Desencarnação
Joanna de Ângelis
por Divaldo Franco
em
02/03/74, C E Caminho da Redenção, em Salvador, Bahia.
Resultando da orientação religiosa
deficiente que situou a morte como ponte entre a vida física e a sobrenatural,
onde a Divina Justiça aguarda o Espírito para brindar-lhe a paz ou a desdita, o
conceito errôneo ensejou aos céticos anotações devastadoras, tornando-a simples
retorno ao pó donde se teria originado, portanto, ao aniquilamento.
Não obstante sua remota antiguidade,
o culto dos mortos recebeu do hedonismo grego terrível reação, quando os
usufrutuários do prazer situaram os impositivos do existir simplesmente no
ideal físico e estético da beleza e do gozo com as decorrências imediatas da
dissolução dos tecidos e das expressões do pensamento.
Os estóicos, que se lhe opunham,
esforçavam-se por colocar resistências ao pavor da morte, numa tentativa de se
evitarem a tristeza e a dor, mediante um fatalismo racionalista com que se deve
superá-las, através do esforço sobre-humano para enfocar as realidades do
dia-a-dia, vivendo-se com valor cada hora no mundo material.
O Cristianismo foi, na História, a
mais eloquente mensagem de louvou à vida e à morte, considerando-se que a ética
vivida e ensinada por Jesus é toda vazada na ‘negação do mundo material’ para a
afirmação de Deus e da vida espiritual. A sua mensagem impele o homem ao
entesouramento dos valores morais que não transitam nem se perdem quando se
decompõe as aparências orgânicas, permanecendo além-túmulo como superiores
recursos para a sobrevivência feliz. Além disso, o seu contato com os chamados
mortos, em contínua convivência, suas horas de solidão com Deus atestam a
grandeza do princípio espiritual sobrepujando as limitações do veículo carnal.
Como se não bastassem as eloquentes
comprovações de que se fez ímpar agente, retornou, ele próprio, do além-túmulo,
à presença de um sem-número de testemunhas, com elas confabulando e convivendo
com expressões de vitalidade incontestável...
Em todos os tempos ressumam os
atestados imortalistas, no incessante intercâmbio entre as duas esferas: a
orgânica e a espiritual.
Mentes áridas e atormentadas, no
entanto, hão procurado sepultar no ‘nada’ a glória imortal. Não obstante o
atavismo dessa negação, no inconsciente humano mantido pela sistemática da
descrença, jamais foi utilizada a expressão niilista sobre a vida imortal nos incontáveis
conúbios de que foram instrumento médiuns, santos e apóstolos, afirmando sempre
a sobrevivência... Em todos esses fenômenos paranormais, o verbete Imortalidade
superou o aniquilamento do ser, reafirmando a indestrutibilidade do Espírito à
decomposição dos tecidos carnais...
***
Não há morte, ninguém se equivoque.
Só há vida, onde quer que se
detenha o pensamento.
Da decomposição pestilencial da
matéria surgem multiplicadas, complexas formas de vida.
Morre a lagarta em histólise de
desagregação para surgir a borboleta em histogênese admirável...
Morre a semente para libertar a
planta...
Morre o sêmen para formar o
corpo...
Morre o corpo para que se liberte o
Espírito que dele se utiliza como de um veículo em romagem purificadora.
Sem dúvida, a morte constitui dor
inominável quando arrebata o ser querido, retirando-o da convivência e da
ternura dos que a amam... Possivelmente, é a dor moto contínuo de maior
duração, graças ao apego e valor que se atribuem aos grilhões carnais.
A ausência do corpo não impede,
porém, a presença do ser, desagregado na forma, não todavia, aniquilado na
essência. Ninguém sobreviverá sine die enquanto no ergástulo fisiológico.
Indispensável considerar que a vida
orgânica, iniciada no ovo, se dilui quando cessa a circulação sanguínea por
falta de oxigenação; todavia, a causa que aglutinou as moléculas e as transformou
prossegue, agora livre, continuando os rumos que deve vencer.
Ninguém é genitor ou filho, esposo
ou amigo afeiçoados por caprichos do acaso. Quando se rompem as argamassas não
se dessorem os vínculos superiores que os precederam ao berço e os sucederão ao
túmulo.
Imperioso considerar, mediante
reflexão continuada, a problemática da morte, a fim de que a surpresa,
decorrente da imantação ao corpo físico, não se transforme em rebeldia inútil
ou exacerbação dissolvente.
***
Os seres amados recebem, onde se
encontram vivos após a morte, os dardos da revolta negativa para eles como as
lembranças afáveis do amor.
O pensamento é força vital
gravitando no Universo.
Imã poderoso mantém sua própria força e
atrai as ondas semelhantes que nele se fixam ou às quais se liga.
Assim, recorda os teus mortos com
alegria e ternura, mesmo que isto te pareça paradoxal.
A morte não visita apenas o teu
lar. Passa por todas as portas, invariavelmente. Se amas, conforme dizes,
atesta-o com nobreza e não por meio da insensatez.
Uma memória que inspira
desesperação, realmente não foi útil nem nobre.
Somente o amor verdadeiro inspira ânimo
e confiança, alegria e esperança.
Coloca-te no lugar de quem partiu e
considera a forma como te sentirias se foras a causa do infortúnio da pessoa
que, dizendo amar-te, pensa em fugir, em vingar-se, em abandonar a vida...
Refletirás melhor e transformarás a
dor em flores de alegria, guardando a certeza de que o amanhã fará o teu
reencontro com quem amas.
A vida sempre devolve conforme
recebe. Irisa o céu da tua saudade com a luz da oração pelos teus amados
imortais. E começa a preparar-te para a vilegiatura que te alcançará logo
mais... Rompe as algemas da paixão, quebra as peias do egoísmo, organiza o
programa de liberação das mágoas, reflete nas dores e, quando chegar o teu
momento, que nenhuma retentiva te prenda na retaguarda...
Vivendo, está-se desencarnando a
pouco e pouco. O golpe final resulta de todos esses pequenos morreres, que
lançam a alma na realidade da consciência livre e indestrutível.
Desencarnar é desembaraçar-se da
carne.
Morrer, literalmente, significa
cessar de viver.
Do ponto de vista espiritual,
porém, morte é vida e vida no corpo pode afigurar-se como morte transitória da
liberdade e da plenitude da lucidez.
Vive, pois, de tal forma que,
advindo a morte ou desencarnação, estejas livre e prossigas feliz.
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