Ao longo do
Caminho
por C. Wagner
Reformador (FEB) Novembro 1943
As duas esquecidas
Esvazia-se lentamente a sala onde
Natal acaba de festejar suas lembranças e de semear seus presentes. Jubilosa, a
turba das crianças se dispersa pelas ruas e, mostrando o que recebeu, cada uma
conta o que viu. No local agora cheio de silêncio, onde as luzes se apagam,
somente o pinheiro resta sozinho a cismar. Uma última vela bruxuleia e a sua
claridade mortiça ilumina fracamente um objeto dissimulado entre dois galhos
frondosos. É uma linda boneca de olhos azuis, faces rosadas, louros cabelos
abundantes, com os braços rechonchudos vagamente estendidos. Ninguém a
descobrira. Passaram despercebidas as graças que ela ostenta. É a pequenina
esquecida.
*
No leito de dores, onde entra em
convalescença de cruel enfermidade, está sentada uma menina, que parece esperar.
É noite de Natal, noite de surpresas par as crianças. Haverá, também para ela,
alguma surpresa? Ah! o pobre casebre, onde a enfermidade veio juntar-se a penúria
e que mal basta ao necessário, não consente em pensar no supérfluo. Mas, alguns
dias antes, a menina estivera com uma camaradinha que lhe falou de uma árvore
de Natal e prometeu trazer-lhe um brinquedo... Não tardaria muito a amiga...
Não parece que ressoam passos na escada? É ela sem dúvida...
Mas, os passos se distanciam e a
porta permanece fechada... Outros passos se aproximam e se afastam e, como
eles, passam as horas: a amiga não vem. Por fim, cansada de esperar e nada mais
esperando, a doentinha deixou cair a cabeça no travesseiro, a soluçar:
esquecida!
*
Não, pobre criança, não estás
esquecida, como não o está a boneca que ficou lá na árvore. A mesma mão que a
dependurou ali, ao abrigo das olhares investigadores, em breve a encontrará e te
trará. Estais destinadas uma a outra, isto é certo, e nada perdereis por
esperar. Nenhuma boneca terá jamais encontrado mamãe mais cuidadosa, nem uma
menina, tão encantadora boneca. - Por onde andarão então as tristezas? -
Esquecidas!
Triste troca
Uma chuva fininha cai desde pela
manhã. No calçamento viscoso, os cavalos escorregam e tombam. A bruma envolve
as árvores, os telhados, as longas fieiras de ruas intermináveis. Os
transeuntes se agasalham em seu mau humor. É uma hora aborrecida. Homens e
coisas parecem combinar-se para dizerem: isto vai mal.
Numa das ruelas escarpadas que
sobem para Belleville, uma carrocinha desmantelada. Atrelado aos seus varais, o
homem se retesa e, num esforço que o faz curvar-se até quase tocar o chão,
tenta movimentá-la. Uma mulher e duas crianças atuam sobre as rodas. Nada
conseguem. Decididamente, para eles, aquilo absolutamente não vai. - Que horror
fazer uma mudança com semelhante tempo! Os pobres coitados estão com todo o seu mobiliário naquela carrocinha. Pouca coisa, sem dúvida,
o estritamente necessário: alguns pertences de cama, uma mesa, cadeiras, uns
tantos rudimentos de bateria de cozinha dependurados aqui e ali. O luxo é
representado por um canário friorento, a tiritar na sua gaiola. Esse pouco, no
entanto, é demasiado naquele momento. A carga excede as forças dos que a puxam.
Afinal, dois transeuntes, dois samaritanos, se apiadam. Com seus braços vigorosos,
empurram o veículo e o levam até ao alto da encosta.
Transidos, molhados, homens e móveis
chegam pela tardinha ao novo aposento. Ah! Escuro e arrumado, ele se assemelha,
como um irmão, ao antigo, donde acabam de sair. Aquela mudança se traduzira
para a família por um domingo perdido por um mobiliário avariado, talvez uma enfermidade.
Mas, no antigo bairro, eles já não tinham crédito. Esperam que as coisas mudem
completamente, num meio mais propício. Durante os cinco anos em que habitavam a
cidade imensa, haviam recorrido uma dúzia de vezes a esse processo.
Lá, no Interior, caía em ruinas a
humilde casinha que eles abandonaram. A erva invade as paredes, as teias de araúna
tapam as janelas, murmura o regato, as flores se ostentam belas e os pássaros
cantam, mas para ninguém tudo isso. Porque deixaram eles aquele recanto da floresta?
A pobreza em que viviam outrora não era uma riqueza em confronto com a presente
miséria?
Oh! a misteriosa atração das
grandes cidades, bem comparável à fascinação dos abismos! Algumas histórias
durante os serões bastaram para produzir a vertigem naqueles filhos dos campos.
A solidão familiar e imutável, onde o mais humilde tem o seu lugar, onde as árvores
e os rochedos se tornam velhos amigos, eles o trocaram pelo isolamento
desesperado do grande deserto humano, onde o indivíduo se perde na multidão,
deixando o traço idêntico ao que deixa no ar o voo de um pássaro.
E dizer-se que, assim fazendo,
aquelas valorosas criaturas, com milhares de outras, deram origem a um dos mais
apavorantes fatores do problema social: a despopulação dos campos e o
atravancamento das grandes cidades.
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