viverás muito tempo. - Pois bem! Mais de um
recua quando, em lugar de uma vereda florida, não encontra sob seus passos
senão espinhos, agudas pedras e serpentes. Para tais missões, não basta a
inteligência. É preciso antes de tudo, para agradar a Deus, humildade,
modéstia, desinteresse, porque ele abate os orgulhosos e os presunçosos. Para
lutar contra os homens, é necessário coragem, perseverança e uma firmeza
inquebrantável; é preciso também ter prudência e tato para conduzir a propósito
as coisas e não comprometer-lhes o sucesso por medidas ou palavras
intempestivas; é preciso, enfim, devotamento, abnegação, e estar pronto para
todos os sacrifícios.
Vamos agora entrar no Livro dos Espíritos, cuja
notícia tem sido retardada pelas particularidades da vida do nosso mestre.
Era necessário, porém, travar conhecimento com o obreiro, antes de admirar as
luzes benditas da sua obra.
Allan Kardec, apedrejado pelos espíritos das trevas, que lhe arrojavam as
maiores calúnias e infâmias, traz na mão como palma da vitória o Livro dos
Espíritos, que é a primeira estrofe do hino de amor com que responde aos ódios
do fanatismo religioso.
[1] Memória
Histórica do Espiritismo págs. 19.
24
O espírito medíocre ocupa-se em ridicularizar, censurar e
detrair; está sempre a escarnecer de tudo, exceto da impudência insolente ou do
vício próspero. Smiles, O
Caráter, pág. 103.
O Livro dos Espíritos é, como já dissemos a parte filosófica
da doutrina. O espiritualismo não é privilégio dos espíritas; todas as
religiões que têm por base a crença em Deus e na alma são espiritualistas.
Espiritualista é, pois, aquele que acredita haver em si alguma coisa além da
matéria. O espírita é, pois, espiritualista; mas este nem sempre é espírita.
A doutrina espírita, ou o Espiritismo, tem por princípio as relações do mundo
material com os espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos desta
doutrina são, pois, os espíritas ou espiritistas.
Como veem, o nosso mestre teve necessidade de um novo termo para significar uma
coisa aparentemente nova. A definição dada pela academia de Paris à palavra
espiritualista era vaga: - Espiritualista, aquele ou aquela pessoa cuja
doutrina é oposta ao materialismo.
Para novas descobertas novos termos.
*
O maior número de incrédulos provém de maneira absurda pela qual lhes são
apresentadas as verdades eternas. O homem quer crer no que é racional; em lugar
disso apresentam-lhe o absurdo do dogma.
No entanto, em meio de seus erros possuem as religiões partículas de verdade.
Suficientes e precisas em épocas de atraso e barbaria, as religiões do passado
bem merecem a nossa consideração pelos serviços provisórios prestados, e que
ainda prestam aos retardatários e atrasados, mesmo em seu estado de agonia.
Os homens, ainda os mais fanáticos, têm momentos de vacilações, quando
refletem, mesmo que por instantes, nas desordens aparentes da sociedade e da
vida humana.
Líamos e meditávamos o Livro dos Espíritos; e quanto mais
meditávamos e líamos, mais clara se fazia a luz em nosso espírito, por
encontrarmos soluções anteriormente nunca encontradas para casos especiais, que
frisaremos depois de transcrever o seguinte resumo da obra feita pelo nosso
amado mestre Allan Kardec:
“Deus é eterno, imutável, único, onipotente, soberanamente justo e bom.
Criou o universo que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e
imateriais.
Os
seres materiais constituem o mundo visível ou corporal, e os seres imateriais o
mundo invisível ou espírita, isto é, dos espíritos.
O
mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente
a tudo. O mundo corpóreo é secundário, podendo cessar de existir ou nunca ter
existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita.
Os
espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja destruição,
pela morte, os restitui a liberdade.
Entre
as diferentes espécies de seres corporais, Deus destinou a espécie humana para
a encarnação dos espíritos chegados a certo grau de desenvolvimento, que lhe dá
a superioridade moral e intelectual sobre todas as outras.
A alma é um espírito encarnado, de que o corpo é apenas o invólucro.
Há
no corpo três elementos:
1º O corpo material ou ser material,
análogo ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital;
2º A alma, ou ser imaterial, espírito
encarnado no corpo
3º O laço que liga a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.
3º O laço que liga a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.
O
homem tem, pois, duas naturezas: pelo corpo participa da natureza dos animais,
da qual possui os instintos; pela alma participa da natureza dos espíritos; o
laço, ou perispírito, que une o corpo ao Espírito é uma espécie de invólucro
semi-material. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro; o espírito
conserva o outro invólucro, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível
para nós no estado normal, mas que pode acidentalmente tornar-se visível, e
mesmo tangível, como se observa nos fenômenos das aparições.
Não é, portanto, o espírito um ser abstrato, indefinido, que só se possa
conceber pelo pensamento, mas um ser real circunscrito e, em certos casos,
apreciável pelos sentidos da vista, da audição e do tato.
Os
espíritos pertencem a diferentes classes e são desiguais em poder,
inteligência, sabedoria e moralidade. Os da primeira ordem são espíritos
superiores, que se distinguem dos outros por sua perfeição, conhecimentos,
aproximação de Deus, pureza de sentimentos e amor ao bem: são os anjos ou
Espíritos puros. As outras classes vão se afastando cada vez mais dessa perfeição;
os das gradações inferiores são inclinados à maioria das nossas paixões: ódio,
inveja, ciúme, orgulho, etc. Tendem para o mal.
Entre
os espíritos há alguns que nem são muito bons nem muito maus; mais turbulentos
e travessos que perversos, a malícia e as inconsequências são os caracteres que
os distinguem. São os espíritos frívolos ou levianos.
Os
Espíritos não ficam perpetuamente adstritos a mesma ordem. Todos progridem,
passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita.
Este
melhoramento se efetua pela encarnação, que é imposta a uns como expiação e a
outros como missão.
A vida material é uma prova que devem sofrer muitas vezes até que atinjam a
máxima perfeição; é uma espécie de crisol, ou depurador, donde saem mais ou
menos purificados.
Abandonando o corpo, a alma volta ao mundo dos espíritos, donde saíra para
recomeçar uma nova existência material, depois de um lapso de tempo mais ou
menos longo, durante o qual se conserva no estado de espírito errante. Devendo
o espírito passar por muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido
muitas existências e havemos ainda de ter outras, mais ou menos aperfeiçoadas,
quer nesta terra, quer noutros mundos.
A encarnação dos espíritos efetua-se sempre na espécie humana; seria um erro
acreditar-se que a alma ou o espírito possa encarnar-se no corpo de um animal.
As diferentes existências corporais do espírito são sempre progressivas e nunca
retrógradas; mas a rapidez do progresso depende dos esforços que fazemos para
chegar à perfeição.
As
qualidades da alma são as do espírito que se encarnou; assim, o homem de bem é
a encarnação de um bom espírito; o homem perverso a de um espírito impuro.
A alma tinha a sua individualidade antes de se encarnar, e conserva-a depois de
separar-se do corpo. Ao voltar ao mundo dos espíritos, a alma aí vai
encontrar-se com todos aqueles que conheceu na terra, e todas as suas
existências se lhe desenham na memória, com a lembrança do bem e do mal que
fez.
O espírito encarnado vive sob a influência da matéria, o homem que sobrepuja
essa influência pela elevação e pureza da alma, aproxima-se dos bons espíritos,
com os quais estará um dia. Aquele, porém, que se deixa dominar pelas más
paixões e faz consistir a sua alegria na satisfação dos apetites grosseiros,
avizinha-se dos Espíritos impuros, dando preponderância à natureza animal.
Os espíritos encarnados habitam os diferentes globos do universo; os não
encarnados, ou errantes, não ocupam uma região determinada e circunscrita;
estão por toda a parte, no espaço e a nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos
a todos os momentos. é uma população invisível agitando-se em torno de nós.
Os espíritos exercem no mundo moral, e mesmo no mundo físico, uma ação
incessante; têm influência sobre a matéria e sobre o pensamento, e
constituem uma das potências da natureza, causa eficiente de grande número de
fenômenos ainda inexplicados, ou mal explicados, e aos quais só o Espiritismo
dá solução racional.
As relações dos espíritos com os homens são constantes; os bons nos
induzem a praticar o bem, sustentam-nos nas provações da vida e nos ajudam a
suportá-las com coragem e resignação; os maus nos impelem para o mal e acham
prazer ao ver-nos sucumbir e identificarmo-nos com eles.
As comunicações dos espíritos são ocultas ou ostensivas. As primeiras consistem
na influência, boa ou má, que aqueles exercem sobre nós, sem que o saibamos;
neste caso, ao nosso juízo compete discernir as boas ou más inspirações. As
comunicações ostensivas são as que se produzem pela escrita, pela palavra ou
por manifestações materiais, o mais das vezes com auxílio de médiuns que lhes servem
de instrumentos.
Os espíritos manifestam-se espontaneamente ou por evocação. Podemos evocar
todos os espíritos: os que animaram homens obscuros, como o dos personagens
mais ilustres, qualquer que seja a época em que tenham vivido; os dos nossos
parentes, amigos ou inimigos, e deles obter, por comunicações escritas ou
verbais, conselhos, informações quanto à sua situação na vida de além túmulo,
seus pensamentos a nosso respeito, assim como as revelações que lhes é
permitido fazer-nos.
Os
Espíritos são atraídos na razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que
os evoca: os superiores correm às reuniões sérias onde dominam o amor do bem e
o desejo sincero de obter instrução e melhoramento. A sua presença afugenta os
espíritos inferiores que, ao contrário, encontram livre acesso e operam em
plena liberdade entre pessoas frívolas ou somente guiadas pela curiosidade,
como em toda a parte onde dominem os maus instintos. Em vez de bons avisos e
ensinos úteis, não devemos esperar deles senão futilidades, mentiras, graçolas
pesadas, ou mistificações, porque muitas vezes adotam nomes venerados para
melhor nos levarem ao erro.
A distinção entre os bons e os maus espíritos é extremamente fácil: a linguagem
daqueles é constantemente digna, nobre, respirando a mais elevada moral e
isenta de baixas paixões; os seus conselhos são ditados pela sabedoria mais
pura e visam sempre o melhoramento e o bem da humanidade.
A
dos espíritos inferiores, ao contrário, é inconsequente, ordinariamente trivial
e muito grosseira; se, às vezes, dizem coisas boas e verdadeiras, na maioria
dos casos só pregam falsidades e absurdos, por malícia ou ignorância; zombam da
credulidade e divertem-se à custa dos que os interrogam, lisonjeado a vaidade
desses e embalando lhes os desejos com mentidas esperanças. Em resumo, as
comunicações sérias, em toda a acepção da palavra, só se dão nos centros sérios
onde reine uma íntima comunhão de pensamentos no intuito do bem.
A moral dos Espíritos superiores resume-se, como a do Cristo, na máxima
evangélica:
Proceder para com os outros como quereríamos que os outros procedessem para
conosco, isto é: fazer sempre o bem e nunca o mal.
Cada homem encontra nesse princípio uma regra universal para se conduzir, mesmo
em suas menores ações.
Os espíritos nos ensinam que o egoísmo, o orgulho, a sensualidade, são paixões
que nos aproximam da natureza animal, tornando-nos escravos da matéria; a
aquele que desde este mundo se desprende da matéria, desprezando as futilidades
mundanas e amando o próximo, aproxima-se da natureza espiritual; cada um de nós
deve buscar ser útil, segundo as faculdades e os meios que Deus nos confiou
para experimentar-nos; o forte e o poderoso devem apoio e proteção ao fraco, e
aquele que abusa da força e do poderio para oprimir o seu semelhante, viola a
lei de Deus.
Eles ensinam, finalmente, que no mundo dos espíritos, onde nada se pode
ocultar, o hipócrita será desmascarado e todas as suas torpezas serão
conhecidas; que a presença inevitável, a todos os instantes, daqueles a quem
fizemos mal, é um dos castigos que nos estão reservados; que do estado de
inferioridade ou de superioridade dos espíritos
dependem sofrimentos ou gozos que não conhecemos na terra.
Mas
também nos dizem que não há faltas irremissíveis e que não possam ser apagadas
pela expiação. O homem encontra meios para isso em suas diferentes existências,
as quais lhe permitem avançar na senda do progresso, segundo o seu desejo e
esforços, até alcançar a perfeição, que é o termo a que tem de chegar.
No próximo número daremos algumas particularidades
interessantes.
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E muito embora a vossa igreja se constrite
E a excomunhão papal nos abrase e destrua,
A análise é feroz como uma lança em riste,
A análise é feroz como uma lança em riste,
E a verdade cruel como uma espada nua.
Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,
São como a cinza vã que sepultou Pompéia.
Exumemos a fé desse montão de escombros,
Desentulhemos Deus desse aluvião de areia.
E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,
Há de fazer, na mesma aspiração reunida,
Da razão e da fé os dois olhos da alma,
Da verdade e da crença os dois polos da vida.
(Guerra Junqueiro)
Há no fundo do coração humano, embora em estado latente, o
sentimento religioso.
Quando o homem interroga o universo, e reflete sobre a mesquinhez da sua
individualidade, é naturalmente forçado a procurar a existência de Deus, e nela
encontrar solução para os problemas incompreendidos da vida.
Às vezes a descrença provém da religião. Quantas e quantas pessoas não
perderam a fé, por praticarem-na! As religiões têm sido as maiores causadoras
de descrentes, pelo modo irracional com que a apresentam as partículas de
verdade que todas, entretanto, possuem.
Mostre-se ao homem uma doutrina racional, que satisfaça ao mesmo tempo ao seu
coração e ao seu espírito, ele não tardará a abraça-la e a sentir-se feliz.
A fé vai morrendo, e a igreja vai perdendo dia a dia, palmo a palmo, as
vantagens conquistadas; é que o temor do diabo já não detém as criaturas na
prática do crime, e do temor do diabo têm vivido as igrejas, e não do amor de
Deus.
A educação fanática não produziu crentes, fez descrentes e ateus. Condorcet,
Diderot, Voltaire, Rousseau e muitos outros colaboradores da enciclopédia,
outra coisa não foram que discípulos dos jesuítas.
A obra desses vultos foi incompleta; apressaram a demolição dos velhos ideais
religiosos, e deixaram a alma humana sem freio que a contivesse na fúria das
paixões, visto como a moral que pregavam não tinha sanção.
Daí a aberração do povo parisiense, nos dias da revolução de 89, de colocar uma
mulher nua no trono do altar de Nossa Senhora de Paris, simbolizando a
divindade.
Augusto Comte procurou remediar esse mal com a criação da religião da
humanidade, mas o infeliz filósofo claudicou, buscando, por assim dizer, se
substituir ao próprio Deus, como vimos em artigos anteriores, quando tratamos
do positivismo.
A alma humana continuava sedenta de verdade e de amor; porque a verdade é a
nutrição do espírito, e o amor é o alimento do coração.
A
grande comoção que agitava o povo (tão semelhante a que o agitou há vinte
séculos) era o prelúdio de um formidável sucesso que seria a redenção da
humanidade - O Espiritismo - de cujas doutrinas o leitor viu um resumo no
número passado, feito pelo sublime e amado apóstolo Allan Kardec.
*
Deus existe? Por mais orgulhoso que o homem seja da sua razão, há momentos, há
fatos na sua vida, que o obrigam a refletir seriamente no problema do além.
Não, não existem homens ateus, o que há são seres que vacilam, que duvidam.
A religião nos reduziu a um meio deísmo vago, até o bendito instante que já
assinalamos, em que o nosso espírito encontrou a luz no código sublime de
Kardec.
Não desejamos exceder as proporções deste modesto trabalho; vamos resumir
quanto possível alguns pontos interessantes do Livro dos Espíritos.
A causa primária de todas os seres é Deus. Mas quem é Deus?
“Deus é um puro espírito, eterno, infinitamente perfeito, Criador e Soberano
Senhor de tudo quanto existe.”
Esta definição que transcrevemos do catecismo católico, e que é a mesma de
todas as seitas cristãs, é insuficiente.
Entram logo no absurdo do dogma da trindade e fecham a porta da investigação
com a velha tranca do mistério.
Apontam a Bíblia como base da ciência, marcam o prazo de seis dias para a
formação do mundo, fazem a humanidade provir de um casal, Adão e Eva, que
legaram à sua descendência o pecado original, em virtude do qual os filhos
pagam pelos pais, lhes reservam um céu, um inferno e um purgatório parcial que
só reserva a salvação aos que forem lavados nas águas do batismo.
Junte-se a isto um conjunto de práticas supersticiosas, das quais
depende a salvação: acrescentem-se o trancamento da investigação pelos lacres
do dogma, o desmentido formal da ciência e a tirania religiosa, e ter-se-á a
religião como causa eficiente da descrença.
O Espiritismo, além de doutrina racional, é experimental: convida todos ao
estudo e á meditação, produz crentes e suprime os fanáticos.
No livro dos Espíritos o nosso mestre formulava perguntas profundas, às quais
responderam com precisão os espíritos superiores que sempre o assistiram.
Perguntou, pois, entre outras coisas: “Pode dizer-se que Deus é infinito?”
“Definição incompleta. Pobreza da linguagem humana, insuficiente para
definir as coisas superiores à sua inteligência.”
- O homem pode compreender a natureza íntima de Deus?
“Não; falta-lhe o sentido para isso.”
Será dado ao homem compreender um dia o mistério da Divindade?
“Quando o seu espírito não mais estiver obscurecido pela matéria, e quando
pela perfeição se houver aproximado de Deus, poderá então vê-lo e compreende-lo.”
Diz o nosso mestre, em nota:
“A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a
natureza íntima de Deus. Na infância da Humanidade, o homem confunde muitas
vezes o Criador com a criatura, julgando-o com iguais imperfeições; mas, à
medida que nele se desenvolve o senso moral, o seu pensamento penetra melhor o
fundo das coisas, e o homem forma então uma ideia de Deus mais justa e conforme
a sã razão, ainda que sempre incompleta.”[1]
Tudo isso é conforme a razão; compare o leitor a humildade das respostas dos
espíritos superiores, e a nota profunda do nosso mestre, com a ridícula e
pretensiosa audácia com que infelizes criaturas, infladas de orgulho, pretendem
conhecer a profunda ciência de Deus, dizendo-se Teólogos!
Perguntou mais Allan Kardec:
- É dado ao homem conhecer o princípio das coisas?
“Não; Deus não permite que tudo lhe seja revelado na Terra.”
O homem poderá um dia penetrar o mistério das coisas que lhe são ocultas?
“O véu se lhe vai levantando à medida da sua depuração, mas para compreender
certas coisas são-lhe precisas faculdades que ainda não possui.”
- Não pode o homem pelas investigações da ciência penetrar alguns dos segredos
da natureza?
“A seqüência foi-lhe dada para o seu progresso em todas as coisas, as ele
não pode ultrapassar os limites fixados por Deus.”
Além das investigações da ciência, é dado ao homem receber comunicações de
ordem mais elevada acerca daquilo que lhe escapa ao testemunho dos sentidos?
“Sim, quando Deus o julga útil, pode revelar o que a ciência
não ensina.”
Passa depois o mestre a tratar do espírito e matéria, das propriedades desta,
até o espaço universal, e os espíritos respondem sobre a existência do vácuo
absoluto o seguinte:
“Não há vácuo; e o que é vazio para ti é ocupado por uma matéria que te
escapa aos sentidos e instrumentos.”
*
Com relação à criação ou formação do mundo, explica o nosso mestre que: “o
universo compreende a infinidade de mundos que vemos e que não vemos, todos os
seres animados, todos os astros que se movem no espaço, bem como os fluidos que
o enchem.”
Perguntou o mestre:
- Poderemos saber quanto tempo durou a formação dos mundos, a da Terra por
exemplo?
“Não podemos dizer, pois só Deus o sabe; e bem louco seria quem pretendesse
sabe-lo ou conhecer o número de séculos que durou tal formação.”
Os teólogos resolveram a questão em dois tempos: dividem a tarefa em seis
parte, distribuindo uma para cada dia!
*
Sobre a formação dos seres vivos, consultou o mestre:
- Quando começou a Terra a ser povoada?
“No começo tudo era o caos; os elementos estavam confundidos. Pouco a pouco, cada coisa foi
tomando o seu lugar, e então apareceram os seres vivos, apropriados ao estado
do globo.”
- Donde vieram esses seres vivos para a Terra?
“Já existiam nela, em gérmen, e só esperavam o momento favorável para se
desenvolverem. Os princípios orgânicos reuniram-se, desde que cessou a força
que os separava, e formaram os gérmens de todos os seres vivos, gérmens que se
conservaram em estado latente e inerte, como a crisálida e as sementes das
plantas, até o momento propício para o desabrochamento de cada espécie; então
os seres de cada espécie reuniram-se e multiplicaram-se.”
- A espécie humana achava-se também entre os elementos orgânicos contidos no
globo?
“Sim, e apareceu em seu devido tempo; foi o que fez dizer que o homem fora
formado do limo da terra.”
*
A pessoa de Adão e o povoamento da terra deu lugar à seguinte pergunta:
- A espécie humana procede de um só homem?
“Não, aquele a quem chamais Adão nem foi o primeiro nem o único que povoou a
Terra.”
Podemos saber em que época viveu Adão?
“Mais ou menos na que lhe assinalais: cerca de 4000 anos antes do Cristo.”
Adão é racionalmente considerado um mito, uma alegoria, personificando as
primeiras idades do mundo.
Entra o mestre a tratar das raças humanas e da pluralidade dos mundos hoje
provada com o testemunho da ciência, e com o peso da opinião do maior astrônomo
do século - Camille Flammarion.[2]
Aos leitores hóspedes na doutrina espírita, e que tenham sentimentos cristãos,
parece-nos ouvir a seguinte objeção: então a Bíblia não vale nada?
- Vale, porém é preciso po-la de acordo com a ciência, e reconhecer que muitas
interpretações de um sentido alegórico, tomadas ao pé da letra, têm dado lugar
às maiores aberrações.
A Bíblia diz que o mundo foi criado 4000 anos antes de Cristo, e em seis dias,
o que é terminantemente desmentido pela ciência.
“A formação do globo acha-se escrita em caracteres indeléveis no mundo
fóssil, e está provado que os seis dias da criação são outros tantos períodos,
cada qual talvez de muitas centenas de milhares de anos.
Isto não é um sistema, uma doutrina, uma opinião isolada, mas um fato tão real
como o do movimento da terra, que a teologia não pode deixar de admitir; prova
evidente do erro em que se pode cair, tomando ao pé da letra as expressões de
uma linguagem muitas vezes figurada.”
Moisés dá o dilúvio universal como tendo lugar em 1650 a.C.; a geologia mostra
o cataclismo parcial, anteriormente ao aparecimento do homem.
Galileu foi denunciado em 1615, porque sustentava “que o sol é imóvel no
centro do mundo, e que a terra tem um movimento diurno.”
Foi condenado pela igreja por um tempo indeterminado, obrigando-se a rezar
durante três anos, uma vez por semana, os sete salmos da penitência, por “sustentar
como provável uma opinião que foi declarada contraria à Santa Escritura.”
A obra desse astrônomo foi condenada em 25 de agosto de 1634 e só foi excluída
do Index em 1835. Permaneceu excomungada 201 anos!
Xisto V publicou uma edição da Bíblia, e em uma bula recomendou a sua leitura;
e Pio VII excomungou a edição.[3]
Cedamos a palavra ao grande Léon Denis, para fecharmos com chave de ouro esta
parte da profissão de fé:
“A Bíblia é obra dos homens, o testemunho da sua fé, das suas aspirações, do
seu saber, e também das suas superstições e dos seus erros. Os profetas nela introduziram
a palavra vibrante que lhes era inspirada; videntes, nela traçaram
as imagens das realidades invisíveis que lhes apareciam; escritores,
introduziram nela a descrição de cenas da vida social e dos costumes da época.
Foi com o intuito de dar a esses ensinos tão diversos maior peso e mais
autoridade, que foram eles apresentados como emanados da soberana Potência que
rege os mundos.”
[1] Vide obra
citada, págs. de 1 a 6.
[2] A última obra
que conhecemos desse eminente cientista é o Dicionário Enciclopédico.
[3] Pode-se
verificar esta asserção, recorrendo-se ao célebre discurso do bispo Strosmeyer,
no concílio do Vaticano que declarou infalível o papa Pio IX.
26
Ridicularizaram o Espiritismo os que, não tendo valor para investigar,
preferem atacar o que por completo desconhecem. (C. Vabley)
preferem atacar o que por completo desconhecem. (C. Vabley)
Passa o mestre a tratar do princípio vital e dos seres
orgânicos; da vida e da morte; da inteligência e do instinto, até o mundo
espírita ou dos espíritos.
Como já dissemos, apenas tocamos ao de leve em alguns pontos que nos parecem
mais interessantes.
Perguntou o mestre:
- Que definição podeis dar dos espíritos?
“Que são os seres inteligentes da criação. Povoam o universo além do mundo
material.”
- Os Espíritos constituem um mundo a parte, fora daquele que vemos?
“Sim, o mundo dos espíritos ou das inteligências incorpóreas.”
- Qual desse dois mundos, o espírita e o corporal, é o principal na ordem das
coisas?
“O
mundo espírita, que preexiste e sobrevive ao outro.”
- Os espíritos têm forma determinada, limitada e constante?
“Aos vossos olhos, não; aos nossos, sim; podeis supô-los uma chama, uma
claridade ou uma faísca etérea.”
- Essa chama ou faísca tem alguma cor?
“Para vós, varia do sombrio ao brilho do rubi, conforme o espírito é menos
ou mais puro.”
Trata o mestre do perispírito, que é o envoltório do espírito, e compara-o ao
perisperma de um fruto.
Vai até a forma do espírito, que pode se tornar visível e mesmo palpável.
Trataremos desse assunto quando chegarmos ao Livro dos Médiuns.
Entra na escala espírita até a sua progressão, e daí passa a tratar dos anjos e
demônios.
*
“São os anjos puros espíritos, que Deus criou em estado de graça para o
adorarem e servirem.”
De modo que, segundo a definição que acabamos de transcrever do catecismo, Deus
não é justo como se diz: pois criou seres votados à felicidade completa e outros
às misérias da vida, sujeitos a todas as dores para atingirem a felicidade
suprema, ao passo que os anjos a obtiveram sem títulos especiais de merecimento
próprio.
Verdade é que nos falam em uns demônios travessos que nos entram pela boca e
que, devido a uma tentativa de deposição de Deus, foram deportados para o
inferno, onde ‘atormentam os réprobos, e tentam os homens sobre a terra,
excitando-os ao pecado.’
Perguntou o nosso mestre:
- Os seres a que damos o nome de anjos, arcanjos e serafins formam uma
categoria especial, de natureza diferente da dos outros espíritos?
“Não; são espíritos puros, os mais altamente colocados na escala, os guias
reúnem todas as perfeições.”
- Os anjos percorreram todos os graus da escala?
“Sim, mas, como já dissemos, uns aceitaram a missão sem murmurar e chegaram
mais depressa à perfeição, ao passo que outros consumiram um tempo mais ou
menos longo para a alcançarem.”
- Se a opinião que admite seres criados perfeitos e superiores a todas as
outras criaturas é errônea, como a encontramos na tradição de quase todos os
povos?
“Sabei que o vosso mundo não existe de toda a eternidade, e que, longo tempo
antes de existir, já espíritos haviam atingido a perfeição; por isso os homens
supuseram que esses espíritos tinham sido criados assim.”
Há espíritos no sentido vulgarmente dado a esta palavra?
“Se existissem, seriam obra de Deus: ora, Deus seria bom e justo se criasse
seres infelizes, eternamente voltados para o mal? Se existissem demônios, é
nesse planeta e em outros igualmente inferiores que eles residem; são os homens
hipócritas que fazem de um Deus justo um Deus vingativo, e que supõem ser-lhe agradáveis
com as abominações que cometem em seu nome.”
*
Não temos à mão o livro de algum sábio teólogo, que descreve
minuciosamente os detalhes da campanha celeste. Sabemos, no entanto, que o
chefe da rebelião foi Lúcifer, por alcunha Satanás; o chefe das forças legais
foi S. Miguel.
O jesuíta Schouppe, em seu curso de religião (pág. 117) nos dá uma amostra do
poder guerreiro dos anjos quando descreve: “Um só anjo exterminou 185000
homens do exército do rei de Sennacherib.”
A palavra daimon, de que se formou a palavra demônio,
significa gênio e inteligência dos seres incorpóreos, indistintamente, bons ou
maus; na acepção vulgar é tomada como ser maléfico e votado eternamente ao mal,
erro que proveio, como sempre, de se tomar a palavra ao pé da letra. Já vimos
isto no nosso artigo passado e não é mais que ainda uma vez o lembremos: na
Inglaterra, o descobrimento da vacina esbarrou na oposição do clero, que se
fartou de lançar em rosto a Jenner os textos das Escrituras.
A forma alegórica é característica na Bíblia, razão pela qual não se pode, sem
cair no absurdo, tomar tudo ao pé da letra.
Diz o mestre: “Satanás é evidentemente a personificação do mal sob forma
alegórica, pois não se pode admitir um ente mau lutando como de potência a
potência com a Divindade, e tendo como única preocupação contraverter os seus
desígnios. Como o homem necessita de figuras e imagens que lhe impressionem a
imaginação, fantasiou seres incorpóreos sob uma forma material com atributos
que recordassem as suas qualidades e defeitos.
Foi
assim que os antigos, querendo personificar o tempo, o pintaram sob a forma de
um velho com uma foice e uma ampulheta; representá-lo sob a figura de um jovem,
seria um contra senso. Sucede o mesmo com as alegorias da fortuna, da verdade,
etc. Os modernos representaram os anjos ou espíritos puros sob figuras
radiantes, com asas brancas, emblema de pureza; Satanás com chifres, garras e
os atributos da animalidade - emblema das paixões baixas. O vulgo, que toma as
coisas ao pé da letra, viu nesses emblemas um indivíduo real, como outrora via
Saturno na alegoria do tempo.”
*
Depois de tratar do fim da encarnação, da alma, do materialismo, fez o nosso
mestre a respeito da perturbação espírita, após a morte, a pergunta seguinte:
- Quando a alma deixa o corpo, tem imediatamente consciência de si mesma?
“Consciência imediata não é a expressão própria; fica por algum tempo em
estado de perturbação.”
A perturbação é mais ou menos longa, conforme o apego que a criatura tenha às
coisas da terra ou o jugo da matéria sobre ela.
Entra em seguida o mestre a tratar da reencarnação, justiça da reencarnação,
encarnação nos diferentes mundos, transmigração progressiva, sorte das crianças
depois da morte e sexo dos espíritos, o que dá lugar à consulta seguinte:
- Os espíritos têm sexo?
“Como vós o entendeis, não, pois os sexos dependem da organização. Há entre
eles amor e simpatia, mas fundados na semelhança dos sentimentos.”
- O Espírito que animou o corpo de um homem pode, em nova existência, animar o
de uma mulher, e vice versa?
“Sim, são os mesmos espíritos que animam os homens e as mulheres.”
- Quando se está no estado de espírito prefere-se ser encarnado no corpo de um
homem ou no de uma mulher?
“Isto pouco importa ao espírito; é conforme as provações por que tem de
passar.”
A circunstância da encarnação indistinta do espírito, no corpo masculino ou
feminino, traz-nos à lembrança a opinião de antigos santos padres[1] que entendiam: as
mulheres ou não tinham alma, ou reencarnavam em homens!
O padre Schouppe é admirável quando descreve a cena teatral da ressurreição dos
corpos; entra em todos os detalhes da mise-en-scène, e na parte das
trombetas do juízo final deixa ficar longe, apesar da semelhança, os ecos das
trombetas na marcha da Aída.
*
Passa o Mestre a estudar as semelhanças físicas e morais, as ideias inatas e
conclui essa parte com profundas considerações sobre a pluralidade das
existências, onde entre outras coisas, escreve:
“Os espíritos, ensinando o dogma da pluralidade das existências corporais,
renovam, pois, uma doutrina que já existia nas primeiras idades do mundo, e que
se conservou até aos nossos dias no pensamento íntimo de muitas gente, com a
diferença de no-la apresentarem sob um ponto de vista mais racional, mais
consoante às leis progressivas da natureza e mais em harmonia com a sabedoria
do Criador, despojando-a de todos os acessórios da superstição.”
Passa depois à vida espírita, e sobre os espíritos errantes pergunta Allan
Kardec:
- A alma reencarna imediatamente depois de separar-se do corpo?
“Algumas vezes imediatamente, mas quase sempre depois de intervalos mais ou
menos longos. Nos mundos superiores a reencarnação é imediata; como nestes
mundos a matéria corporal é menos grosseira, o espírito encarnado goza de quase
todas as faculdades de espírito; o seu estado normal é como o dos sonâmbulos lúcidos.”
Sobre a duração da erraticidade do espírito, que aspira a reencarnação, obteve
o mestre a resposta seguinte:
“Desde algumas horas a alguns milhares de séculos. Demais, rigorosamente
falando, não há limite extremo marcado ao tempo de erraticidade, que pode
prolongar-se muito, mas que entretanto nunca é perpétuo; o espírito vem sempre
cedo ou tarde a reconhecer a necessidade de recomeçar uma existência que sirva
para o depurar das faltas das existências precedentes.”
Segue-se o estudo dos mundos transitórios; das percepções, sensações dos
espíritos; ensaio teórico sobre a sensação, escolha das provas, relações de
além-túmulo, relações simpáticas e antipáticas dos espíritos, metades eternas,
recordação da existência corporal, até a comemoração dos finados e os funerais.
A necessidade contudo nos obriga a resumir quanto possível a exposição dos
princípios nestes artigos; conseguintemente, apenas procuramos dar uma ideia
imperfeita da obra. Demais, temos pressa em passar a um resumo igualmente
sintético dos outros livros do nosso amado mestre, sobretudo do Céu e o
Inferno, onde teremos ocasião de conversar sobre o diabo e suas artimanhas.
[1] Escritores
clássicos da Igreja.
27
Se o ensino teológico é perigoso, oponha-se-lhe o ensino científico.
Esmaguem o padre com o filósofo.
(Eça de Queiroz, ‘Ecos de Paris’, págs. 29).
(Eça de Queiroz, ‘Ecos de Paris’, págs. 29).
Estuda o nosso mestre a volta à vida corporal e os prelúdios dessa volta;
união da alma e do corpo, o aborto, faculdades morais e intelectuais do homem,
a influência do organismo, o idiotismo e a loucura.
Sobre
a demência, chega à conclusão, de acordo com o ensino dos espíritos, de que a
alma dos cretinos é muitas vezes intelectualmente superior, porém
impossibilitada de se manifestar, por só dispor de órgãos sem desenvolvimento
ou atrofiados. Compara-os o nosso mestre a um bom músico que disponha apenas de
um instrumento imperfeito ou desafinado.
Há criaturas que abusam do talento, transformam-se em verdadeiros
flagelos da humanidade; são assim punidas, encarnando no corpo de um cretino.
Do mesmo modo acontece com os mudos, cegos, etc, que sofrem a consequência de
faltas passadas.
Passa a tratar da infância, das simpatias e antipatias terrestres e do
esquecimento do passado.
Esta
última parte fere mais particularmente a atenção do neófito, pois não pode ele
compreender a vantagem desse esquecimento, que é, entretanto, uma misericórdia
de Deus.
O
esquecimento é unicamente durante a encarnação, para que a lembrança do passado
não acordasse ódios adormecidos, e os inimigos de ontem se perpetuassem, não
havendo assim a aproximação necessária que destruísse as barreiras do ódio
antigo, substituindo-o pelas ligações da amizade.
Ao
desencarnar, o espírito reata o fio das existências anteriores, e goza com o
melhoramento moral. Demais pelas provas que sofremos nesta vida podemos avaliar
os males que praticamos nas anteriores.
*
Um
problema muito interessante, e ainda não resolvido pela ciência, é o do sono e
dos sonhos. Paulo Janet diz: “muito pouco se sabe do que respeita à filosofia
do sono.”
Jouffroy refere “que a alma não dorme e que o sono é apenas um fenômeno do
corpo, em que a alma não toma parte alguma.”
Quanto aos sonhos, certos autores, como Biron e Stewart, os classificam
apenas.[1]
O Espiritismo, porém, é luz completa, ao contrário da ciência humana, que
é apenas meia luz, por isso que só estuda um lado do problema, e não o seu
conjunto.
Perguntou, pois, o nosso mestre aos espíritos reveladores:
- A alma repousa durante o sono, como o corpo?
“Não; o Espírito nunca está inativo. Durante o sono afrouxam-se os laços
que o ligam ao corpo, e como este não tem então necessidade dele, percorre o
espaço e entra em relação direta com os outros espíritos”.
Quando dormimos, ou mesmo estamos em sonolência, o espírito desprende-se
e vai ao espaço ou a outros planetas, confabular, rever afeições ou instruir-se
para o seu progresso.
Só assim se explicam sonhos de viagens a países estranhos, onde os
hábitos, costumes e línguas nada têm de comum com os hábitos da nossa vida
presente.
Desde que não seja o efeito ou a reprodução de preocupações constantes, de
fatos conhecidos, não vemos que outra explicação se possa dar.
*
Passa o
mestre a estudar as visitas espíritas entre pessoas vivas, até a transmissão
oculta do pensamento, a qual dá lugar ao seguinte diálogo:
Qual a
razão por que uma mesma ideia - a de uma descoberta, por exemplo - aparece em
vários pontos ao mesmo tempo?
“Já
dissemos que durante o sono os espíritos se comunicam entre si. Ora, se ao
despertar o espírito se recorda do que aprendeu, o homem pode supor que o
inventou. É deste modo que várias pessoas podem fazer a mesma descoberta
simultaneamente. Quando dizeis que uma ideia anda no ar, usais de uma figura
mais acertada que pensais, e todos concorrem mesmo inconscientemente para
propagar essa ideia.”
Segue-se o estudo da letargia, catalepsia
e morte aparentes, até o sonambulismo, que é a faculdade do espírito se
desprender em vigília, transportar-se a outras regiões, descrever o que vê,
podendo fazê-lo até através dos corpos opacos. Vem depois o estudo da vista
dupla, que é a faculdade da alma ver além dos limites dos órgãos visuais.
Estuda o mestre a penetração do nosso
pensamento pelos espíritos, que podem conhecer os mais secretos; a influência
oculta que exercem em nosso pensar e ações, mostrando quantas vezes eles nos dirigem;
trata dos possessos e convulsionários, da afeição dos espíritos por certas
pessoas, o que é um efeito das afinidades morais; dos anjos da guarda,
espíritos protetores, familiares e simpáticos, prepostos a nossa direção e
adiantamento; do pressentimento, que é um conselho íntimo e oculto dos que nos
querem bem, da ação dos espíritos nos atos da nossa vida, como nos fenômenos da
natureza, etc.
Passa a estudar os três reinos da natureza: os minerais e as
plantas, os animais e o homem, e a metempsicose.
*
No estudo das leis morais, o nosso
mestre analisa os caracteres da lei natural ou divina, única verdadeira e por
isso capaz de fazer a felicidade do homem.
A lei moral é universal: não há por isso necessidade de
referências especiais aos seus capítulos; quando chegarmos ao Evangelho o
faremos, tanto mais que aqui procuramos dar uma notícia resumida dos assuntos
tratados no Livro dos Espíritos.
Estuda o mestre a vida social, mostrando que Deus deu ao
homem faculdades especiais, que sem o convívio da sociedade ficariam
inutilizadas, consequência criminosa a que procura chegar a vida de isolamento
e de silêncio.
Quanto aos laços da família conclui: seu afrouxamento produz
o recrudescimento do egoísmo.
Para terminar está já
longa notícia da parte filosófica da doutrina, vamos apenas mencionar os
restantes assuntos de que trata, dos quais faremos ligeiros comentários nos
subsequentes artigos.
Ocupa-se o mestre da lei do progresso e sua marcha; povos
degenerados, civilização, progresso da legislação humana e influência do
Espiritismo no progresso, por não ser uma doutrina estagnada, mas
constantemente progressiva.
O resto
da obra se ocupa da perfeição social e moral e suas consequências.
*
Jazíamos
amortalhado na desolação da descrença: o veneno farisaico e bolorento do dogma
nos arrancara uma a uma as ilusões religiosas, o clero estiolara
conscientemente a flor das nossas esperanças, e tecera o véu negro da treva que
nos havia momentaneamente cegado para a luz da verdade.
Maior,
porém, que a maldade do farisaísmo católico é a misericórdia de Deus. Ele nos
afastou das tramoias teatrais dos vendilhões do templo, e na escola da dor e da
agonia preparou o nosso espírito para contemplar, saborear e amar as
deslumbradas belezas do divino Espiritismo.
Compreendemos a vida, os problemas do Além, descortinamos maravilhas
ignoradas, e entramos nesse edifício majestoso, onde o amor é a luz dos
espíritos e a vida dos corações.
Entramos
no templo da verdade, e era suficiente a filosofia para nos convencer; bastava
o encanto que nos causavam a perfeição das suas linhas, as belezas dos seus
contornos esculpidos pelo amor, a solidez dos seus alicerces fundados sobre a
razão e a fé subindo pela ara do seu altar, para soluçar a música dos
agradecimentos à misericórdia de Deus.
Não era,
porém, tudo. Jesus pregara com os lábios e com os exemplos a bondade, mas quis
rematar o poema com uma prova mais do seu amor - a imolação no Calvário. Deus
nos deu além da doutrina racional o fenômeno experimental: -deu o amor, deu a
prova, e tudo isso para vir sancionar, dezenove séculos depois, as sublimidades
do Evangelho.
Foi aí que
a nossa alma encontrou a plena floração de suas esperanças, a confirmação de
suas mais doces e secretas aspirações.
A figura
do frade, que não chegara a firmar-se, por mal ajeitado e refratário, nas asas
do fanatismo para o sinistro voo, morrera definitivamente em nós, e em seu
lugar começava a esboçar-se o espírita-cristão que desejávamos e desejamos ser,
pela observação dos fatos, pelo raciocínio, pela convicção, em suma pela fé robusta
nas verdades divinas da Revelação.
[1] Vide Paulo
Janet, “Tratado de Filosofia”.
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