domingo, 3 de março de 2019

A Paz


A Paz
por Angel Aquarod
Reformador (FEB)         1925

            O de paz é o estado por que mais anseiam os homens que, cansados das lutas da vida, andam sempre em busca de repouso para suas almas. Pela paz, que eles sabem os espera nos cumes da espiritualidade, aspiram todos os Espíritos a cuja frente brilha o foco de luz que lhe ilumina o caminho a percorrer, demandando o ideal da perfeição.

            É altamente cristão o ideal de paz. De modo muito especial o Cristo o infundiu na alma de seus discípulos: “A paz seja entre vós”, dizia-lhes. “A paz vos dou”, Quando entrardes nalguma casa, dizei: “A paz seja nesta casa”. “Bem-Aventurados os pacíficos”. Bem-aventurados os mansos”. Ao que exige que caminhes mil passos carregando-o, caminha dois mil; dá ao que te peça e ao que te pedir emprestado não voltes as costas, etc., etc.”

            São postulados de paz todos esses e outros muitos, que se encontram no Evangelho, sancionando a doutrina toda pacifista do Redentor, d'Aquele que disse a Pedro: “Embainha a tua espada, pois quem com o ferro fere com o ferro será ferido”.

            Talvez, porém, me objetem que também disse o doce Nazareno: “Pensais que vim trazer à terra a paz? Não vim trazer a paz mas a guerra”.

            De fato, embora, como Cristo de Deus, fosse a personificação da paz, ele não trouxe paz ao mundo, porque a sua doutrina vinha ferir não poucos interesses arraigados, vinha bater violentamente às portas do erro e da mentira, vinha clamar com voz potente às consciências adormecidas pelo ópio da corrupção. Todo um mundo, portanto, se havia de rebelar contra ele e seus ensinos.

            E, no seio das próprias famílias era onde os adeptos da nova doutrina haviam de encontrar mais resistência, mais oposição, mais guerra. Por ser natural que assim acontecesse e ainda aconteça, dado o modo de composição da família na Terra foi que o Redentor disse:

            Por mim deixareis pai e mãe, esposo e esposa, filhos, irmãos, bens e até a própria vida. “Quem ama a seu pai e á sua mãe mais do que a mim não é digno de mim”. etc.

            Mas como, esposando o ideal cristão, gozará de paz o discípulo do Cristo, desde que em tais conflitos se possa ver envolvido; desde que haja de abandonar, por seguir a Jesus, o que tenha de mais caro, aquilo que o mundo considera mais sagrado?  

            Essa sentença do Mestre divino responde à afirmação por ele feita, com o maior desassombro, a seus discípulos, para que a divulgassem por todos os âmbitos do mundo: Não vim trazer a paz, mas a guerra; não a união, mas a divisão; porque, de futuro, estarão divididos o esposo da esposa; de seu pai o filho, de sua sogra a nora, sendo vossos inimigos os da vossa própria casa.”

            A doutrina reformadora, profundamente revolucionária do Cristo, não podia, nos tempos em que ele a pregou, dar em resultado senão a divisão, a perseguição, o martírio para os que, revestidos de coragem, a abraçassem e tenazes se mostrassem em praticá-la.

            Dada, repetimos, a maneira por que na terra se constitui a família, impossível era que, em cada uma, salvo as naturais exceções, todos os seus membros adotassem o novo credo. Muitos destes, apegados às velhas ideias que seriam suplantadas, se julgariam feridos nas mais delicadas fibras e tudo fariam por que suas crenças prevalecessem contra as novas. O mesmo presentemente sucede. Disso sabia Jesus, como o sabe todo bom psicólogo.

            Porém, dirão: Se o Cristo trouxe ao mundo um ideal de Paz como é que não aconselhou a seus discípulos que sempre em paz se conservassem, evitando ser pedra de escândalo, submetendo-se, por conseguinte, à vontade alheia, uma vez que a obediência sem restrições tem sido pregada e aconselhada pelos que se dizem vigários de Jesus Cristo na terra?
             
            A obediência tem seus limites naturais. Só pode ser aconselhada quando não força o homem a atraiçoar a própria consciência, ou o não impede de proclamar e professar suas próprias convicções. Por isso é que, pregando, como o Mestre, um ideal de paz, os primitivos cristãos afrontavam as iras de seus perseguidores, negando-lhes a adorar os ídolos do paganismo e contestando a fé que tinham no Deus de Jesus Cristo.

            Como ninguém é profeta em sua terra, também no seio da família, só são, em regra, respeitosamente acatados os que a esta proporcionam bem estar, dignidade, riquezas. Se o não fazem, no próprio lar é onde maior oposição se lhes move.

            Assim se explica e justifica o conselho, mais que isso, a. prescrição do Redentor a seus discípulos, para que por ele, isto é, pela sua doutrina, pela prática da lei de que fora ele o portador, tudo deixassem, ainda o que de mais caro possuíssem.

            Como há de então, dentro da fornalha ardente, que é o mundo, gozar de paz aquele que nos tempos hodiernos, abraça o ideal cristão, restaurado e vivificado pela revelação nova? Como há de gozar de paz, obedecendo o preceito do divino Mestre? Será isso possível? É. Embora metido na fornalha ardente, pode o crente sincero e fervoroso encontrar a paz, servindo a causa de que se fez adapto, porque a paz da consciência, que é a de que se trata, não se conquista pela covardia, nem lisonjeando os tiranos, nem mentindo para evitar os flagelos, nem subordinando-se a todos os preconceitos e convenções mundanas, para não se inimizar com ninguém.

            A paz, para que proporcione o gozo que lhe é peculiar, não deve ser apenas aparente mas real. Aquela facilmente se perde; esta, a da alma, nascida da retidão e da pureza, da consciência, é permanente e indestrutível, porque tem a alimentá-la a nobreza dos sentimentos, a sinceridade, o amor e a lealdade continuamente praticados. Essa a paz que se deve ambicionar e dela pode a criatura gozar, mesmo no fragor do combate, no tumulto do mundo, nas dissensões familiares, na fogueira, nos tormentos e sob o cutelo da guilhotina.

            Todos os que hão professado ideias ou crenças que, por verdadeiras, são revolucionárias no campo das ideias e crenças erôneas ou falsas, foram perseguidos, porque, disputando a presa aos inovadores, sempre se levantam os interesses ameaçados.

            Com o Espiritismo dá-se o mesmo que ocorreu quando do advento do Cristianismo, apenas com a diferença de que as perseguições aos espíritas ainda não se revestiram de caráter cruento. Perseguidos, porém, sob todas as outras formas, eles o têm sido, transformando-se lhes, não raro, em inferno o próprio lar, por graças do confessionário que geralmente é donde vem o combustível para a fogueira a que eles se vêm condenados.

            Nada obstante, os que hão tido e tem a têmpera de verdadeiros discípulos do Cristo resistiram e resistem a todas as oposições e perseguições, sofrendo com resignação e paciência o desprezo, aa injúrias, e calúnias, a fome de Justiça e de amor que os tortura. Lembrados sempre da recomendação do divino Mestre, tudo abandonam para segui-lo, para ser dignos dele, praticando-lhe os ensinos. Encontraram assim sempre e encontram, como outrora os primeiros cristãos, a paz do Espírito, mesmo em meio das dissenções domésticas, das perseguições, na fogueira moral que os requeima, fortalecidos pela fé que depositam em Nosso Senhor Jesus Cristo.

            Essa a paz que todos devem procurar.

            Essa a paz que dá felicidade ao cristão, ao verdadeiro espírita, que só pode ser verdadeiramente feliz quando passa pelo que os que o não são consideram infelicidade e lhes perturba a serenidade da Alma.

            Erro grave é pretender-se alcançar a paz convivendo com os outros ao sabor deles, ainda que com vexame da própria consciência, como grave erro é querer-se que a paz venha do exterior quando unicamente do íntimo da alma pode ela provir.

            A humildade e a mansidão proporcionam a paz mas sob a condição de serem praticadas segundo os ditames de uma consciência reta, saturada de seiva cristã.

            Erro funesto também é o sacrificarem-se as convicções próprias ao afeto filial, paterno, conjugal ou fraternal. Tudo se pode e deve sacrificar pela paz, menos o cumprimento do dever ditado pela consciência.

            Advirta-se, porém, que a perigoso erro conduzirá o compreender-se literalmente, erroneamente, portanto, a recomendação do meigo Nazareno aos que o quisessem seguir. Jamais de certo lhe passou pela mente aconselhar ao homem que abandone a família, os que lhe são caros, apenas no seu lar se manifestem discordâncias em matéria de crenças religiosas. Não.

            Ao cristão e, pois, o espírita, deve sempre mostrar-se digno da sua fé, não a ocultando jamais, proclamando-a em todas as oportunidades, dentro e fora do seu lar. Se daí advier, da parte dos membros de sua família hostilidades, desprezos, malquerenças, humilhações, cumpre-lhe, armado de paciência e resignação, tudo suportar, demonstrando, porém, cada vez maior firmeza na sua fé e na excelência desta, com o esforçar-se incansavelmente, para, por meio da persuasão, do carinho, do amor fraterno, dos exemplos de bondade, de calma e de humildade cristã, levar a luz da verdade aos Espíritos dos que lhe flagelam a existência. Desse modo, sua alma gozará de inalterável paz, dentro mesmo do inferno em que lhe é preciso viver, e terá iniciado a conquista das almas que o rodeiam. Dia virá em estas reconhecerão nele o seu salvador e o bem dirão.

            Este o abandono que Jesus aconselhou: o das ideias, injunções e exigências dos que formam a nossa família e são nossos amigos, se essas ideias, injunções e exigências estiverem em conflito com a doutrina que ele exemplificou e que, esta sim, por coisa alguma, por nenhuma consideração ou conveniência terrena, deve ser abandonada.

            Outro alcance não podia ter e não tem a recomendação do Mestre divino. E, se não, dizei-me: a que viria a preceituar ele, como preceituou, a reconciliação com o adversário, o amor aos inimigos, a prática do bem para com quem praticou o mal, mandando ao mesmo tempo que o homem abandonasse o lar, a família, pelo simples facto de discordar esta do seu modo de pensar ou de crer? Como imaginar-se que ele haja pretendido tenhamos em melhor conta e mais consideração os inimigos estranhos, os que nos fizeram mal e aos quais devemos retribuir com o bem, do que os nossos próprios pais, os nossos filhos, irmãos, ou  cônjuges? Fora absurdo e na doutrina de Jesus não pode haver e não há absurdo, para os que a sabem interpretar e compreender, não segundo a letra que mata, mas segundo o Espírito que vivifica.

            O grande mérito do espírita-cristão está em viver entre os seus maiores inimigos pessoais, entre os inimigos de sua fé, embora sejam membros estes de uma família, sem que se lhe altere a paz do Espírito pelos desprezos e vexames de que o façam objeto. E isso ele o conseguirá, meditando continua e profundamente os ensinos do Redentor e elevando-se espiritualmente, através desses ensinos, às maiores alturas, onde receberá iluminação divina e as energias suficientes para vencer, conservando sempre a paz, a paz verdadeira, que não se compra nem se vende, que só alcançamos quando, plenamente confiantes naquele que é o caminho, a verdade, a vida, tudo por amor dele suportamos, ainda os mais rudes e certeiros golpes desfechados contra nós e a nossa fé.

            Quem persevera no caminho que o Cristo traçou e pratica a sua doutrina, mal grado a todos os obstáculo e sofrimentos, pode estar certo de haver conseguido a paz eterna que a todos desejo.


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