Maria de Magdala
16,9 Tendo Jesus ressuscitado de manhã, no
primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria de Magdala, de quem
tinha expulsado sete obsessores.
Para
Mc (16,9)
- Maria de Magdala - leiamos “Boa
Nova”, de Humberto de Campos por Chico Xavier, onde coletamos a história dessa
piedosa mulher que encarnou ao tempo que
Jesus fazia sua trajetória de luz sobre a Terra:
“Maria de
Magdala ouvira
as pregações do Evangelho do Reino, não longe da vila principesca onde vivia
entregue a prazeres, em companhia de patrícios romanos, e tomara-se de
admiração profunda pelo Messias.
Que novo amor era aquele apregoada
aos pescadores singelos por lábios tão divinos? Até ali, caminhara ela sobre as
rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de condenáveis alegrias. No
entanto, seu coração estava sequioso e em desalento. Jovem e formosa,
emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza lhe escravizara
aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas seu espírito tinha
fome de amor. O profeta nazareno havia plantado em sua alma novos pensamentos.
Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades da vida lhe
traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas voluptuosas não
encontravam eco em seu íntimo, os enfeites romanos de sua habitação se tornaram
áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não compreendesse ainda o que
pleiteava o profeta desconhecido. Entretanto, seu convite amoroso parecia
ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus chamava-lhe nas fibras
para uma vida nova.
Decorrida uma noite de grandes
meditações e antes do famoso banquete em Naim, onde ela ungiria publicamente os
pés de Jesus com os bálsamos perfumados de seu afeto, notou-se que uma barca
tranquila conduzia a pecadora a Cafarnaum. Dispuseram-se a procurar o Messias,
após muitas hesitações. Como a receberia o Senhor, na residência de Simão? Seus conterrâneos nunca lhe haviam perdoado o
abandono do lar e a vida de aventuras. Para todos, ela era a mulher perdida que
teria de encontrar a lapidação na praça pública. Sua consciência, porém, lhe
pedia que fosse. Jesus tratava a multidão com especial carinho. Jamais lhe
observara qualquer expressão de desprezo para com a numerosas mulheres de vida
equívoca que o cercavam. Além disso, desejaria trabalhar na execução de suas
idéias puras e redentoras. Propunha-se a amar, como Jesus amava, sentir com os
seus sentimentos sublimes. Se necessário, saberia renunciar a tudo. Que lhe
valiam as jóias raras, os banquetes suntuosos, se, ao fim de tudo isso,
conservava a sua sede de amor?!...
Envolvida por esses pensamentos
profundos, Maria de Magdala penetrou o umbral da humilde residência de Simão
Pedro, onde Jesus parecia esperá-la, tal a bondade com que a recebeu num grande
sorriso. A recém-chegada sentou-se com indefinível emoção a estrangular-lhe o
peito.
Vencendo, porém, as suas mais fortes
impressões, assim falou, em voz súplice, feitas as primeiras saudações:
- Senhor, ouvi a vossa palavra
consoladora e venho ao vosso encontro!... Tendes a clarividência do céu e
podeis adivinhar como tenho vivido! Sou uma filha do pecado. Todos me condenam.
Entretanto, Mestre, observai como tenho sede do verdadeiro amor!... Minha
existência, como todos os prazeres, tem sido estéril e amargurada...
As primeiras lágrimas lhe
borbulharam dos olhos, enquanto Jesus a contemplava, com bondade infinita. Ela,
porém, continuou:
Ouvi o vosso amoroso convite ao
Evangelho! Desejava ser das vossas ovelhas; mas, será que Deus me aceitaria?
O Profeta nazareno fitou-a,
enternecido, sondando as profundezas de seu pensamento, e respondeu, bondoso:
-Maria, levanta os olhos para o céu e
regozija-te no caminho, porque escutaste a Boa Nova do reino e Deus te abençoa
as alegrias! Acaso,
poderias pensar que alguém no mundo estivesse condenado ao pecado eterna? Onde,
então, o amor de Nosso Pai? Nunca viste
a primavera dar flores sobre uma casa em ruínas? As ruínas são as criaturas
humanas; porém, as flores são as esperanças em Deus. Sobre todas as falências e
desventuras próprias do homem, as bênçãos paternais de Deus descem e chamam.
Sentes hoje esse novo Sol a iluminar-te o destino! Caminha, agora, sob a luz,
porque o amor cobre a multidão dos pecados.
A pecadora de Magdala escutava o
Mestre, bebendo-lhe as palavras. Homem algum havia falado assim à sua alma
incompreendida. Os mais levianos lhe pervertiam as boas inclinações, os
aparentemente virtuosos a desprezavam sem piedade. Engolfada em pensamentos
confortadores e ouvindo as referências de Jesus ao amor, Maria acentuou,
levemente:
No entanto, Senhor, tenho amado e
tenho sede de amor!...
-Sim - redarguiu Jesus - tua sede é real. O mundo viciou todas as fontes de redenção e é imprescindível
compreenda que em suas sendas a virtude tem de marchar por uma porta muito
estreita. Geralmente, um homem deseja ser bom como os outros, ou honesto
como os demais, olvidando que o caminho onde todos passam é de fácil acesso e
de marcha sem edificações. A virtude no mundo foi transformada na porta larga
da conveniência própria. Há os que amam os que lhes pertencem ao círculo
pessoal, os que são sinceros com os seus amigos, os que defendem seus
familiares, os que adoram os deuses do favor. O que verdadeiramente ama, porém,
conhece a renúncia suprema a todos os bens do mundo e vive feliz, na sua senda
de trabalhos para o difícil acesso às
luzes da redenção. O amor sincero não exige satisfações passageiras, que se
extinguem no mundo com a primeira ilusão; trabalha sempre, sem amargura e sem
ambição, com os júbilos do sacrifício.
Só o amor que renuncia sabe caminhar para a vida suprema!...
Maria o escutava, embevecida.
Ansiosa por compreender inteiramente aqueles ensinos novos, interrogou
atenciosamente:
-Só o amor pelo sacrifício poderá
saciar a sede do coração?
Jesus teve um gesto afirmativo e
continuou:
-Somente
o sacrifício contém o divino mistério da vida. Viver bem é saber imolar-se. Acreditas
que o mundo pudesse manter o equilíbrio próprio tão-só com os caprichos
antagônicos e por vezes criminosos dos que se elevam à galeria dos
triunfadores? Toda luz humana vem do
coração experiente e brando dos que foram sacrificados. Um guerreiro coberto de
louros ergue os seus gritos de vitória
sobre os cadáveres que juncam o chão; mas, apenas os que tombaram fazem
bastante silêncio, para que se ouça no mundo a mensagem de Deus. O primeiro
pode fazer a experiência para um dia; os segundos constroem a estrada
definitiva na eternidade. Na tua condição de mulher, já pensaste no que seria o
mundo sem as mães exterminadas no silêncio e no sacrifício? Não são elas as cultivadoras do jardim da
vida, onde os homens travam a batalha?!... Muitas vezes, o campo enflorescido
se cobre de lama e sangue; entretanto, na sua tarefa silenciosa, os corações
maternais não desesperam e reedificam o jardim da vida, imitando a Providência
Divina, que espalha sobre um cemitério os lírios perfumados de seu amor ...
Maria de Magdala, ouvindo aquelas
advertências, começou a chorar, a sentir no íntimo o deserto da mulher sem
filhos. Por fim, exclamou:
-Desgraçada de mim, Senhor, que não
poderei ser mãe!...
Então, atraindo-a brandamente a si,
o Mestre acrescentou:
-E qual das mães será maior aos olhos de Deus? A que se devotou somente aos filhos de sua
carne, ou a que consagrou, pelo espírito, aos filhos das outras mães?
Aquela
interrogação pareceu despertá-la para meditações mais profundas. Maria
sentiu-se amparada por uma energia interior diferente, que até então
desconhecera. A palavra de Jesus lhe
honrava o espírito; convidava-a a ser mãe de seus irmãos em humanidade,
aquinhoando-os com os bens supremos das mais elevadas virtudes da vida.
Experimentando radiosa felicidade em seu mundo íntimo, contemplou o Messias com
os olhos nevoados de lágrimas e, no êxtase de sua imensa alegria, murmurou
comovidamente:
-Senhor, doravante renunciarei a
todos os prazeres transitórios do mundo, para adquirir o amor celestial que me
ensinastes! ... Acolherei como filhas as minhas irmãs no sofrimento, procurarei
os infortunados para aliviar-lhes as feridas do coração, estarei com os
aleijados e leprosos...
Nesse instante, Simão Pedro passou
pelo aposento, demandando o interior, e a observou com certa estranheza. A
convertida de Magdala lhe sentiu o olhar glacial, quase denotando desprezo, e,
já receiosa de um dia perder a convivência do Mestre, perguntou com interesse:
-Senhor, quando partirdes deste
mundo, como ficaremos?
Jesus
compreendeu o motivo e o alcance de sua palavra e esclareceu:
-Certamente
que partirei, mas estaremos eternamente reunidos em espírito. Quanto ao
futuro, com o infinito de suas perspectivas, é necessário que cada um tome sua
cruz, em busca da porta estreita da redenção, colocando acima de tudo a
fidelidade a Deus e, em segundo lugar, a perfeita confiança em si mesmo.
Observando que Maria, ainda opressa pelo olhar estranho de Simão Pedro, se
preparava a regressar, o Mestre lhe sorriu com bondade e disse:
-Vai,
Maria!... Sacrifica-te e ama sempre.
Longo é o caminho, difícil a jornada, estreita a porta; mas, a fé remove os
obstáculos... Nada temas: é preciso crer somente!
Mais tarde, depois de sua gloriosa
visão do Cristo ressuscitado, Maria de Magdala voltou de Jesusalém para a
Galiléia, seguindo os passos dos companheiros queridos.
A mensagem da ressurreição espalhara
uma alegria infinita.
Após algum tempo, quando os
apóstolos e seguidores do Messias procuravam reviver o passado junto ao
Tiberíades, os discípulos diretos do Senhor abandonaram a região, a serviço da
Boa Nova. Ao disporem-se os dois últimos companheiros a partir em definitivo
para Jerusalém, Maria de Magdala, temendo a solidão da saudade, rogou
fervorosamente lhe permitissem acompanhá-los à cidade dos profetas; ambos, no
entanto, se negaram a anuir aos seus desejos. Temiam-lhe o pretérito de
pecadora, não confiavam em seu coração de mulher. Maria compreendeu, mas
lembrou-se do Mestre e resignou-se.
Humilde e sozinha, resistiu a todas as propostas condenáveis que a
solicitavam para uma nova queda de sentimentos. Sem recursos para viver,
trabalhou pela própria manutenção, em Magdala e Dalmanuta. Foi forte nas horas
mais ásperas, alegre nos sofrimentos mais escabrosos, fiel a Deus nos instantes
escuros e pungentes. De vez em quando ia as sinagogas, desejosa de cultivar a
lição de Jesus; mas as aldeias da Galiléia estavam novamente subjugadas pela
intransigência do judaísmo. Ela compreendeu que palmilhava agora o caminho
estreito, onde ia só, com a sua confiança em Jesus. Por vezes, chorava de
saudade, quando passeava no silêncio da praia, recordando a presença do
Messias. As aves do lago, ao crepúsculo, vinham pousar, como outrora, nas
alcaparreiras mais próximas; o horizonte oferecia, como sempre, o seu banquete
de luz. Ela contemplava as ondas mansas e lhes confiava sua meditações.
Certo dia, um grupo de leprosos veio
a Dalmanuta. Procediam da Idumeia aqueles infelizes, cansados e tristes, em
supremo abandono. Perguntaram por Jesus Nazareno, mas todas as portas se lhes
fechavam. Maria foi ter com eles e, sentindo-se isolada, com amplo direito de
empregar a sua liberdade, reuniu-os sob
as árvores da praia e lhes transmitiu as palavras de Jesus, enchendo-lhes os
corações das claridades do Evangelho. As autoridades locais, entretanto,
ordenaram a expulsão imediata dos
enfermos. A grande convertida percebeu tamanha alegria no semblante dos
infortunados, em face de suas fraternas revelações a respeito das promessas do Senhor, que se
pôs em marcha para Jerusalém, na
companhia deles. Todo o grupo passou a noite ao relento, mas sentia-se que os
júbilos do Reino de Deus agora os dominavam. Todos se interessavam pelas
descrições de Maria, devoravam-lhe as exortações, contagiados de sua alegria e
de sua fé. Chegados à cidade, foram conduzidos ao vale dos leprosos, que ficava
distante, onde Madalena penetrou com espontaneidade de coração. Seu espírito
recordava as lições do Messias e uma coragem indefinível se assenhoreara de sua
alma. Dali em diante, todas as tardes, a mensageira do Evangelho reunia a turba
de seus novos amigos e lhes dizia o ensinamento de Jesus. Rostos ulcerados
enchiam-se de alegria, olhos sombrios e tristes tocavam-se de nova luz. Maria
lhes explicava que Jesus havia exemplificado o bem até a morte, ensinando que
todos os seus discípulos deviam ter ânimo para vencer o mundo. Os agonizantes
arrastavam-se até junto dela e lhe beijavam a túnica singela. A filha de
Magdala, lembrando o amor do Mestre, tomava-os em seus braços fraternos e
carinhosos.
Em breve tempo, sua epiderme
apresentava, igualmente, manchas violáceas e tristes. Ela compreendeu a sua
nova situação e recordou a recomendação do Messias de que somente sabiam viver
os que sabiam imolar-se. E experimentou grande gozo, por haver levado aos seus
companheiros de dor uma migalha de esperança. Desde a sua chegada, em todo o
vale se falava daquele Reino de Deus que a criatura devia edificar no próprio
coração. Os moribundos esperavam a morte com um sorriso ditoso nos lábios, os
que a lepra deformara ou abatera guardavam bom ânimo nas fibras mais
sensíveis. Sentindo-se ao termo de sua
tarefa meritória, Maria de Magdala desejou rever antigas afeições de seu
círculo pessoal, que se encontrava, em Éfeso.
Lá estavam João e Maria, além de outros companheiros dos júbilos
cristãos. Adivinhara que as suas últimas dores terrestres vinham muito
próximas; então, deliberou pôr em prática seu humilde desejo.
Nas despedidas, seus companheiros de
infortúnio material vinham suplicar-lhe os derradeiros conselhos e recordações.
Envolvendo-os no seu carinho, a emissária do Evangelho lhes dizia apenas:
-Jesus deseja intensamente que nos amemos uns aos outros e que participemos de
suas divinas esperanças, na mais extrema lealdade a Deus!...
Dentre aqueles doentes, os que ainda
se equilibravam pelos caminhos lhe traziam o fruto das esmolas escassas e as
crianças abandonadas vinham beijar-lhe
as mãos.
Na fortaleza de sua fé, a
ex-pecadora abandonou o vale, através das estradas ásperas, afastando-se de
misérrimas choupanas. A peregrinação foi-lhe difícil e angustiosa. Para
satisfazer aos seus intentos recorreu à caridade, sofreu penosas humilhações,
submeteu-se ao sacrifício. Observando as feridas pustulentas que substituíam
sua antiga beleza, alegrava-se em reconhecer que seu espírito não tinha motivos
para lamentações. Jesus a esperava e sua
alma era fiel.
Realizada a sua aspiração, por entre
dificuldades infinitas, Maria achou-se, um dia, às portas da cidade; mas,
invencível abatimento lhe dominava os centros de força física. No justo momento
se suas efusões afetuosas, quando o casario de Éfeso se lhe desdobrava à vista,
seu corpo alquebrado negou-se a caminhar. Modesta família de cristãos do
subúrbio recolheu-a a uma tenda humilde, caridosamente.
Madalena pôde ainda rever amizades
bem caras, consoante seus desejos. Entretanto, por largos dias de padecimentos
debateu-se entre a vida e a morte.
Uma noite, atingiram o auge as
profundas dores que sentia. Sua alma estava iluminada por brandas
reminiscências e, não obstante seus olhos se acharem selados pelas pálpebras
intumescidas, via com os olhos da imaginação o lago querido, os companheiros da
fé, o Mestre bem-amado. Seu espírito parecia transpor as fronteiras da
eternidade radiosa. De minuto a minuto, ouvia-se-lhe um gemido surdo, enquanto
os irmãos de crença lhe rodeavam o leito de dor, com as preces sinceras de seus
corações amigos e desvelados. Em dado instante, observou-se que seu peito não
mais arfava. Maria, no entanto, experimentava consoladora sensação de alívio.
Sentia-se sob as árvores de Cafarnaum e esperava o Messias. As aves cantavam
nos ramos próximos e as ondas sussurantes vinham beijar-lhe os pés. Foi quando
viu Jesus aproximar-se, mais belo que nunca. Seu olhar tinha o reflexo do céu e
o semblante trazia um júbilo indefinível, O Mestre estendeu-lhe as mãos e ela
se prosternou, exclamando, como antigamente:
-Senhor!...
Jesus recolheu-a brandamente nos
braços e murmurou:
-Maria,
já passaste a porta estreita!... Amaste muito!
Vem! Eu te espero aqui!
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