Cinzas do
meu cinzeiro...
Manuel Quintão
Reformador
(FEB) Março 1942
As
últimas carusmas (cinzas) aqui assopradas,
tocaram na teoria dos “clichés astrais”, tendente a explicar a realidade dos
fenômenos de vidência e premonição mediúnicas.
Citamos Flammarion em ‘La mort et son mystère’ e queremos hoje resumi-lo aqui, de paralelo
ao que a nós mesmo nos sucedeu e motiva esta larada (registro).
O caso, em síntese, é este:
Um advogado parisiense, em férias no
interior do país, afasta-se a tarde do seu hotel, embrenha-se
na floresta onde, transviado, depois de muito pervagar noite fechada, deparasse-lhe
a luzerna de uma hospedaria. Surpreso de tal encontro, mas fatigado e faminto,
resolve ali pernoitar.
Deram-lhe o último quarto de escuro
corredor e ele ao demanda-lo, sem saber porque, foi contando e gravando na memória
a respectiva numeração dos quartos, até chegar ao seu, que, por sinal, não era
numerado.
Esta circunstância, aliada à da existência
da própria hospedaria em sitio tão ermo, começou de lhe trabalhar no cérebro
sobressaltado.
Vagos temores de iminente perigo levaram-no
a examinar detidamente o aposento.
Certificando-se de que a porta não tinha
fechadura, mas simples e frágil taramela (trava, geralmente de madeira ou metal, que
gira presa a prego ou similar pregado em porta), refeitas quando não apenas presididas,
removeu pesado armário e descobriu um alçapão no assoalho. Ao levantar-lhe a
tampa, do porão lhe veio nauseante bafio (cheiro de mofo). No auge das horas
mais ou menos, deitou-se e quando, prostrado de fadiga entrou a modorrar,
sobreveio-lhe o tétrico pesadelo:
“Passos cautelosos no corredor,
forçamento da porta, entrada do casal de estalajadeiros. A mulher à frente,
alçando a candeia; o marido após, brandindo afiado facão de cozinha. Sem
dizerem palavra, aproximaram-se e de um golpe o degolaram... Depois, mulher
toma a candeia nos dentes e o levanta pelos pés enquanto o marido o faz pelas
axilas. Assim conduzido, sente-se baquear no lôbrego porão e tem a impressão de
chocar-se com um esqueleto humano.”
Aturdido, despertando em sobressalto, não
mais pode fechar os olhos. De manhã, pagou a estranha e fantástica aventura e pode,
enfim, regressar ao seu hotel.
*
De prever que tão singular episódio não
mais se lhe apagou da mente. Muito mais tarde,
no seu escritório de Paris, deparasse-lhe num jornal da cidade em que feriara (estar em férias) , a notícia das diligências
policiais em curso, concernentes ao desaparecimento recente, em circunstâncias
misteriosas, de um turista inglês. O homem fora visto a caminho da floresta e
as suspeitas de um crime recaiam nos proprietários da hospedaria. O casal
estava detido para averiguações e defendia-se alegando que, na noite do suposto
crime, a hospedaria tivera ocupados todos os quartos e que os respectivos ocupantes,
também depoentes, atestavam nada ter visto, além de que, não havia vestígio
algum de crime.
*
Diante disso, resolve-se o nosso
causídico a intervir no processo. Pediu para arguir separadamente o casal, em
audiência pública. Reproduziu a mulher os mínimos pormenores do seu pesadelo, a
começar pela categórica afirmativa da existência de um quarto não numerado e
omitido nos depoimentos; descreveu os móveis que o guarneciam, falou do porão
sinistro, do facão, da candeia, da maneira por que foi consumado o crime e, por
fim, da precedência de um esqueleto. Supondo-se traída pelo marido, a
estalajadeira tudo confessou e as conseguintes diligências acabaram aclarando
não um, porque dois crimes.
*
Dir-se-á então, que o "cliché" do
primeiro crime estava impregnado no ambiente e fora oniricamente (sonhadoramente) apreendido, ou "psicometrado"
pelo nosso sensitivo advogado.
*
O caso que conosco se deu e aqui vamos e
aqui vamos resumir, é diferente, parece-nos antes de mera intuição, ou
premonição.
Ei-lo: Inaugurara-se, havia pouco, as palestras
domingueiras na Federação, de regra feitas,
quando não apenas presididas, por algum de seus diretores.
Era domingo da nossa escala. As 15 horas
mais ou menos, tomamos o bonde de
Cascadura,
cujo trajeto se fazia, ao tempo, pelo Cais do Porto até a rua Camerino para
entrar na Avenida Passos.
Ao atingir a rua Escobar, na curva de S.
Cristovão, ensimesmado no tema da projetada elocução, eis-nos de súbito
despertado pela visão de um vulto que se projetava à frente do veículo.
Atônito, mãos frias, tivemos a impressão de que o bonde precipitava a marcha, e
ainda nos voltamos para ver o quadro.
Nada vimos, porém, e diante da
impassibilidade dos passageiros, sorrimos da ilusão e invocamos ridículos
temores quando em viagens a cavalo pelos sertões mineiros, soía (era costumeiro) entrevermos
jagunços de arma aperrada (engatilhada), ocultos nos moitais (arbustos) da estrada.
Alucinação, fadiga nervosa, lérias (conversa fiada)...
*
Em chegando à Federação, pois que nos propuséramos
discorrer sobre sugestão, auto sugestão, magnetismo e alucinação, entretivemos
o auditório citando fatos e, entre eles, o que acabava de ocorrer. O que não
podíamos então presumir é que o fato estivesse a pique de consumar-se e
resultasse algum dia em cinzas do meu cinzeiro.
De fato, ao regressar a penates (ao lar) pela mesma linha
de Cascadura e quiçá no mesmo bonde, ou pelo menos com o mesmo motorneiro, na
curva de S. Cristovão - Escobar, vimos romper na sombra da noite, escura e
chuvosa um vulto que parecia tentar cortar a frente do bonde para tomá-lo.
Tivemos a sensação do esmagamento brutal e vimos o motorneiro nervoso abrir o
regulador e dar ao bonde, num arranco, velocidade vertiginosa até ao largo da
Cancela. A cena foi rápida e cremos que despercebida aos demais passageiros.
Nós mesmo, ainda é desconhecido do grande público, mesmo
de
positivo e concreto, nada pudemos lobrigar (entrever) na fugacidade do tempo e na caligem
(escuridão) da noite. Seríamos
o único a notar o nervosismo do motorneiro, cuja fisionomia guardamos nítida, pela
singularidade dos bigodes e bastas suíças. Chegados ao ponto do "Jockey
Club", após rápida e discreta confabulação com o Fiscal, tomou este a
direção do carro. Ao chegar à casa, após de muito conjeturarmos, adormecemos
convicto de uma simples coincidência alucinatória, apenas notável pela circunstância
de repetir-se precisamente no mesmo local e com intervalo maior de poucas
horas.
Seria, assim, mais urna coincidência -
palavra mirífica que tem a virtude de contentar meio mundo. Mas a verdade é que,
no dia seguinte, os jornais registravam o encontro de um homem morto, no local
assinalado, com o crâneo partido e fraturas internas que denunciavam violento
traumatismo. E a polícia oscilava entre as hipóteses de um crime ou de simples
acidente.
*
Esse motorneiro, nós o vimos mais tarde no
seu posto, porém noutra linha. Já não tinha, tampouco, o bigode e as suíças.
Também ele, e só ele, poderia confirmar o fato. Confirmar e nunca explicar,
porque isso o não fazemos nós. Nós que vimos o fato, antes e depois.
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