A Ilusão do discípulo
Humberto de Campos por Chico Xavier
Reformador (FEB) Dezembro 1939
Jesus havia chegado a Jerusalém sob uma
chuva de flores.
De tarde, após a
consagração popular, caminhavam Tiago e Judas, lado a lado, por uma estrada
antiga, circundada de oliveiras, que conduzia às casinholas alegres de Betânia.
Judas Iscariote
deixava transparecer no semblante uma íntima inquietação, enquanto no olhar
sereno do filho de Zebedeu fulgurava a luz suave e branda que consola o coração
das almas crentes.
- Tiago - exclamou
Judas, entre ansioso e atormentado - não achas que o Mestre é demasiado simples
e bom para quebrar o jugo tirânico que pesa sobre Israel, abolindo a escravidão
que oprime o povo eleito de Deus?
- Mas - replicou o
interpelado - poderias admitir no Mestre as disposições destruidoras de um guerreiro
do mundo?
- Não tanto assim.
Contudo, tenho a impressão de que o Messias não considera as oportunidades.
Ainda hoje, tive a atenção reclamada por doutores da lei que me fizeram sentir
a inutilidade das pregações evangélicas, sempre levadas a efeito entre as
pessoas mais ignorantes e desclassificadas. Ora, as reivindicações do nosso
povo exigem um condutor enérgico e ativo, - Israel - retrucou o filho de
Zebedeu, de olhar sereno - sempre teve orientadores revolucionários; o Messias,
porém, vem efetuar a verdadeira revolução, edificando o seu reino sobre os
corações e sobre as almas!.. "
Judas sorriu, algo irônico,
e acrescentou: - Mas, poderemos esperar renovações, sem conseguir o interesse e
a atenção dos homens poderosos?
- E quem haverá mais
poderoso do que Deus, de quem o Mestre é o enviado divino?
Em face dessa invocação,
Judas mordeu os lábios, mas prosseguiu:
- Não concordo com
os princípios de inação e creio que o Evangelho somente poderá vencer com o
amparo dos prepostos de Cesar, ou das autoridades administrativas do Templo, as
quais, em Jerusalém, nos governam o destino. Acompanhando o Mestre nas suas
pregações em Cesaréia, em Sebaste, em Corazim e Betseida, quando das suas ausências
de Cafarnaum, jamais o vi interessado em conquistar a atenção dos homens mais
altamente colocados na vida. É certo que de seus lábios divinos sempre brotaram
a verdade e o amor, por toda parte; mas, só observei leprosos e cegos, pobres e
ignorantes, abeirando-se de nossa fonte.
- Jesus, porém, já
nos esclareceu -obtemperou Tiago com brandura - que o seu reino não é deste mundo.
Imprimindo aos
olhos inquietos um fulgor estranho, o discípulo impaciente revidou com energia:
- Vimos hoje o povo
de Jerusalém atapetar o caminho do Senhor com as palmas da sua admiração e do
seu carinho; precisamos, todavia, impor a figura do Messias às autoridades da Corte
Provincial e do Templo, de modo a aproveitar esse surto de simpatia. Notei que
Jesus recebia as homenagens populares sem participar do entusiasmo febril de
quantos o cercavam, razão por que necessitamos multiplicar esforços, em lugar
dele, a fim de que a nossa posição de superioridade seja reconhecida, em tempo
oportuno.
- Recordo-me, entretanto,
de que o Mestre nos asseverou que o maior na comunidade será sempre aquele que se
fizer o menor de todos.
- Não podemos levar
em conta esses excessos de teoria. Interpelado que vou ser hoje por amigos
influentes na política de Jerusalém, farei o possível por estabelecer acordo com
os altos funcionários e homens de importância, a fim de imprimir novo movimento
às ideias do Messias.
- Judas! Judas!..
observou-lhe o irmão de apostolado, com doce veemência. - Vê lá o que fazes!.. Socorreres-te
dos poderes transitórios do mundo, sem um motivo que justifique esse recurso,
não será, desrespeito à autoridade de Jesus? Não terá o Mestre visão bastante
para sondar e conhecer os corações? O hábito dos sacerdotes e a toga dos dignitários
romanos são roupagens para a Terra... As ideias do Mestre são do céu e seria
sacrilégio misturarmos a sua pureza com as organizações viciadas do mundo! . .
. Além de tudo, não podemos ser mais sábios e mais amorosos do que Jesus e Ele
sabe o melhor caminho e a melhor oportunidade para a conversão dos homens!.. As
conquistas do mundo são cheias de ciladas para o espírito e, entre elas, é
possível que nos transformemos em órgão de escândalo para a verdade que o
Mestre representa.
Judas sienciou, atormentado.
No firmamento, os
derradeiros raios do Sol batiam nas nuvens distantes, enquanto os dois discípulos
tomavam rumos diferentes.
Sem embargo das
carinhosas exortações de Tiago, Judas Iscariote passou a noite tomado de
angustiosas inquietações.
Não seria melhor apressar o triunfo mundano
do cristianismo? Israel não esperava um Messias que enfeixasse nas mãos o
conjunto de todos os poderes! Valendo-se da doutrina do Mestre, poderia tomar
para si as rédeas do movimento renovador, enquanto Jesus, na sua bondade e simpleza,
ficaria, entre todos, como um símbolo vivo da ideia nova.
Recordando suas
primeiras conversações com as autoridades do Sinédrio, meditava na execução dos
seus sombrios desígnios.
A madrugada o
encontrou decidido, na embriaguez de seus sonhos ilusórios. Entregaria o Mestre
aos homens do poder, em troca da sua nomeação oficial para dirigir a atividade
dos companheiros. Teria autoridade e privilégios políticos. Satisfaria às suas
ambições, aparentemente justas, a fim de organizar a vitória cristã no seio de
seu povo. Depois de atingir o alto cargo com que contava, libertaria a Jesus e
lhe dirigiria os dons espirituais, de modo a utilizá-los para a conversão de
seus amigos e protetores prestigiosos.
O Mestre, a seu
ver, era demasiadamente humilde e generoso para vencer sozinho, por entre a
maldade e a violência.
Ao desabrochar a
alvorada, o discípulo imprevidente demandou o centro da cidade e, após horas,
era recebido pelo Sinédrio, onde lhe foram
hipotecadas as mais relevantes promessas.
Apesar de
satisfeito com a sua mesquinha gratificação e desvairado no seu espírito
ambicioso, Judas amava ao Messias e esperava, ansiosamente, o instante do triunfo
para lhe dar a alegria da Vitória cristã, através das manobras políticas do
mundo.
O prêmio da
vaidade, porém, esperava a sua desmedida ambição.
Humilhado e
escarnecido, seu Mestre bem amado foi conduzido à cruz da ignomínia, sob vilipêndios
e flagelações.
Daqueles lábios,
que haviam ensinado a verdade e o bem, a simplicidade e o amor, não chegou a
escapar-se uma queixa. Martirizado na sua estrada de angustias, o Messias só
teve o máximo de perdão para os seus algozes.
Observando os
acontecimentos, que lhe contrariavam as mais íntimas suposições, Judas Iscariote
se dirigiu a Caifás, reclamando o cumprimento de suas promessas. Os sacerdotes,
porém, ouvindo-lhe as palavras tardias, sorriram com sarcasmo. Debalde recorreu
às suas prestigiosas relações de amizade: teve de reconhecer a falibilidade das
promessas humanas. Atormentado e aflito, buscou os companheiros de fé.
Encontrou-os vencidos e humilhados; pareceu-lhe, porém, descobrir em cada olhar
a mesma exprobração silenciosa e dolorida.
Já se havia escoado
a hora sexta, em que o Mestre expirara na cruz, implorando perdão para os seus
verdugos.
De longe, Judas
contemplou todas as cenas humilhantes e angustiosas do Calvário. Atroz remorso
lhe pungia a consciência dilacerada. Lágrimas ardentes lhe rolavam dos olhos
tristes e amortecidos. Malgrado à vaidade que o perdera, ele amava intensamente
ao Messias.
Em breves instantes,
o céu da cidade impiedosa se cobriu de nuvens escuras e borrascosas. O mau
discípulo, com um oceano de dor na consciência, peregrinou em derredor do casario
maldito, acalentando o propósito de desertar do mundo, numa suprema traição aos
compromissos mais sagrados de sua vida.
Antes, porém, de
executar seus planos tenebrosos, junto à figueira sinistra ouvia a voz
amargurada do seu tremendo remorso.
Relâmpagos terríveis
rasgavam o firmamento, trovões cavernosos os pareciam lançar sobre a terra criminosa
a maldição do céu vilipendiado e esquecido.
Mas, sobre todas as
vozes confusas da natureza, o discípulo infeliz escutava a voz do Mestre consoladora
e inesquecível, penetrando-lhe os refolhos mais íntimos da alma: - "Eu sou
o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai, senão por mim!.. "
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