quarta-feira, 29 de maio de 2019

O médium Mozart



O médium Mozart
por Canuto Abreu
Reformador (FEB) Novembro 1924

Minha atenção foi chamada para o médium MOZART por um médico católico, leitor da Vanguarda. Li os números atrasados desse vespertino em casa dum confrade federalista e, conquanto admirados, ficamos ele e eu desde logo convencidos da presença dum grande médium curador. Divergíamos num ponto, o qual, por transcendente, não podia ser resolvido por nenhum de nós. Ele dizia que todo médium tem igual faculdade de curar, pois ninguém fica sarado fora de tempo. Eu afirmava que esse princípio estava sujeito a muitas restrições, entre elas a do adiantamento moral do mediam. Quanto mais evolvido, mais poderes de curar possuía. Se um doente não sentisse alívio por um médium, poderia senti-lo em contato com outro. No fundo estávamos ambos de acordo: quem cura não é o médium.

Sofrendo duma psoríase rebelde, há mais de dez anos, minha companheira tem empregado os recursos da terapêutica oficial e espírita. Já batemos à porta de quase todos os médiuns do Rio, do Estado do Rio e de S. Paulo. Somente dois deles fizeram um diagnóstico aproximado. Os demais, ou nada disseram sobre a moléstia em si mesma, ou disseram coisas inaceitáveis. Qual seria a opinião do novo médium?

Na Praia Formosa, às cinco e meia horas dum domingo, tomamos o trem para Recreio. Não tivéssemos o cuidado de falar ao chefe de estação na véspera e teríamos de viajar em pé. Em uma verdadeira romaria de estropiados e de enfermos o que aquele trem levava. Onde tanta gente iria ser abrigada? Já estavam em Recreio, segundo informações, mais de três mil forasteiros! Por isso, ou talvez por inspiração, descemos em Providência, a duas horas de viagem de Recreio, e. no dia seguinte, pelas nove horas e meia, estávamos diante do casebre onde se hospedava o reputado médium. Aí, no meio do povo, gente simples, camponeses e aldeões, passei a escutar os relatos de curas e fatos. As perguntas eram feitas por um moço que viajara conosco de Providência a Recreio e se dizia representante, em Porto Novo, dum conhecido jornal do Rio. Era um rapaz meio pretensioso, meio tagarela e disposto a pôr em pratos limpos a tal histeria dos milagres. No seio do povo simples, um representante de jornal tem sempre umas atitudes de águia. A imprensa, numa sociedade inculta, é como o mestre-escola na aldeia. O jovem repórter era cercado, informado, apontado. Sentindo-se superior, insuflado pelas atenções a que talvez não estava acostumado, o rapaz principiou catedraticamente, pastoralmente, a elucidar aquela pobre gente. A prestidigitação tem coisas admiráveis. A fé remove montanha. Não queria com isso dizer que o Sr. Mozart era um charlatão. Estava ali para ver tudo e dizer o que visse. Confessava, porém, a sua absoluta descrença em qualquer poder sobrenatural.

Enquanto o ouvia, percebi que era possível ganhar o interior da modesta habitação pela portinha de madeira lascada, que se abria no muro do quintal e por onde dois homens espiavam para dentro. De fato, não sem alguns protestos, consegui penetrar e abrir em cheio onde queria, pois ali estava um moço alto, moreno, simpático, dando passes num aleijadinho. Não foi preciso indagar se aquele índio era o Sr. Mozart. Destacava-se tanto do comum dos homens pelo olhar e pelo gesto que o mais desprevenido dos mortais o distinguiria entre mil. No quintal havia umas cem pessoas que se acotovelavam e queriam falar ao médium. Dentro de casa o aperto era maior. Disputado ao mesmo tempo por todos, ele dizia em tom firme:

- Não posso trabalhar assim. Calma! Paciência! Os que quiserem ser os primeiros serão os últimos, pois os Espíritos curadores se aproximam dos resignados e tranquilos e se afastam dos egoístas e apressados. Todos serão atendidos a seu tempo. Vieram para curar-se e, se Deus quiser, serão melhorados.

A turba não tem responsabilidade. O trabalho do médium era sempre interrompido. Ele então repetia suavemente:

- Estamos perdendo tempo. A falta de compostura mental impede os trabalhos espíritas. Sem vibração e harmonia nada se pode fazer.

Estabelecia-se o confrangimento, Algumas mulheres choravam. Alguns homens lamentavam o aperto. Outros se queixavam. Há tantos dias à espera!.. Mozart encarava a multidão e, apontando alguns no meio dela, dizia: - Vão almoçar e voltem a uma hora. Serão atendidos.

Mas qual! Ninguém arredava um passo. Pelo contrário, cada vez entrava mais gente. Qualquer outro médium talvez se desesperasse. Mozart, porém, estava impassível, como a boia salvadora no mar tempestuoso. Pedia ao povo que o esperasse. Ia Já dentro acalmar a agitação de ânimos.  Acompanhei-o. Lá, foi agarrado como caça rara. Súplicas de mulheres, pedidos de homens, choros de crianças, um pequeno inferno!

- Larguem-me, senhoras! É impossível atender ao mesmo tempo a todos. O melhor critério é deixar que o Espírito procure aquele que estiver mais resignado e calmo. Os que só precisarem de remédio, deixem nome, idade, residência e selo para resposta. Fiquem os que necessitam de passes e os paralíticos. Para o Espirito não é necessário me digam o que sofrem. Calma, senhores!

Perguntava eu a mim mesmo como se poderia estabelecer método naquela desordem e nenhuma solução me ocorria. Dois homens recolhiam os nomes dos doentes. Cada papel tinha um número. A minha vista caiu sobre o número 96.512 e senti o gelo do desânimo tocar-me a nuca. Arrepiei-me. Como poderia um homem, só, atender a tanta gente? Cada pessoa que se aproximava trazia dez, vinte, não sei quantos pedidos de receita!

Mozart mandou distribuir a Vanguarda para entreter o povo. Depois, resolveu ele próprio fazer a distribuição, dizendo!

- Enquanto não sou assistido, vou bancar o vendedor de jornal. Quem quer a Vanguarda. Custa cem reis.

Vou fazer uma fortuna como todos os vendedores de jornais... Distribuiu umas vinte folhas. Voltou depois ao quintal. De passagem pela sala de jantar, abriu a porta duma alcova e disso lá para dentro:

Calma! O Espírito que lhe vai curar ainda não chegou, mas a hora se aproxima.
Alguém o segurou pelo braço. Era um confrade. Pediu-lhe para atender a um obsidiado. Mozart prometeu começar os trabalhos logo que chegassem os Espíritos curadores.

- Por enquanto, só há Espíritos sofredores.

E caminhou para o quintal. Junto a janela estava o repórter. Mozart estaca diante dele, coloca-lhe ao ombro a forte mão de atleta, respira profundamente e diz-lhe:  - Meu pobre materialista! Como é triste ser-se cego no meio da luz! Sabe o irmão o que é estar atuado?

- !?!

- É viver num ambiente de pensamentos maus, é viver mal acompanhado. O irmão sabe quem está neste momento a seu lado?

- ???

Mozart disse-lhe alguma coisa ao ouvido. O moço ficou perturbado, pálido e mudo.

- Meu irmão, quando relatar o que viu, procure dizer a verdade.

E seguiu para o quintal.

Quem lhe havia dito que era um repórter. Ignoro. Talvez um Espírito. O que sei é que nunca mais vi tal moço. Penso que tomou o primeiro trem...  

No quintal, deparou com uma senhora estrábica e disse-lhe apontando um banco na saleta de jantar:

-Sente-se ali; vou curar o seu estrabismo.

No banco estava um moço magro, doente. Era um caso de tabes dorsalis. Esta afecção caracteriza-se clinicamente pela incordenação motora, pelas perturbações da motilidade. O moço era incapaz de permanecer em pé sem apoio e não andava coordenadamente. A distinta senhora, estrábica que também era perseguida, sentou-se a seu lado e passou a ser tratada por Mozart. Subitamente, sem ultimar o tratamento iniciado, este voltou-se para o moço e entrou a dar-lhe passes rápidos pelo corpo. Era de comover a alegria de que foi possuído o doente ao ver-se tão inesperadamente sob a ação curadora do médium. Quando Mozart, após meia dúzia de passes longitudinais, lhe ordenou se levantasse, foi em vão que o tentou. O médium meteu os joelhos do moço entre suas pernas, uniu-as bem e, segurando-lhe as mãos repetiu a ordem e o ajudou a erguer-se. Correu pela sala a emoção. O homem, que cinco minutos antes era incapaz de permanecer em pé sem forte apoio, agora, ali, estava só em suas fracas pernas. Obedecendo ao médium, andou, passos ainda trôpegos, mas resistentes. Sua digníssima esposa, sua dedicadíssima companheira, encostada a parede, chorava aquele choro eloquente e comunicativo que só as almas boas podem devidamente apreciar. O moço, sorrindo e soluçando, encaminhou-se para o quintal, onde fez um pouco de ginástica auxiliado por Mozart. Em seguida, ficou meia hora sentado ao sol, costas nuas. Aproximei-me da senhora sua esposa e, com atitude de jornalista, pedi-lhe o nome e residência.

- Mas não me conhece?

Fixei-lhe as faces tristes, lavadas de lágrimas. Meu Deus! Uma conterrânea, companheira de infância! Aquele moço, desfigurado pela dor, um amigo antigo! Viera de S. Paulo vencendo mil dificuldades para ser tratado. Os médicos haviam perdido toda esperança...

No quintal, novo “pátio dos milagres”, coxos, estropiados, paralíticos, surdos, mudos, leprosos, cegos... sob um sol causticante, aguardavam o precioso momento de serem curados- Mozart dirigiu-se ao mais pobre, tão pobre que nunca tivera nunca dinheiro para comprar muletas e por isso se arrastava pelo chão, como jacaré:

- Meu irmão, que sente o senhor? Como chegou a esse estado?

- Sou coxo, sim senhor.

- Mas não vejo motivo para rastejar. Porque não usa muletas?

- Custa caro, sim senhor, disse o pobrezinho, admirado e triste.

- Caro? Mas não encontrou uma alma caridosa que lhe desse um par de muletas? Onde mora? Quando chegou?

- Campo Limpo, sim senhor. Vim pela estrada de rodagem... pousei no mato, cheguei de manhãzinha...

- Pobre amigo! Arrastando-se pela estrada fora tantas léguas! Meu Deus, perdão para tanta desumanidade! Meu amigo vai ficar melhor. Vai andar algum tempo de muletas. Escolheremos depois as que lhe convierem. No meu quarto há algumas que ficaram como lembrança.

Abaixou-se, ergueu nos seus braços o mendigo, sentou-o numa tora de madeira, endireitou- lhe o mais possível as pernas, deu-lhe passes e orou em silencio. Um menino de nove anos, corcunda, claudicante, aproximou-se e segurou a perna do médium. Era um sofredor. Mozart deitou-lhe aquele forte olhar e tremeram-lhe os lábios. Acocorou-se, falou-lhe de mansinho à altura da face, endireitou-lhe a perna torta e, erguendo-se, ordenou ao pequeno andasse direito, sem claudicar. E o menino andou. Mas era um olhar viciado. Mozart agarrou-o pelas pernas, pô-lo de cabeça para baixo e fê-lo passar por pêndulo alguns instantes. Esta ginástica arrancava berros da criança. Mas, quando se vi livre das tenazes do atleta, quase não mancava. Deixando-o entregue à alegria materna, Mozart, pegou uma criança de colo, endireitou-lhe as perninhas e disse à mãe que procurasse um médico para colocar um aparelho durante alguns dias.

Moro no Rio. Que médico devo procurar?

O Dr. X, disse ele após um minuto de concentração.

Voltando-se para um velho paralítico, que usava muletas de acajú com pontas
niqueladas e sobraços (apoios) de veludo, disse-lhe firmemente, olhando-o com aquele poderoso olhar indu:

- Largue essas muletas, meu irmão!

Um momento de hesitação para o paralítico. Como havia de largar aquilo que o amparava? Quanta coisa teria atravessado o pensamento desse homem naquele instante! A queda talvez fosse o menos...

- Largue as muletas e tenha fé! Porque hesita?

Mudo, estupefato, o pobre homem não fazia gesto algum. Então Mozart, pedindo-lhe licença, tirou-lhe as muletas. O doente, sem apoio, vacilou como ébrio. Mozart estendeu-lhe as mãos por sobre a cabeça e o equilíbrio restabeleceu-se.

- Pedro vacilou e ia afogando-se. Mas Jesus estava perto e salvou-o. Ele também o salvará, meu irmão se o senhor tiver um pouco de fé. Ande. Eu quero que ande! Eu o ampararei se cair, mas não cairá.

Com esforço, o velho moveu uma perna, depois outra.

- Ande mais! O senhor não cairá!

E o velho principiou a andar. A meu lado, uma senhora, que rendia graças a Deus, de minuto em minuto, e que orava sempre nesses momentos solenes, disse em meia voz: “Teve fé e sarou, ai! meu rico Senhor!” De fato, esse homem, que não queria largar as muletas de acaju subiu pouco depois sem apoio de coisa alguma a escada íngreme, cavada na terra da colina. Diante do povo comovido. Mozart explicou:

Meus irmãos, não há milagre. Este irmão tinha um entorpecimento de nervos e Jesus permitiu a elasticidade nervosa se restabelecesse. É mais um trabalho do espaço. Rendamos graças a Deus.

O velho partiu no trem do dia seguinte, levando apenas bengala. Entre as muletas, que existem no Recreio, no Grupo Espirita, os curiosos encontrarão um par, pintadas de acaju com pontas de níquel e apoios de veludo. São as muletas do velho, cuja cura eu vi.

Mozart penetrou novamente o interior da casa. Acompanhei-o. Na casinha, dirigi-pela vez primeira a palavra. Vendo-se diante dum confrade, que se dizia da Federação Espírita Brasileira, deu-me um afetuoso aperto de mão e, indagando onde eu me achava hospedado e o que fora fazer a Recreio, disse-me que à noite iria visitar-me e receitar para minha mulher. Desde então fui um constante assistente de suas curas. Acompanhei-o por toda parte e tornei-me depositária de sua generosa e fraternal amizade. Posso, portanto, afirmar que ele é bem o grande médium, que todos proclamam.  

Aos trinta e dois anos de idade, cheio de vida, de energia e de talento enquanto outros moços de menos vigor e recurso procuram a orgia dos teatros e dos casinos, enchendo-se de responsabilidades, ele passa a vida numa aldeia, trabalhando vinte horas por dia, auscultando a miséria, a desgraça, o sofrimento, a dor do próximo e aliviando-o,  em nome de Deus. E, em paga, recebe o salário do mártir.


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