quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O óleo e o candieiro



O óleo e o candeeiro
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Setembro 1951

Thuran Nassam odiava seus semelhantes. Perdera todo sentimento de caridade e nem mesmo as crianças lhe inspiravam compaixão. Morava só. Como vivia, entretanto, ninguém o sabia. De quando em quando fazia excursões demoradas, afastando-se noite escura da cabana que construíra no alto de uma colina circundada por espessa vegetação.

A seu respeito muito se comentava, porque seu nome se envolvera em impenetrável mistério. Não cultivava a terra, não tinha amizades, afugentava quem quer que tentasse aproximar-se da sua tosca morada. Era, em suma, um homem estranho e temido.

Certa vez, Thuran Nassam, munido de uma faca de caça, saiu, alta madrugada, na esperança de trazer algo que lhe mitigasse a fome. Não se sabe quando Nussam voltou. A verdade é que, ao abrir a porta, encontrou sentado em sua imunda cama um velho de longas barbas brancas, cujo alforje descansava no chão frio.

Thuran Nassam ficou tão surpreendido que, durante alguns instantes, não pode balbuciar palavra. Foi o velho que falou primeiro:

- Também te perdeste nestas paragens?

- Não! - retrucou Nassam com má vontade. Esta cabana é minha e não quero ninguém mais aqui! Podes ir saindo por onde entraste, antes que eu te faça correr, velho imbecil!

O velho não se alterou. Continuou sentado e não demonstrou nenhum temor pela faca que Tburan Nassam trazia à cintura. Calmo, imperturbável, voltou a falar:

- Não te agastes comigo. Foi Alá que aqui me trouxe. Perdido na estrada, meti-me na mata e, sem o esperar, vim sair defronte à tua cabana. Quem és tu, que tão descaridosamente se dirige a um velho cansado como eu?

- Não te interessa quem sou. Volta por onde vieste, some da minha presença, antes que eu me inflame de cólera!

- Está bem - tomou o velho com voz serena. És, porventura, Ali Bemaram, que foi
cameleiro do mercador Omar?

Ante essa pergunta. Thuran Nassam empalideceu e retirou a faca da cinta. Ali Bemaram era acusado de haver assassinado o mercador e como ninguém conhecia seu paradeiro, o velho supusera estar diante do homicida. Nassam, ensandecido pela raiva, encostou a ponta da arma. no pescoço do ancião, intimando-o:

- Cão miserável! Se não me conheces, como ousas admitir seja eu o assassino de Omar? Saiba que eu sou Thuran Nassam, apenas Thuran Nassam! Nunca matei ninguém, mas é grande a minha vontade de começar por ti, velho intrometido!

O ancião fixou os olhos em Nassam e disse com voz impressionantemente firme:

- Então; mata! Mata, porque ficarás sendo pior que Ali Bemaram. Mata! Bemaraam. trocou a vida de Omar por um saco de cequins. (Pequeno disco de metal amarelado e utilizado como enfeite nas vestes de ciganas.)

E tu, Thuran Nassam, que troca farás? Trocarás a vida de um desconhecido, que nenhum mal te fez, pelo ódio que te inunda a alma?

Podes fazê-lo! Alá, quando me guiou os passos até aqui, tinha um propósito que ignoro. Vivi muito e a vida não me seduz nem me assusta a morte. Sabes porquê? Porque aprendi que a morte nada mais é que a nossa restituição à verdadeira vida. Se a tua sede de ódio só pode ser mitigada com o sangue de um velho inocente, mata-me! Vamos! Onde a tua coragem?! Basta um empurrãozinho para que a tua faca, que já me roça a pele enrugada, faça jorrar meu sangue!

Thuran Nassam perdeu a cor e tremeu! A faca, que seus dedos crispados mantinham firme, vacilou. A mão quase homicida se abriu numa convulsão nervosa e a arma caiu de ponta, ficando espetada no chão! Jamais Thuran Nassam se vira em situação igual. O velho readquiriu sua atitude calma e sua voz se tornou mais suave.

- Fizeste bem. Eu sabia que a tua maldade não chegaria a tal ponto. Agora, sei quem és tu. Já ouvi falar, na aldeia mais próxima, do teu nome. És um misantropo, odeias teus semelhantes, esquecido de que só a ti é que tal ódio prejudica. Porque guardas no coração a fera dos maus instintos?

Thuran Nassam estava abatido. Não sentia ânimo para encarar o velho. Só depois de algum tempo respondeu:

- Tenho sofrido muito. Meu pai me deixou uma faixa de terra que me foi roubada pelos ricaços de Bludel-Azam, perto de Ar-Bharai. Queixei-me ao grão-vizir Aldiel e fui castigado. Procurei auxilio para recomeçar a minha vida e fui tratado como um criminoso. Aqueles que me podiam dar a mão, pois haviam sido ajudados por meu pai, davam de ombro às minhas pretensões. Outros, que se diziam anteriormente meus amigos, desconversavam e se afastavam de mim. Eram meus amigos enquanto eu lhas era útil, mas desde que era preciso que me socorressem, ficavam silenciosos, demonstravam não compreender o que eu lhes dizia e me deixavam ao desamparo, entregue ao meu desespero. Foi por isto que me afastei de todos e hoje não confio em ninguém...  

O velho, que ouvira atentamente suas palavras, perguntou-lhe:

- Algum dia alegraste teus olhos nas páginas do livro sagrado?

- Não sei de que livro falas.

O Evangelho, amigo. Trago-o sempre em minha companhia. Tenho-o no alforje que aí vês.

E se curvou sobre o saco, de lá retirando o livro santo.

- Sinto que não és tão mau quanto queres parece, Nassam. E somente tens ódio porque estás divorciado do Pai Supremo. Saibas, entretanto, que o ódio é irmão do amor. Se na Escritura encontramos Caim e Abel, na vida também podemos encontrar o ódio e o amor. Ambos são fonte prodigiosa de energia espiritual, sendo que o amor é a energia bem aproveitada, e energia que ilumina e engrandece, o ódio é a energia mal empregada, que em vez de luz gera a escuridão da alma. O maior trabalho do homem está justamente em transformar essa escuridão em luz, em disciplinar essa energia mal orientada e aproveitá-la, transformando-a em amor. A propósito, tens ali, sobre a mesa, um candeeiro. Quero ler alguns versículos do Evangelho para que sejam ouvidos mais pelo teu Espírito do que pela matéria que ele anima. Podes acendê-lo?

Thuran Nassam resmungou:

- Não tenho lume...

- Tenho-o eu - retrucou o velho.

Nassam, no entanto, atalhou:

- O candeeiro está vazio, sem óleo...

Então, o velho, sempre sereno e complacente, esclareceu:

- Tanto melhor...

- Tanto melhor? - indagou Nassem, instintivamente.

- Sim, tanto melhor. É por isto que tua cabana tem estado imersa na treva?

- É - respondeu secamente Nassam.

- Sabes que Alá dispõe as coisas sempre com acerto? Tu és também um candeeiro sem luz. Antes de partir deixarei em tuas mãos o óleo de que necessitas para a iluminação do Espírito. Toma este Evangelho. Inunda com ele a tua alma, o teu candeeiro. Enche-o bem, o mais que puderes com a leitura, com o estudo do livro sagrado. Lembra-te, contudo, de que isso não será suficiente. Para acender o candeeiro é preciso lume. Sabes como obtê-lo? Pela caridade, trocando o ódio pelo amor, dando sempre amor, mesmo quando seu preço seja o sofrimento. A dor não deixa de ser uma advertência do Alto. Se soubermos aproveitá-la para melhorar o nosso íntimo, teremos ouvido o sinal de "sentido!" celestial. Todos te temem. Terás, portanto, de realizar um esforço sobre humano para vencer. Começa, porém, vencendo-te a ti mesmo. Trava luta séria com os teus preconceitos, e. embora sejam muitas as tuas queixas justificadas, procura esquecê-las. Perdeste muito tempo, Nassam. Levaste muitos anos com o candeeiro vazio e a alma às escuras. Mas todo tempo é tempo para se tentar a retificação do caminho.

Surpreendentemente, daqueles olhos que antes chispavam ódio, rolavam lágrimas. O velho vencera a luta desigual. Thuran Nassam não se dominava mais. Chorava. Alguma coisa diferente lhe tocara o coração.  

E o velho prosseguiu:

- Cuida primeiro de ti. Procura triunfar sobre as tuas dúvidas. Domina teus rancores e elimina-os do coração. A vitória maior será a que conquistares contra os teus defeitos. Alá escreve direito por linhas tortas. Não foi sem motivo que eu me perdi na estrada. Não foi sem razão que me embrenhei na mata e aqui vim dar. Fui guiado pela mão do Todo-Poderoso! Bendito seja Seu nome!

Nesse interim, Thuran Nassam sentiu curiosidade pelo Evangelho. Ía abri-lo, quando o velho ponderou:

- Este é o óleo de que precisa o teu candeeiro. Guarda-o com carinho, porque é inesgotável. Se souberes cultivá-la nunca mais ficaram vazio o candeeiro...             

Thuram Nassam, refeito das emoções que o haviam assaltado, encorajou-se a perguntar:

- Que farei com ele sem lume?

- Tens razão. A verdade é que somente poderás acender o óleo com o lume da exemplificação. Assim como não basta ter o candeeiro cheio se não há fogo para queimar o óleo assim também não basta ler o Evangelho, não é suficiente saber de cor todos os versículos e propagá-los a outrem. O indispensável é dar, sempre que se oferecer uma oportunidade, o exemplo de que o Evangelho está no coração e não apenas nos lábios. Ter o Evangelho no coração é aprender a ser caridoso, é perdoar, é esquecer as ofensas, é retribuir com o bem o mal que nos fazem. O mundo está cheio de ingratidões, mas precisamos compreender que o mal existe por culpa do homem que está distanciado de Alá. Pelo bem, havemos de conquistar o mal. As dores serão muitas, os desenganos nos espreitam a cada passo, de modo que precisamos estar alerta, iluminando a estrada da nossa vida com o óleo santo do Evangelho.

Thuran Nassam estava outro homem.

Nunca ninguém lhe havia dito coisas tão elas e tão úteis. Num repente, baixou-se, arrancou a faca que se achava fincada no chão e disse ao velho:

- Quero que me perdoes, desconhecido. Vou quebrar esta faca e lançar longe dos meus olhos os seus pedaços!

E ia fazê-lo, quando o ancião lhe segurou o braço:

- Não deves desfazer-te dessa arma, Nassam. Guarda-a com carinho porque ela deve ser para ti um símbolo. Talvez marque o início da tua libertação espiritual. Guarda-a.

E sem mais palavra, pôs sobre os ombros o alforje, abriu a porta e partiu, desaparecendo na mata espessa ...


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