Profissão de Fé – parte 3
por Gustavo Macedo
Fonte: Reformador (FEB)
a partir de
15 de Abril de
1905
12
“O tempo das clausuras já passou. Os claustros, úteis à
primeira educação da civilização moderna, foram incômodos ao seu
desenvolvimento, e são prejudiciais ao seu progresso. Como
instituição e modo de educação para o homem, os mosteiros, bons no décimo
século, discutíveis no século quinze, são detestáveis no século
dezenove.” (Victor Hugo, Os Miseráveis, liv. 7º,
cap. II.)
O convento matou o ideal que concebíamos de vida monástica. A tristeza nos ia
invadindo, e - porque não dizê-lo? - a repugnância da hipocrisia. O nosso
fanatismo, já o dissemos, era extremo. Abdicáramos todos os prazeres legítimos
da vida, a fim de morrer para o mundo e viver para o amor de Deus e do próximo.
Supúnhamos lá o asilo santo, que nos abrigasse das tempestades da vida, e que a
devoção fosse o cultivo da caridade cristã. Puro engano!
O religioso é uma máquina, um autômato, sujeito a um conjunto de práticas
supersticiosas que não elevam o coração, só fanatizam os sentidos.
Quando estávamos no claustro, fomos mandados algumas vezes assistir a espécie
de representações teatrais que lá se faziam. Fanatizados como nos achávamos,
não olhávamos para a cena, e sentíamos mágoa e indignação, por vermos frades
representando atos hilariantes!
Durante toda a representação tínhamos os olhos fechados, e nos sentíamos
aliviado quando findava o espetáculo.
Natural esse sentimento: habituados que estávamos a ouvir pregar contra o
teatro, as danças e os prazeres, era justo que ficássemos indignado, ao ver
homens, que faziam profissão de piedade, cometerem o pecado de se transformar
em cômicos.
E que pesar imenso tivemos certa vez, quando uma pobre mulher trouxe para ‘os
servos do Senhor um boião cheio de manteiga!
Estava-se construindo um convento, escola, teatro, e havia muitos outros
projetos dispendiosos, tudo com dinheiro vindo da Alemanha.
E a pobre mulherzinha - coitada! - talvez se privasse do regalo de untar com
manteiga o seu pão, para que frades fartos recebessem esmolas!
Era de regra os religiosos não poderem tocar no dinheiro.
Um único religioso podia tocá-lo e guardá-lo.
A Imitação de Cristo, um dos mais belos livros, cognominado por alguns
escritores: - o quanto livro dos Evangelhos - o livro que, depois da Bíblia,
tem tido mais edições no mundo, que tem sido traduzido muitas vezes em todas as
línguas e dialetos, que tem provocado a admiração dos homens mais indiferentes
em matéria religiosa, esse admirável código da moral cristã, que tem tentado a
veia poética de homens como Corneille, esse livro não nos consta que fosse lá
meditado ou apreciado. Os Evangelhos, esses podem servir, torturados, para
justificar as práticas pagãs do convento.
Nunca se apagará da nossa memória o fato triste que passamos a relatar:
Certa ocasião, sentimo-nos penalizado com o gemer aflito de um pobre polaco.
Passava junto a nós um religioso, conhecedor daquela língua. Dirigimo-nos a ele
e dissemos:
- Irmão, bem sabe quanto o polaco é fanático. Para essa pobre gente tudo o que
diz o padre é acertado e consolador; você sabe falar a sua língua; vá a ele e
diga-lhe alguma coisa para o consolar.
- Não é justo o teu pedido; nossa regra proíbe conversar com os homens
estranhos; o religioso vive dentro de seu claustro.
De modo que o pobre, representante do próprio Jesus, que nos assegurou receber,
como a Ele próprio feito, o benefício que ao necessitado fizermos, tinha que
ver a sua predileta máxima esmagada pela sandália de uma regra, que era a
negação completa do preceito da caridade cristã.
Alegrava-nos um pouco o convívio com os alunos do colégio; tínhamos prazer e
consolação em ver os brincos das crianças e conversar com elas.
Íamos ao recreio buscar na convivência dos meninos um pouco de pureza e
simplicidade que faltava nos autômatos de burel.
Ai! Mas esse mesmo prazer nos foi negado.
A regra, o espantalho da regra, foi um velário que nos
separou dos pequeninos. Fomos chamados à cela do mestre dos noviços, e ai
admoestado por ele, a não conversarmos com os alunos, por ser reparado e
contrário à regra.
Já dissemos que o religioso que desempenha aquela função era uma boa e santa
alma. Mas o infeliz, que visivelmente se compadecia de nós, não podia librar-se
nas asas da caridade, porque o guante da disciplina lhe sofreava os ímpetos
generosos. Não tínhamos o pão do espírito, em certo período nem um livro, uma
revista, só raramente um jornal devoto. Sabíamos onde havia um montão de
jornais velhos, e aí buscávamos alguns, que escondíamos no avental, e a breves
trechos líamos pedaços!
No entanto, legáramos ao convento a nossa livraria e algumas obras importantes
de teologia, que obtivéramos por dádiva de um padre coadjutor. Tínhamos
necessidade de afeição, saudades da família, desejos de ser cristão.
Toda a recomendação do instrutor não bastara para matar em nós o sentimento
legítimo do amor ao lar.
O religioso não tem família, não deve ter saudades, deve esquecer tudo por
Deus, evitar o mais que possa visitá-la, e até lembrar-se
dela.
Horrível! Brutal! Anticristão! Jesus, manso e humilde de coração, cujos lábios
se abriam para bendizer, lábios que foram a fonte da fraternidade e da
esperança para os desgraçados; lábios donde brotaram palavras de amor e perdão,
coração que só pulsou de piedade pelos infelizes e pelos aflitos, Jesus era
reduzido pelo farisaísmo monástico, servindo de motivo a práticas aviltantes.
O Evangelho era um falso pretexto para a horda de traidores de sua doutrina
matarem no espírito o ideal do belo e no coração as aspirações mais nobres e
legítimas.
O claustro é o verdadeiro calabouço da alma; a luz da razão ali não brilha, as
trevas do obscurantismo e do fanatismo não permitem nem um reflexo ao menos
dessa luz esclarece-lo. As vestes monásticas são verdadeiras túnicas de
criminosos: eles devem ser assinalados como inimigos da luz, como
estranguladores da razão, como violadores da consciência. Não pregam o amor de
Jesus, pregam o terror do inferno. Mas são sobretudo criminosos, porque opõem
ao código divino do Evangelho a negação da regra.
A regra! Mas que é a regra? Uma monstruosidade que proscreve o amor do próximo,
o consolo moral dos desgraçados, o amor da família, da pátria e da humanidade,
que excita o orgulho e desenvolve o egoísmo, fumo negro das fogueiras
inquisitoriais que pretende encobrir o brilho e a poesia evangélica.
Em vez de darem a Jesus corações que o amem, ofertam-lhe vítimas humanas! O
fanatismo diz: “Eu sou a verdade; fazei-me religião única, fazei-me religião
privilegiada, indiscutível, porque eu sou a verdade.” Pois que! Não disseram o
mesmo todas as religiões? Com esse pensamento não se justificaram os crimes de
todas as teocracias? “Eu sou a verdade”, disse o paganismo, para dar a cicuta a
Sócrates; e Sócrates morreu entre as gargalhadas do povo e as truanices do
teatro. “Eu sou a verdade” disse o judaísmo, para crucificar a Jesus; e quando
passaram os homens boçais pelo campo do suplício, diziam-lhe na hora trágica da
sua suprema agonia: “Se és filho de Deus, desce da cruz”. ‘Eu sou a verdade”
disse o protestantismo, para justificar o suplício de Serveto; e o severo, o
cruel, o implacável Calvino recreava-se em ver como Serveto devorava os seus
próprios excrementos e como expirou rangendo os dentes, na fogueira do
fanatismo.
“Eu sou a verdade”, disse também o catolicismo, para arruinar, para empobrecer
a Espanha em nome de uma religião de paz e de misericórdia. “De modo que ao
Cristo, vítima da intolerância religiosa, eterno defensor da consciência
humana, humilíssimo como homem, cujo coração só batia para amar e cujos lábios
só se abriam para bendizer, os inquisidores das teocracias ofereceram, como os
idólatras aos antigos deuses da Índia e da América, sacrifícios humanos.[1]
Não era possível mais resistir. Em janeiro de 1895, declaramos ao mestre de
noviços não podermos mais permanecer na ordem; e, numa fria madrugada,
escondido, depois de furtivamente recebermos das mãos do referido monge a
comunhão, na capela interna do convento, deixamos sobre o catre da nossa cela o
hábito franciscano, com o qual dormíamos, por ser isto imposto pela regra,
e o religioso não poder deixa-lo senão no túmulo!
Nesse mesmo dia tomamos o vaporzinho no rio Itajaí, e descendo na corrente do
rio, com as nossas ilusões desfeitas, o próprio rio parecia refletir a imagem
das nossas vicissitudes: ao subirmos contra a corrente, íamos de encontro a
justiça, ao amor de Deus, à caridade, ao bem e a Jesus. Ao descer, à mercê da
corrente, vínhamos naturalmente para a vida, para as aflições e para o
renascimento espiritual, depois, contudo, do preâmbulo da descrença e da
desolação que se abria para nós.
[1] Castelar, Discursos Parlamentares,
pag. 281.
13
Com efeito, o nosso século é admiravelmente delicado. Imagina
ele porventura que esteja completamente extinta a cinza das fogueiras?
Que delas não reste mais que um tição que acenda ainda um
archote? Insensatos! Chamam-nos jesuítas, julgando que nos
cobrem de opróbrio! Mas os jesuítas lhes reservam a
excomunhão, uma mordaça e fogo... E, um dia, hão de ser os senhores
dos seus senhores. (O padre Roothau, geral dos
jesuítas, na Conferência de Chieri).
A 23 de janeiro de 1895, após fatigante viagem, aportamos a estas plagas, tendo
ainda o intuito de nos recolher a uma ordem religiosa, que fosse mais humana e
cristã. Ao saltarmos, entramos na igreja de Sta. Rita, para dar graças a Deus
pela terminação da viagem, e dali galgamos a ladeira da Conceição, em demanda
do palácio episcopal. Mandamos um cartão humilde ao prelado, pedindo nos
receber pelo amor de Deus, pois acabávamos de chegar, vindo do convento de
Blumenau. S. Ex. não se dignou receber-nos; tinha ocupações mais sérias,
relações mais distintas, audiências mais nobres que a de um pobre diabo, que
ousara importuna-lo na placidez beatífica de seu palácio.
Fomos abraçado nessa noite por nossa família, para cujo seio voltávamos como
filho pródigo.
Impossibilidade material nos fez renunciar à carreira monástica. Arranjamos uma
modesta colocação na sociedade e ainda nos entregávamos aos excessos
devocionais. Acedendo a convites reiterados, fomos fazer parte da associação de
S. Vicente de Paulo, composta de fanáticos, e que tem sua diretoria geral em
Paris, e conselhos superiores em outros países.
Divide-se em conferências, isto é, em pequenas agremiações paroquiais. Tem
por fim socorrer a pobreza, material e moralmente. Reúnem-se os associados uma
vez por semana.
Na hora da reunião, todos se ajoelham. O presidente pronuncia uma prece
decorada, a qual todos respondem. Sentam-se, lê-se depressa um breve trecho da
Imitação de Cristo, e cada um dá conta do que fez na semana. O trabalho semanal
consiste em distribuir gêneros alimentícios às famílias visitadas, e
catequizá-las. Dão os socorros materiais, visando fanatizar os socorridos.
Como só poderia acontecer entre tal gente, faz-se inquérito sobre o viver dos
outros e dele diz-se mal. Um diz que a filha da socorrida vive à janela,
namorando; outro, que fulana recebe dinheiro e não precisa, mais outra vive
amasiada, não se quer casar ou deixar o amásio. A tal conferência é uma
verdadeira comissão de inquérito da vida alheia e privada.
São os verdadeiros católicos na acepção da palavra: praticantes, intolerantes,
orgulhosos, desconfiados e maldizentes.
Um vigário nos afirmou, mais de uma vez, não querer tais conferências em sua freguesia.
Há muitos anos funcionam, sem ter uma casa própria, sem mais nada além de um
beatismo estéril.
Não tardou deixássemos de frequentar tal sociedade, que dava esmolas aos que
não necessitavam, só para rende-los ao fanatismo, e cujas reuniões bem nenhum
produziam à alma. Rezava-se, como dissemos, umas preces decoradas e maquinais;
depois do inquérito todos se ajoelhavam de novo e repetiam maquinalmente umas
poucas ave-maria, em diversas intenções.
Tal sociedade é dirigida pelos padres lazaristas.
Fomos adquirindo uma desconfiança bem pronunciada pelos padres em geral, cuja
falta de fé e piedade eram notórias.
Defendiam a religião e a praticavam, por mero interesse.
Ocioso seria repetir o que a esse respeito já ficou dito em artigos anteriores.
*
Em 1896 ou 1897, a sociedade de S. Vicente de Paulo obteve, depois de reiterados
convites, que o padre Júlio Maria viesse a esta capital fazer uma série de
conferências subordinadas ao título “Conferências de Assunção”.
Na matriz, onde ele as proferiu, fizeram sucesso, não só na parte elegante da
sociedade, como no mundo clerical.
A parte elegante e devota, acostumada a ouvir pregar nos púlpitos somente
doutrinas dos santos padres, doutores eclesiásticos e autores místicos, achou
que o orador era um assombro, porque pregava, ou por outra, citava autores como
Chevreuil, Pasteur, Claude Bernard, Berthelot, Max-Nordau, Littré, Augusto
Comte, etc.
Convém saber: Tais escritores pregavam a necessidade do sentimento religioso e
não da religião católica.
Porém, o povo ilustrado misturava alhos com bugalhos.
O clero teceu logo uma rede de intrigas contra o ilustre sacerdote quase
herege, taxando-o de ignorante em matéria teológica!
O vigário da freguesia pôs as mãos na cabeça e despediu do templo o herege,
“por não querer novidades perigosas na sua matriz”, sendo o pobre homem
acolhido, para terminar a série das conferências, na igreja da Cruz dos
militares.
A maior pedra de escândalo do conferencista foi afirmar: “a convicção é sempre
luminosa: a fé cega gera o fanatismo.”
O clero berrou que era um grave erro, que a fé era superior a tudo, isto é, que
a fé era cega.
A título de curiosidade transcrevemos um ligeiro trecho da doutrina de Júlio
Maria.
“Os judeus, meus amigos, perderam-se porque não souberam interpretar as
escrituras; nós comprometemos várias vezes a causa do catolicismo, porque não
sabemos, como o doutor de que nos fala o Evangelho, tirar da letra, que mata, o
espírito que vivifica; porque não sabemos, como o doutor de que nos fala o
Evangelho, tirar das profundezas da fé, não somente as coisas velhas, mas
também as coisas novas.
Esse
horror da novidade na religião, por mais que simule, caricaturando-a, a bela
virtude da fidelidade a Deus, obediência à igreja, não é entretanto nas coisas
da religião senão o maior empecilho de Deus e da igreja.
O vigário da Glória me deu indignado o trecho seguinte:
“Bossuet disse que uma das qualidades da igreja é a sua constante novidade!
Eu
sei que a velha apologética não entendia assim. Para ela a igreja é uma coisa
que Deus fez de um jato, completa, como que um aerólito que caiu do céu, pronto
e acabado. Grande erro. Deus podia, é certo, fazer a igreja pronta e acabada, e
entrega-la assim ao homem. Mas não quis. Como na ordem da criação Deus poderia
ter feito o globo completo, ter logo adaptado o planeta a todas as necessidades
físicas do homem, mas não quis e deixou que o próprio homem o fosse adaptando
às suas necessidades, também na ordem religiosa, na ordem da redenção, Deus,
que poderia fazer a igreja pronta e acabada, preferiu fazê-la conjuntamente com
o homem; de sorte que a igreja não foi feita só por Deus, mas com o concurso do
homem. Assim a igreja é eminentemente progressiva; progressiva em tudo, no ser,
na doutrina, no amor, no próprio dogma. Progressiva no dogma?!
Sim, por mais paradoxal que isto pareça, não há coisa mais progressiva do que
um dogma; um dogma é a coisa mais progressiva deste mundo.”
Francamente, o vigário da Glória tinha razão. “Não há coisa mais progressiva
do que um dogma; um dogma é a coisa mais progressiva deste mundo!”
Os retrógrados, os que queriam, como ainda hoje querem, jungir o destino do
trono à religião, se exasperaram com o padre, destacando-se um deles, aliás
primoroso jornalista satírico, para atacar, pelas colunas editoriais do Jornal
do Commercio, o conferencista da Assumpção, que nos termos, que passamos a
transcrever, se referia ao regime passado.
“Não venho, pois, chorar saudades do passado. Vós todos conheceis as minhas
ideias, o meu nenhum pesar pela extinção dos aparentes e enganosos privilégios
dados à igreja no passado regime; não foram senão o pretexto para que o Estado
concentrasse, com a supremacia política, a supremacia religiosa, graduando a
seu bel prazer o sentimento católico da nação, cuja vitalidade religiosa
entorpeceu enormemente na educação, no ensino, nas leis, na política, no
parlamento, no clero, deixando em tudo isso estampado o cunho da sua
incredulidade.
Se
eu viesse fazer tais lamentações, mentiria às minhas convicções, convencido
como estou de que o regime foi pérfido à Igreja, inútil à religião, e de que
por isso mesmo os partidos políticos desmoralizam-se, a dinastia perdeu o seu
prestígio, e a espada não foi senão a vingadora dos direitos de Deus,
conculcados no Brasil por meio século de ceticismo político.
Por muito menos foi desterrado para a penitenciária do convento da Córsega o célebre
pregador padre Didon, cognominado por Huysmans: “O Coquelin do púlpito.”
Cedamos a palavra ao literato francês Jayme Séguier:
“A celebridade do Padre Didon como orador sagrado data da época em que se
discutia no Parlamento francês, galhardamente defendidas por Naquet, a
lei do divórcio. A Igreja, pela palavra de um certo número de pregadores,
encetou nas diversas igrejas de Paris uma campanha resoluta contra esta lei,
mas sem conseguir, pela insuficiência dos oradores, agitar fortemente a
opinião. De súbito correu na cidade que do alto do púlpito de Saint Philippe du
Roule se fazia ouvir uma voz singularmente poderosa, voz de tribuno e não de
mero pregador, que vibrava contra a lei em discussão os golpes mais certeiros,
encontrando argumentos originais e imprevistos, formulados em uma linguagem
magnífica. Todo o Paris intelectual afluiu à aristocrática igreja, dando-se
verdadeiros assaltos à nave, demasiado estreita para conter as ondas humanas
que nela se apinhavam. Dominando essa turba de notabilidades, que constituíam
um público excepcionalmente vibrátil e apaixonado, o Padre Didon, no seu
púlpito, aprumando a sua alta e majestosa estatura, fez passar sobre ela o
fluido irresistível do seu gênio oratório, agitando-a em calafrios de
entusiasmo tanto mais violento quanto devia reprimir-se, a custo de resto, para
não rebentar de vez em quando em calorosos aplausos.
Ainda se não apagou na memória dos que então o ouviram a
recordação dos raptos eloquentíssimos e também das audácias de expressão do
extraordinário orador. Encontro em um jornal o seguinte trecho de uma dessas
famosas conferências, em que o fogoso dominicano, discorrendo sobre o amor que
liga, na hora do enlace nupcial, um ao outro os dois nubentes, exclamou:
- O amor é eterno, ou então não é amor. Se o amor é eterno - e o é no seu
juramento como na sua essência - pergunto-vos por quê e em nome de que ide vós,
em um momento de decadência, de fraqueza e de paixão, voltar-vos contra e
recordação dessa hora que deveria bastar a encher de perfume a vossa vida e a
vossa eternidade. Pergunto-vos porque ousais dizer: “Era um ingênuo;
enganei-me; era uma criança! Em nome da minha maturidade, em nome dos meus
trinta anos, calco aos pés e rasgo esse contrato, que foi assinado pelo que há
de maior, de mais santo no mundo, pelo que há de superior a tudo, pelo...” -
Não! Não direi esse nome. Donzelas, dizei-o vós!”
Admirem a habilidade deste movimento oratório, dessa supressão da palavra ‘amor’ no
momento em que parecia cair dos lábios do tribuno, desta apóstrofe soberba às
virgens amorosas, para que pronunciassem em vez dele o vocábulo sublime, que
define “o que há de mais santo no mundo!”
As autoridades religiosas acharam, porém, que este monge falava do amor entre o
homem e a mulher com um pouco mais de exaltação do que convinha, e mandaram-no
fazer um ano de penitência em um humilde convento da Córsega. O padre Didon foi
admirável de obediência, de resignação e de disciplina.
Cumpriu a sua pena sem uma palavra de protesto, empregando esse retiro em
escrever o seu livro A Vida de Jesus, que contém
páginas magníficas.
De então para cá, o grande orador sagrado dedicou-se mais especialmente a
assuntos de educação.
Convém, no entretanto, acrescentar: essa obra, escrita por Didon, rendeu
duzentos contos para sua ordem!
Lacordaire, outro orador eclesiástico adiantado, escapou por um triz da
excomunhão como o frade Didon.
Lamennais, esse separou-se da igreja, e como ele outros que pretenderam tomar o
voo do raciocínio, livres do freio do romanismo.
Nosso espírito juvenil (tínhamos uns vinte e um anos mais ou menos) estava
sedento de alguma coisa: melhor, de Cristianismo mais cristão, e a corrente do
padre Júlio Maria era a corrente americana, a das doutrinas do arcebispo
Ireland e cardeal Gibbons.
Nosso espírito simpatizou com o americanismo; quebramos o primeiro elo da
cadeia que nos acorrentava ao círculo de ferro do dogma.
14
Os Estados Unidos são, porém, o ponto onde a doutrina romana
dezenove vezes secular, e essencialmente
progressiva na sua imutabilidade, apresenta-se neste momento menos eivada
de reacionarismo, mais liberal, mais evangélica, numa palavra, mais
cristã.
(Oliveira Lima, Nos Estados Unidos, págs. 289)
O americanismo é uma corrente do catolicismo anglo-americano, que tem tentado
um acordo entre a igreja e o século.
São seus promotores o padre Hecker, Brownson, Ireland e outros.
O primeiro, descendente de holandeses, foi primeiramente noviço dos
redentoristas da província alemã, donde foi expulso em 1857, por
querer a fundação de conventos onde se pregasse em língua inglesa.
Tal medida era contrária aos desejos dos companheiros de origem alemã;
entendiam eles dever dedicar-se tão somente aos seus patrícios.
No correr destes escritos, já mostramos ao leitor o acanhado sentimento de
preconceito de raça que os frades germanos da S. Catarina alimentavam em seu
convento e colégio.
Nos Estados Unidos empenham-se no sentido de conseguir uma igreja à parte, isto
é, dioceses, seminários, paróquias e escolas unicamente para os seus patrícios.
O visconde de Maux apresenta esta feição do clero alemão como um dos perigos
com que a igreja norte-americana terá de lutar.
O padre Hecker, com o auxílio de parentes e de norte-americanos, fundou a
congregação de S. Paulo, em 1858, congregação destinada a agremiar os
convertidos do protestantismo. Dizia ele:
“A forma governamental dos Estados Unidos é preferível a qualquer outra para
os católicos. Ela é mais favorável à prática das virtudes que são condições
necessárias ao desenvolvimento da vida religiosa do homem. Ela lhe deseja a
máxima liberdade de ação, por conseguinte lhe torna mais fácil cooperar com o
Espírito Santo. Com essas instituições populares, os homens gozam da máxima
liberdade para cumprirem o seu destino. A igreja católica será, pois, tanto
mais florescente nesta nação republicana, quanto os representantes da igreja
seguirem mais de perto, em sua vida civil, a doutrina republicana.”[1]
O ilustre publicista Sr. José Veríssimo, comentando os entusiasmos do Sr.
Oliveira Lima, que acredita ser o americanismo o catolicismo do futuro, assim
se expressa: “Eu, me parece que o contrário seria a verdade e que o
catolicismo americano prepara um novo cisma, desde que um papa mais católico
que político, um Pio IX por exemplo, se assente na cadeira de S. Pedro.”
Tinha razão o ilustre literato: certa vez um jesuíta, ao qual fomos enviado
para toma-lo como diretor espiritual, por estarmos muito adiantado em
perfeição, recebeu, de empréstimo nosso, o livro de Elliot sobre a vida do
padre Hecker.
Depois de lê-lo, no-lo restituiu, recomendando-nos que o não emprestássemos a ninguém,
por ser perigoso!
A opinião era valiosa. Brownson, de quem falamos em princípio, era calvinista
puritano; converteu-se ao catolicismo em 1844, depois de ter brilhado no
púlpito de diversas igrejas evangélicas, seguindo a mesma orientação de Hecker.
Ireland, arcebispo de S. Paulo de Minnesota, segue a mesma corrente,
acompanhado por Keteller, bispo de Moguncia, Lavegerie, arcebispo de Carthago,
Manning e Gibbons.
Procura Ireland harmonizar a igreja e o tempo presente. Neste
sentido fez notável conferência sobre “a igreja e o século.”
Esses homens, porém, têm a liberdade de pássaros nas gaiolas; seus voos lhes
dão constantemente com as cabeças nas grades férreas do dogma e da obediência
papal.
O clero da grande República pode e deve, em vez de ser chamado clero católico,
chamar-se clero americano.
Tratando-se uma vez de um casamento, recebemos gentileza de um prelado
arquidiocesano; desejando testemunhar-lhe nossa gratidão, lhe oferecemos um
livro do cardeal Gibbons intitulado: “O Embaixador de Cristo.”
O arcebispo nos declarou, ao recebe-lo, não simpatizar com os americanos.
O Jornal do Brasil nos deu a honra de publicar em sua primeira
coluna um artigo nosso filiado àquela corrente. Publicou o segundo em um
recanto de folha; o terceiro não publicou.
Seu ilustre diretor nos declarou ser intolerante, e suspendeu-os logo à
primeira observação do palácio arcebispal.
Já havíamos abandonado as práticas devotas e só por puro diletantismo nos
ocupáramos daquilo.
Convencemo-nos: o americanismo era uma simples fantasia, e, assim fomos caindo
na mais absoluta incredulidade.
O catolicismo é um poder agonizante. Vive da pompa do seu culto pagão e de
favoniar a vaidade dos esnobes e da roda chique.
Na República americana, que tem ele feito em favor da raça negra?
Nada! O ódio subsiste, e ele o alimenta. Há conventos e clero negros!
O preto não é filho de Deus pelo acidente da cor, enquanto que Jesus recebeu a
oblação dos reis magos, e um deles era negro.
A igreja colocou sobre os altares S. Benedito, Santa Efigênia e S. Elesbão,
etc. A igreja americana deve ter riscado do seu calendário esses santos que a
maculam.
O cardeal Gibbons não trepida em afirmar “que os negros devem ser
mantidos numa meia subordinação, fornecendo-se-lhes educação mecânica mais que
educação com vista a profissões liberais, e sobretudo nunca despertando no seu
ânimo instintos de dominação que nunca poderão ser realizados.”
“O catolicismo liberal é apenas uma recordação, mal vista da igreja, que não
cessa de condená-lo, e dos ortodoxos. A tentativa dos Lamennais, dos
Lacordaire, dos Montalembert e outros grandes mais[2] transviados
espíritos, falhou completamente; nem a igreja - e esta é ainda a sua força -
admite outros intérpretes do seu sentimento senão ela, que deles deu o melhor
compendio no Syllabus de Pio IX.”
O cônego Delassus escreveu um livro sobre o americanismo, intitulado L’
americanisme et la conjuration anti-chrétienne.
A respeito desse livro escreve um colaborador da célebre revista católica de
crítica Polybiblion:
“Sujeitos famulentos de reclame, e pouquíssimo instruídos em teologia para
compreender o verdadeiro alcance de suas idéias, esforçaram-se por amesquinhar
as santas exigências da religião católica às vulgares ambições de um
naturalismo e de um liberalismo filosófico mal disfarçado. Era tanto maior o
perigo que incrédulos e ímpios, sempre a cóca do que pode enfraquecer a Igreja,
gostosos desses avanços feitos com grande barulho do seu lado, favoniavam o
imprudente movimento por mil reclames da imprensa quotidiana, dos entusiasmos
factícios de algumas revistas mundanas, e das seduções dos seus fáceis elogios.
De
lados diversos partiu o grito de alarma; primeiro daqueles que verificaram o
mal de visu e se haviam abeirado dos protagonistas do erro
novo, ao depois por outros teólogos que não podiam conceber os progressos das
doutrinas anticristãs mostrando-se em plena luz, desavergonhadamente, sem
provocar reprovação suficiente. Após uma longa e paternal paciência,
impressionou-se finalmente o Santo Padre, e por uma carta magistral, na qual a
sua firme vontade se vela sob termos da maior caridade, condenou as temerárias doutrinas.”
Nosso espírito no entanto necessitava de alguma coisa, de um ideal religioso;
lançamo-nos a procurá-lo, e fomos travar conhecimento com o positivismo, do
qual procuraremos dar uma pálida síntese no próximo artigo.
[1] O padre
Hecker, por Elliot, pags. 281.
[2] José
Veríssimo, Revista Litteraria.
15
Estou tão persuadido das verdades que defendo que, quando considero o
aturdimento geral dos princípios morais, a divergência das opiniões, o
abalo das soberanias baldas de base,
a imensidade das nossas necessidades e a inanidade dos nossos meios, parece-me que todo verdadeiro filósofo deve optar entre estas duas hipóteses: “ou que vai formar-se uma nova religião, ou que o cristianismo será rejuvenescido por algum meio extraordinário”.
a imensidade das nossas necessidades e a inanidade dos nossos meios, parece-me que todo verdadeiro filósofo deve optar entre estas duas hipóteses: “ou que vai formar-se uma nova religião, ou que o cristianismo será rejuvenescido por algum meio extraordinário”.
José de Maistre – (Considerações sobre a França. Cap. V.)
Não há
mais religião na terra; o gênero humano não pode permanecer neste estado... tudo
anuncia não sei que grande unidade para a qual marchamos a grandes
passos.
(Idem, ‘Soireés de S. Petersburgo”. Vide Jorge Lagarrique -
“Lettres sur le Positivisme.”)
Além do conhecimento pessoal que já havíamos travado com o positivismo,
lembramo-nos de ir colher uma nova e fraca impressão de suas práticas, e fomos,
há dias, assistir ao culto, para bem servir por essa forma aos leitores
do Reformador. Tomamos notas, adquirimos um folheto necessário, e
nos dispomos a dar cumprimento ao prometido em nosso artigo anterior.
O apostolado positivista funciona à rua Benjamim Constant nº 30. É um templo
triste e severo. Guarnece-o pequena grade de madeira pintada de verde. Sua
frente faz lembrar a matriz da Glória, por causa das grossas colunas simetricamente
dispostas na entrada. Sete degraus de tijolos dão acesso ao pórtico. O número
simboliza as sete ciências. O templo tem três portas, por cima das quais se
lêem os seguintes dísticos:
Viver
às Claras. Viver para Outrem. Ordem e Progresso.
A porta do centro é a única que dá ingresso à igreja.
Em frente a essa porta existe um paravento, tal qual na igreja católica.
Quem não se aperceber, tem a impressão de entrar numa daquelas igrejas. Filas
de cadeiras se estendem em toda a nave. Na capela-mor, separada do corpo da
igreja por uma grade de madeira, estão dispostas cadeiras destinadas às
senhoras. Ao fundo do templo, em vez de um santo, existe um quadro: uma
mulher esbelta, trajando de branco, traz ao colo uma criança; esse quadro
representa a humanidade. Embaixo, em lugar do altar, há a tribuna apostólica.
Rodeando, ou ladeando a tribuna, umas poltronas de madeira - penso - destinadas
aos sacerdotes em solenidades. Aos lados das paredes da nave há uma espécie de
nichos, em número de quatorze, sete de cada lado, à laia de altares laterais, e
neles bustos coloridos, apoiados sobre peanhas negras de quase dois metros de
altura, representando as encarnações dos diferentes ramos do saber. A
principiar do lado esquerdo de quem entra, o primeiro que se divisa é Dante,
representando a epopeia moderna. Segue-se Gutenberg, a indústria; Shakespeare,
o drama moderno; Descartes, a filosofia moderna; Frederico, a política moderna;
Bichat, a ciência moderna; Heloísa, a santificação feminina.
Do lado direito, principiando do mesmo lugar, temos; Moisés, a teocracia
inicial; Homero, a poesia antiga; Aristóteles, a filosofia antiga; Arquimedes,
a ciência antiga; César, a civilização militar; S. Paulo, o catolicismo; Carlos
Magno, a civilização feudal.
Há uma verdadeira cinta de inscrições rodeando o templo internamente, por baixo
das janelas superiores, que se assemelham a tribunas.
O traje predominante é o preto. Augusto Comte vestia sempre de negro; deve ser
esta a razão pela qual seus discípulos o imitam. Alguns trazem ao braço laços
verdes, emblema do sacerdócio positivista.
O vice-diretor vai ao púlpito, revestido de batina com vivos verdes, e um curto
manteleo dessa cor lhe cai sobre os ombros.
O verde predomina em tudo, até mesmo na capa dos livros; em certo tempo até se
imprimiu nessa cor.
O porão do edifício é ocupado pela tipografia.
No interior da igreja, antes da nave, existe uma livraria, onde se dão e vendem
livros e folhetos positivistas.
No coro existe um órgão para tocar antes e depois do pregador, havendo canto em
certas ocasiões, - cantos algumas vezes da liturgia católica, onde mudam a
letra, como, por exemplo, na Ave Maria, de Mercadante, que mudaram
para Ave Sofia.
Em grandes festividades usam orquestra e canto coral.
Convém no entretanto saber que só o Brasil e talvez a Inglaterra possuem
capelas. Na França, berço do fundador da doutrina, o culto é feito no
apartamento onde residiu Clotilde de Vaux, apartamento adquirido com o dinheiro
angariado pelo vice diretor do apostolado brasileiro, que o foi inaugurar em
Paris.
Conhecido o edifício, passemos agora a expor a doutrina que nele se prega, não
separando-a da pessoa do seu autor.
*
Isidoro Augusto Maria Francisco Xavier Comte nasceu em Montpellier, em 19 de
janeiro de 1798, filho de Luiz Comte, tesoureiro na recebedoria de Hérault, e
de Rosalina Boyer.
Seus pais eram católicos fanáticos e partidários da realeza legítima e nesse
ambiente o criaram.
“Seus condiscípulos narram maravilhas de sua portentosa memória: podia
repetir centenas de versos após uma só audição, e recitar de trás para diante
todas as palavras de uma página lida uma vez.” [1]
Aos 15 ou 16 anos, matriculou-se na escola politécnica de Paris. Foi, desde o
liceu de sua terra natal, muito orgulhoso e indisciplinado. Na escola superior
foi sempre cabeça de motim, tendo sido licenciado, e passando por isso a viver
de lições particulares de matemática até 1817.
Naquela época Augusto Comte travou relações com o conde de Saint Simon, chefe
de uma seita que em seu desregramento ia até a promiscuidade. Tais relações
romperam-se em 1825.
Em 1826 abriu em sua residência um curso destinado a expor o seu sistema
filosófico.
Esse curso era frequentado por homens de valor intelectual. Na terceira
preleção os ouvintes encontraram a porta fechada, devido a uma crise cerebral,
que obrigou o filósofo a se internar no hospício de alienados do célebre
alienista Dr. Esquirol. Convém saber: antes da abertura do referido curso, o
professor havia contraído núpcias com Carolina Massin, cujo nome figurava no
registro da polícia de Paris, na parte referente às mulheres públicas. Por
exigência da lei francesa um funcionário de polícia assistiu o casamento, para
legalmente ficar excluída do registro madame Comte.
Contribuíram para a enfermidade mental de Augusto Comte os desregramentos de
vida daquela que havia elevado à dignidade de sua esposa, e que o reformador
acusava de se não haver regenerado. O casamento foi puramente civil, e por isso
sua mãe, Rosalina Boyer, não o reconheceu como legitimamente casado.
Durante a crise cerebral do filósofo, entendeu sua progenitora casa-lo
religiosamente, para o que recorreu aos serviços do célebre abade Lamennais. O
ato, a que inconscientemente se prestou o enfermo, agravou consideravelmente o
seu estado de fúria.
Sua mãe recebeu então em seus braços como legítima nora Carolina Massin, que
foi dedicadíssima durante a enfermidade do esposo, opondo-se a que sua sogra o
internasse, como queria, em uma casa religiosa.
Durante a moléstia tentou Comte suicidar-se, atirando-se ao Sena, do qual foi
salvo por um guarda real.
Restabelecido, esse homem extraordinário, que passava horas e horas seguidas a
meditar, ao ponto de uma ocasião ter dado a lume o fruto de uma meditação de 50
horas, e que - teremos ocasião de ver - era médium vidente; restabelecido, o
seu primeiro trabalho foi uma crítica do tratado de Broussais sobre a irritação e
a loucura, onde pôs em proveito a sua própria experiência.
*
As incompatibilidade entre os esposos iam se acentuando de tal maneira, por
divergências de todo o gênero, que afinal Carolina Massin realizou o escândalo
com que há muito ameaçava o esposo: a separação.
Procurou a mulher de um proletário, chamada Sophia Bliaux, instalou-a como
criada, recomendou-lhe o marido, po-lo ao corrente dos seus hábitos, dos
cuidados delicados exigidos pela sua vida de labor, e, em seguida, afastou-se
para sempre de teto conjugal.[2]
*
Nessa situação dolorosa se achava Augusto Comte, 1844, quando travou
conhecimento com a irmã de um seu discípulo, a senhora Clotilde de Vaux, esposa
abandonada de um coletor de rendas que se havia expatriado para lugar
desconhecido, a fim de escapar à punição de um crime de peculato.
“A 28 de agosto de 1845, na igreja de S. Paulo, à rua de Santo Antônio, ele
apresentava com Clotilde, na pia batismal, o filho mais velho de M. Marie,
irmão dela; foi durante essa cerimônia que Augusto Comte, com os olhos fixos em
Clotilde, lhe votou a alma e uniu-se a ela por um casamento subjetivo que a
morte não devia romper, e ao qual a posteridade havia de conferir a sua
infalível consagração”[3]
Clotilde percebendo a paixão do filósofo, procurou esquivar-se. Causou isto
grave enfermidade ao adorador, que por esse motivo recebeu de Clotilde, o
oferecimento de um amor de irmã.
O seu estado valetudinário e a paixão por Clotilde deram origem à religião da
humanidade, cuja estrutura exterior temos visto, não permitindo a extensão
deste escrito darmos neste número a estrutura interior, ou a doutrina, o que
faremos no próximo artigo.
[1] J.
Lonchampt, Epitome da vida e escritos de Augusto Comte, pág. 5.
[2] Vide Lonchampt,
Ob. Cit., pág. 5.10
[3] Idem acima (4).
16 Igreja Positivista do Brasil
“O positivismo deve
desenvolver para com o Catolicismo expirante as disposições, não de
um invejoso rival, mas de um digno herdeiro, que, para manter a lei da
continuidade, sobre a qual funda o conjunto de seus títulos, precisa
de ser sancionado por seu predecessor”. Augusto Comte
O catecismo positivista abre assim, em seu prefácio:
“Em nome do passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores
práticos da humanidade vêm tomar dignamente a direção geral dos negócios
terrestres, para construírem enfim a verdadeira providência moral, intelectual
e material, excluindo irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos
escravos de Deus, católicos, protestantes ou deístas, como sendo, ao mesmo
tempo, atrasados e perturbadores.” [1]
Queria Augusto Comte fundar uma religião científica, moldada no catolicismo.
Lonchampt, do qual nos temos socorrido no correr destes artigos, assim condensa
o pensamento do mestre:
“O passado tinha-lhe ensinado que a religião é um dos elementos da ordem
social; que, por toda a parte e sempre, ela tem um órgão distinto: um
sacerdócio. Assim a política positiva tinha por objeto
imediato a instituição de uma religião.”
E mais adiante, na obra que temos citado, diz o referido biógrafo: “ele
precisava, com verdades demonstradas, fazer o que antes dele tinham feito S.
Paulo e Maomé com dogmas indemonstráveis.”
Robinet, outro discípulo do reformador, assim se expressa:
“A ciência explica hoje o mundo, o homem e a sociedade, os elementos
constitutivos, suas propriedades respectivas, suas relações recíprocas, sem o
socorro de alguma vontade arbitrária, divina, ou de qualquer entidade.” [2]
O positivismo não indaga das causas primárias e finais. Augusto Comte teima em
chamar religião a sua escola filosófica. Nunca pudemos compreender a razão:
religião quer dizer: religar, unir; na acepção mais vulgar do termo, religião
quer dizer: o ponto de encontro entre a criatura e o Criador; e se as palavras
valem, é pelo que representam, ao contrário seria este um dos fenômenos menos
importantes, visto como a superioridade da linguagem humana consiste em ser
veículo de pensamentos e ideias.
*
Augusto Comte era admirador entusiasta da companhia de Jesus, de José Demaistre
e Hubbes.
Procurou o geral dos jesuítas,
pedindo a coadjuvação da ordem, desejando a fusão com o positivismo.[3]
A religião, da qual se fez pontífice, consiste na deificação da humanidade, à
qual se incorporarão os homens “aptos à assimilação” isto é, que se tornem
verdadeiramente úteis à humanidade, com exclusão daqueles que não são para ela
mais do que um fardo. Os animais úteis, tais como o cão, a cavalo, o boi, são
incorporados à humanidade e como tais adorados pela grei positivista.
O seu culto se divide em privado e público: o primeiro se subdivide em pessoal
e doméstico.
O pessoal consiste “na íntima adoração do sexo afetivo, conforme a aptidão
natural de cada digna mulher a representar a humanidade.”
Mãe, esposa e filha tais são os três anjos da guarda, ou, como dizia o chefe do
positivismo, “deusas domésticas”.
O culto doméstico serve de transição natural entre o culto pessoal e o público.
Compreende os nove sacramentos positivistas que são: apresentação,
iniciação, admissão, destinação, casamento, maturidade, retiro, transformação
e, por último, a consagração final, ou incorporação.
O último é conferido sete anos após a morte.
Todos são facultativos. As mulheres estão dispensadas do quarto, sexto e
sétimo. Têm a sua fórmula sagrada: consiste em repetir as palavras: ‘o amor por
princípio’. levando a mão ao occiput; ‘a ordem por base’, pondo a mão no alto
da cabeça; ‘o progresso por fim’, pondo a mão na fronte.
Huxley, comentando essa paródia do Catolicismo, diz: “a religião da humanidade
é um catolicismo sem cristianismo”.
*
No breve
resumo que procuramos dar aos leitores, não podemos senão tocar de leve nos
principais pontos.
A biblioteca positivista consta de 150 volumes, dos quais destacaremos alguns,
para amostra aos leitores, preferindo assuntos religiosos, pois a lista é
complexa; uma espécie de index:
A Bíblia completa; o Alcorão completo; A
Cidade de Deus, por Santo Agostinho; O Amor de Deus,
por São Bernardo[4]; As Confissões de
Santo Agostinho; A Imitação de Cristo,
original latino, com a tradução, em verso, de Corneille[5]; O Catecismo de
Montpellier, precedido da exposição da doutrina católica por Bossuet, e seguido
do comentário sobre o sermão de Jesus Cristo por Santo Agostinho; História
das Variações Protestantes, por Bossuet, Discurso sobre a história
universal, pelo mesmo; O Tratado do papa, por Demaistre,
precedido da política sagrada, também de Bossuet.
Diante desta relação de obras que - note-se bem - fazem parte integrante da
biblioteca positivista, o leitor perguntará certamente como nós: Mas que
incongruência é esta? A religião que não cuida da imortalidade, que nega a Deus
e ‘exclui irrevogavelmente todos os seus escravos’ adota os livros que conduzem
a Deus e desenvolvem as tendências espiritualistas do homem, como, entre
outros, a Imitação de Cristo?
Mas no gênero contra senso, ainda há mais e melhor.
Antes, porém, de o apresentar, mencionemos de passagem as festividades que
celebra a religião positivista.
1º de Janeiro - Festa da Humanidade; 19 de Janeiro - Nascimento de Augusto
Comte, e Festa de Rosália Boyer; 5 de Abril - Morte de Clotilde de Vaux; 14 de
Julho - A Revolução Francesa; 15 de Agosto - Festa da Mulher; 5 de
Setembro - Morte de Augusto Comte e comemoração de Sofia Bliaux; 8 de Outubro -
Festa de Clotilde e Augusto Comte[6];
12 de Outubro - Descoberta da América; 31 de Dezembro - Festa Geral dos Mortos
(11).
Além disso, o Apostolado Positivista no Brasil celebra as seguintes
‘comemorações nacionais’: 21 de Abril - Comemoração de Tiradentes; 3 de Maio -
Descoberta do Brasil e comemoração dos antecedentes portugueses e indígenas; 13
de Maio - Abolição da escravidão no Brasil; comemoração do concurso da raça
africana e glorificação de Toussaint Louverture; 7 de Setembro - Independência
do Brasil e glorificação de José Bonifácio; 15 de Novembro - Fundação da
República do Brasil e glorificação de Benjamim Constant.
Eis aqui ainda a lista de algumas iconografias que na igreja positivista são
vendidas: Humanidade, quadro de Decio Villares; Virgem
Sistina; Clotilde, quadro de Etex; Id., Esboço
materno; Id., Fotografias de autógrafos; Id. Seu
Túmulo (T. Sulmam); A. Comte, Seu túmulo (T.
Sulmam); Id. Fotografias de autógrafos; Id. Casa (10, M. le Prince), Sulman; Id. Busto
em gesso (C. Lagarrigue); Id. Medalhão em gesso; Id.
Quadro de Etx; Id. Heliogravura Dujardin; Id. No
leito da morte; Id. Seu nascimento (Eduardo Sá); Id.
Sua morte (Id.); Templo da Humanidade, Antiga sala; Id.
4º Centenário de Descartes; Id. Inauguração da nave; Id.
Vista exterior; Id. Vista interior (diversas); Id.
Diretores junto ao altar-mór; Id. Um casamento positivista; Id.
Medalha de bronze; Id. Fachada definitiva; Id. Sala
Daniel Encontre; Id. Sala Ternaux; Id. Sala Thurot; Id. Sala
Jorge Lagarride; Id. Sala Francisco Eloi; Id.
Fotografias dos 14 altares (uma); Clotilde no leito de morte;
Cartões postais de assuntos religiosos; Retratos e túmulos de grandes
homens: Santo Ambrósio, Santa Teresa de Jesus, Jesus, Descartes,
Cromwell, Heloisa, Dante e Beatriz, Danton, Tiradentes, José Bonifácio,
Benjamim Constant, J. Lagarrigue, etc.
*
Passemos agora a examinar algumas
máximas positivistas. Tomemos para modelo as seguintes:
Fórmula sagrada:
“O amor por princípio, a
ordem por base, o progresso por fim.”
Máximas relativas ao Amor:
“Que prazeres podem exceder aos
da dedicação? Não há nada mal no mundo senão
amar.
Cansamo-nos de pensar, e mesmo
de agir; jamais nos cansamos de amar.”
Lei fundamental da Ordem
Humana:
“Os vivos são, e demais em mais,
governados pelos mortos.”
Máxima relativa à Existência
pessoal:
“O homem torna-se cada vez mais
religioso.
A oração é a base da cultura moral,
intelectual e mesmo prática.”[7]
Outras máximas:
“Os maus precisam muitas vezes de
mais compaixão do que os bons.”
“O casamento tem por fim o
aperfeiçoamento mútuo dos cônjuges.”
“Nenhuma sociedade pode
conservar-se e desenvolver-se sem um sacerdócio qualquer.”
“Não há verdadeiro sacerdócio,
sem que o padre seja médico, nem verdadeiro médico que não seja padre; porque não se pode curar da
alma sem curar do corpo, e reciprocamente.”
“Todas as funções do sacerdócio
resultam de sua missão do ensino; público e gratuito; do dogma.”
Aí têm os leitores, respigadas
sumariamente, algumas das máximas fundamentais da religião da humanidade. Nelas
se vê a incoerência do que quer a fortiori deter-se nos
limites da matéria e dos sentidos, e é levado a falar da alma e a afirmar que “não
se pode curar da alma sem curar do corpo, e reciprocamente;” que proscreve
Deus e exalta ao mesmo tempo os benefícios da prece, etc.
No próximo artigo nos ocuparemos dos
últimos dias do transviado filósofo e dos fenômenos de vidência mediúnica que
com ele se deram.
[1] De sorte que,
suprimindo o Criador, o chefe do positivismo substituía a sua providência pela
dos “servidores teóricos e práticos da humanidade”, em cujo número se incluía ele
próprio!
No gênero das deposições, é a
mais audaciosa de que há notícia.
[2] La philosophie
positive, págs. 5.
[3] Vide Padre
Grubber, Auguste Comte, sa vie et sa doutrine.
[4] O apostolado fez
uma edição dessa obra em francês.
[5] São também
indicadas as línguas em que devem ser lidas certas obras.
[6] Nos anos bissextos, a comemoração é feita nos dias
anteriores, sendo o dia 31 de Dezembro consagrado à Festa das Mulheres Santas.
(Nota do Apostolado)
[7] Augusto Comte dizia, a respeito do alcance lógico da
oração: “O menino que reza dignamente exerce melhor seu aparelho meditativo do
que o orgulhoso algebrista que, baldo de ternura e de imaginação, não cultiva,
no fundo, senão o órgão da linguagem por meio de uma gíria, cujo bom emprego é
muito limitado.” (Por Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes.)
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